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2 OS CONTOS AMAZÔNICOS: ANÁLISE E CONTEXTO HISTÓRICO
O presente capítulo tem o objetivo de abordar as questões históricas dos contos
Amazônicos de Inglês Sousa a partir do “Voluntário”, que traça o perfil de um período
histórico embalado pela Guerra do Paraguai, e a “Quadrilha de Jacó Patacho”, que retrata o
cenário da Cabanagem. Nesses dois episódios a história evidencia o drama, a tragédia e a saga
humana desenvolvida por meio da literatura naturalista, que apresenta de forma verossímil
experiência de um povo, que mesmo em terras tão longínquas vive o trágico destino de quem
vai para a guerra e/ou envia um ente querido para lutar na defesa de interesses comuns ou
particulares.
Nesse sentido, o capítulo se dividirá em três partes. No primeiro momento abordar-
se-á a questão histórica, fazendo uma menção ao processo social e político em que vivia o
país, nos episódios da Cabanagem e da Guerra do Paraguai; no segundo momento será feita a
análise dos contos e seu gênero a partir da ótica do autor Inglês de Sousa; e no terceiro
momento será feita uma abordagem reflexiva sobre as obras estudadas, destacando o aspecto
naturalista do autor através da ideia do trágico.
Ressalta-se que nesse capítulo não será abordada a questão mítica dos contos, por
conta da ênfase que será feita ao aspecto histórico. O aspecto mítico das obras estudadas será
abordado no próximo capítulo.
2.1 Uma abordagem dos contos de Inglês de Sousa a partir da ótica da fatalidade
Como já mencionado e analisado no capítulo anterior, o Naturalismo tem esse
aspecto devido a sua concretude na abordagem dos fatos e dos contos. De uma forma muito
real e objetiva, o autor Inglês de Sousa tece seus contos, mostrando a realidade vivida por
seus personagens e que são traduzidos em fatos históricos do país em seu tempo. Mas o que
será abordado nesse momento é o caráter trágico consolidado na obra de Inglês de Sousa,
como apresenta Sylvia Perlingeiro Paixão, dizendo:
É naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face a face a vida com a
natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e
distante da agitação social, concentra-se a alma num apático recolhimento,
que se traduz externamente pela tristeza do semblante e pela gravidade do
gesto (PAIXÃO, 2004, p. xxvii).
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A partir desse trecho é comum perceber que desde o início, o autor apresenta seus
personagens como figuras tristonhas e desalentadas, e a partir desse contexto, a própria
história dos contos, revela o drástico e triste desfecho da vida que é assolada pelo trágico e
fatal destino.
Inglês de Sousa (2004) permite que se entenda o Naturalismo como algo que está
imerso na vida concreta das pessoas, assim, ele trata com detalhes a região amazônica, ao
mesmo tempo em que colocam em evidência os aspectos naturalistas dos personagens, tendo
como preocupação essencial, mostrar a história de seus contos, vinculados com os fatos
históricos do povo dessa região nacional.
Com uma linguagem objetiva e lógica, o autor apresenta o naturalismo excêntrico
que revela nua e crua a vida das pessoas, através da abordagem dos fatos da época, fazendo a
eloquência dos dados reais e fictícios.
No entanto, é possível entender também o aspecto científico dos contos de Inglês de
Sousa, que Pereira (1988) aponta ao descrever que os contos possuem um método científico,
já que o autor observa o homem a partir da ciência, de uma maneira impessoal e objetiva,
relacionando-se com os fatos e as coisas de forma científica. Nesse sentido, o autor conduz a
literatura para o campo da ciência.
Mas, mesmo entendendo o aspecto científico da obra de Inglês de Sousa, não tem
como perceber nos seus contos, a presença constante de um sentimento de tristeza, de agonia
e miséria que leva, incondicionalmente, os personagens a um fim trágico e fatal. Em todos
seus contos, e não é diferente nos contos analisados nesse capítulo, o autor desenvolve de
forma ativa e dinâmica a tragédia e a fatalidade que acompanha o ser humano em sua história.
Pereira (1988) também retrata que o determinismo no contexto dos contos é
marcante, pois os personagens não têm vontade própria e são conduzidos pelo destino que
outrora já estava traçado e decidido. Portanto, é interessante ressaltar, que a partir da visão
constatada em Inglês de Sousa (2004) os contos apresentam aqueles que não têm visão,
audição e voz, na história do Brasil em tempos dominantes, uma presença forte, determinante,
protagonista, mesmo que seu talante leva-os ao tráfico e à fatalidade.
De uma maneira muito clara, o autor faz da fatalidade e da tragédia elementos
essenciais de suas obras, colocando seus personagens em relação direta e condicionada a um
fim sem sucesso, sem glórias e sem vitórias. Mas quando, analisa-se a partir da perspectiva
científica, descobre-se nesses personagens a sua força e imortalidade, resistência e
protagonismo histórico e social.
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E finalmente, calcado no pensamento dos autores citados neste capítulo, é possível
constatar que os contos traçam o caminho da ação do ser humano em sua forma mais concreta
e real, que os contextualiza em um tempo histórico e socialmente cultural. Diante disso, pode-
se concluir que o fim dos personagens transcende a realidade de morte, de dor e de fatalidade
e ascensão da glória, da resistência e da conquista que está além do fato em si, mas que só
agora, se pode ver e entender.
Fazendo uma análise da visão do autor Inglês de Sousa (2004) sobre a fatalidade em
seus contos, talvez seja possível verificar que ele não tinha como fugir desse contexto, uma
vez que seus contos estão diretamente relacionados a fatos políticos, históricos e sociais da
região amazônica.
A fatalidade era uma condição inevitável para aqueles que vivenciam uma dura e
cruel realidade em tempos marcados pela dominação e descaso político, econômico e social
nos recantos amazônicos e Inglês de Sousa faz desse cenário o palco de suas obras. Nesse
sentido, fica claro que ele não tem como fugir da dimensão fatal e trágica, tendo
obrigatoriamente que colocar seus personagens em situações e condições deploráveis de dor,
tristeza, miséria e morte. Então, fatalidade e tragédia são elementos indispensáveis para os
contos do autor.
2.2 A quadrilha de Jacó Patacho e a Cabanagem
O conto "A Quadrilha de Jacó Patacho" possui como contexto histórico o episódio da
Cabanagem. Boris Fausto (1995) em seu livro História do Brasil apresenta a região
amazônica como aquela que desde tempos antigos sofre a dinâmica de uma mudança
constante em todos seus aspectos. É uma alternância entre o tradicional e o moderno, o
arcaico e o inovador.
Os Contos Amazônicos surgiram no ano de 1893, escritos por Inglês de Sousa,
contendo lendas, mitos, crenças e histórias que se misturam entre o real e o fictício.
Fausto (1995) retrata o processo histórico do país mencionando de forma clara e
objetiva os eventos e fatos ocorridos que influenciaram e determinaram o contexto social,
político, econômico e cultural do Brasil, perfazendo o caminho da história de homens e
mulheres que consolidaram o processo histórico brasileiro.
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O autor traça o perfil do país abordando a história desde a chegada dos portugueses
até os anos de 1880. Nesse percurso, ele elenca os diversos acontecimentos ocorridos no país,
apresentando suas motivações e interesses.
De acordo com Paixão (2004) é nesse contexto que surge a obra Contos Amazônicos,
que foi publicada no ano de 1893. Ela é composta por nove contos que estão sempre
relacionados a um episódio histórico e buscam, através da trama literária, abordar questões
concretas da vida das pessoas que viveram essa época e nesses locais. Nesses contos ver-se-á
a manifestação do povo que busca respostas para sua história e que são apresentadas de forma
real, concreta e clara, seguindo os traços do Naturalismo.
Paixão (2004) destaca que os contos amazônicos retratam o perfil social, econômico
e político do país embasando-se na vida real do povo que vive a luta entre portugueses e
nativos, em um tempo marcado muitas tragédias, mortes e perseguições.
Abordando a Cabanagem, Fausto (1995) enquadra esse movimento como uma
revolta popular que ocorreu no período regencial do país, entre os anos de 1835 e 1840 na
província do Grão-Pará, situada na região Norte do Brasil. O nome Cabanagem é devido ao
fato de os participantes dessa revolta morarem em cabanas às margens dos rios, como se pode
conferir no fragmento a seguir.
A cabanagem explodiu no Pará, região frouxamente ligada ao Rio de
Janeiro. A estrutura social não tinha aí a estabilidade de outras províncias,
nem havia uma classe de proprietários rurais bem estabelecida. Era um
mundo de índios, mestiços, trabalhadores, escravos ou dependentes e uma
minoria branca, formada por comerciantes portugueses e uns poucos ingleses
e franceses. Essa minoria se concentrava em Belém uma pequena cidade de
12 mil habitantes. Por aí escoava a modesta produção de tabaco, cacau,
borracha e arroz. Uma contenda entre grupos da elite local, sobre a
nomeação do presidente da província, abriu caminho para a revolução
popular. Foi proclamada a independência do Pará. Uma tropa cuja base se
compunha de negros, mestiços e índios atacou Belém e conquistou a cidade,
após vários dias de dura luta. A partir daí, a revolta se estendeu ao interior da
província. (FAUSTO, 1995, p. 165).
Segundo Fausto (1995) o que motivou a revolta foi o descontentamento em relação
ao isolamento do Pará ao resto do Brasil, e o patriotismo, que motivou o ataque
indiscriminado aos comerciantes portugueses ali imigrados, vistos como intrusos em uma
terra que não lhes pertencia. De uma forma muito clara, esses grupos protestavam contra o
governo buscando a independência da Província do Grão-Pará. A Cabanagem, conforme o
historiador, era composta por índios, mestiços, escravos e pequenos proprietários de terra.
Embora tivesse como lema a liberdade e ter os escravos como integrantes, o movimento era
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contraditório, pois chegou a reprimir levantes de escravos, nessa região, e também não tocou
no tema da abolição mantendo a escravatura, como mostra o trecho abaixo:
Os cabanos não chegaram a oferecer uma organização alternativa ao Pará,
concentrando-se no ataque aos estrangeiros, aos maços, e na defesa da
religião católica, dos brasileiros, de Dom Pedro II, do Pará e da liberdade. É
curioso observar que, embora entre os cabanos existissem muitos escravos, a
escravidão não foi abolida. (FAUSTO, 1995, p. 166)
Fausto (1995) relata que a Revolta da Cabanagem provocou um massacre sangrento
entre os que protestavam e as forças do governo, contabilizando em cinco anos de luta, a
morte de muitas pessoas. Durante a revolta o governo da província passou por várias mãos e
diante de tanta instabilidade e conflitos internos. O movimento da Cabanagem foi vencido
pelo governo que contou com o apoio de tropas da Europa. O fim do movimento se deu no
ano de 1840, quando os cabanos foram derrotados definitivamente, como pode-se ver abaixo:
A rebelião foi vencida pelas tropas legalistas, depois do bloqueio da entrada
do Rio Amazonas e uma série de longos e cruéis confrontos. Belém acabou
sendo praticamente destruída e a economia, devastada. Calcula-se que 30 mil
pessoas morreram, entre rebeldes e legalistas, ou seja, cerca de 20% da
população estimada da província. (FAUSTO, 1995, p. 166)
O episódio da Revolta da Cabanagem é abordado pelo autor Inglês de Sousa no
conto "A quadrilha de Jacó Patacho", através do qual, o autor trabalha a questão da fatalidade
em que as pessoas estão irremediavelmente fadadas a algo ruim.
Definindo a proposta dos contos amazônicos, Sylvia P. Paixão fala:
Em todos os contos, a preocupação do autor não está em descrever
propriamente estados de alma, concentrando-se mais em mostrar o caráter
dos personagens através da ação exterior destes. As cenas são descritas
como se de fato estivesse acontecendo num palco onde atores se mostram
para uma platéia sem a interferência do olho indiscreto de uma câmara – ou
de um narrador – que porventura pudesse influenciar o espectador – leitor. A
observação prevalece sobre a interpretação, demonstrando uma grande
objetividade na análise dos fatos (PAIXÃO, 2004, p. xix).
Por meio desse trecho é possível entender que o Naturalismo presente na obra de
Inglês de Sousa, se preocupa em apresentar os fatos de forma muito clara, permitindo que o
leitor se deleite no episódio como se fosse real. A narração descreve a realidade apresentando-
a tal como ela é, não deixando que a subjetividade adentre na trama.
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"A Quadrilha de Jacó Patacho", de acordo com José Mourão de Araújo (2006) em
seu artigo Literatura e História na recepção crítica do conto de Inglês de Sousa, é um conto
relacionado à Revolta da Cabanagem que tem por objetivo mostrar como era a relação entre
as pessoas envolvidas nessa revolta e como os protestantes chegavam e adentravam as casas
das pessoas nessa época. Segundo o autor:
O conto narra a história da tragédia vivida pela família de Félix Salvaterra,
imigrante português, que residia em um sítio isolado no Pará, entre Santarém
e Irituia, às margens do rio Tapajós. Historicamente situada em 1832, a
narrativa tem como pano de fundo, como está dito anteriormente neste
estudo, o contexto da Cabanagem paraense (ARAÚJO, 2006, p. 111).
De cunho extremamente político e social, "A Quadrilha de Jacó Patacho" evidencia o
conflito dos nativos contra um governo que não lhes garante condições de vida digna,
buscavam veemente a independência da Província Grão-Pará para poderem ser “donos” de
seu próprio destino. O descaso e a indignação tomaram conta do povo que se rebelou
protestando contra o fazer do governo que os deixou à margem dos direitos e benefícios.
Inglês de Sousa (2004) trabalha o conto enfatizando o seu aspecto social e político ao
determinar a vida dos personagens na elaboração de um episódio que retrata vida dos
personagens e mostra, através do conflito, a dureza da miséria, da dor e da morte, como
mostra o trecho a seguir:
— Mata marinheiro! Mata! Mata.
Os bandidos correram e penetraram na casa. Travou-se então uma luta
horrível entre aqueles tapuios armados de terçados e de grandes cacetes
quinados de massaranduba, e os três portugueses que heroicamente
defendiam o seu lar, valendo-se das espingardas de caça, que, depois de
descarregadas, serviram-lhes de formidáveis maças (SOUSA, 2004, p. 125).
O conto propriamente dito relata o drama de uma família que vive no Pará e
experimenta em sua própria casa um trágico fim: a desgraçada sorte de morrer pelas mãos de
alguém que estava acolhido em sua morada. Essa família era composta pelo pai Félix
Salvaterra, sua esposa Maria dos Prazeres, seus filhos Anica e seus dois irmãos. Eles seguiam
rotineiramente suas vidas, porém atormentados com os constantes ataques da quadrilha de
Jacó Patacho, que já havia feito várias vítimas na redondeza, e como Salvaterra era
considerado rico e era português, tornava-se mais suscetível aos ataques, uma vez que uma
das razões da Revolta da Cabanagem, como afirma Boris Fausto, era em relação aos
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portugueses que eram considerados usurpadores da terra da região amazônica, como destaca o
trecho a seguir:
Muito se falava então nas façanhas de Jacó Patacho; nos assassinatos que
amiúde cometia; casos estupendos se contavam de um horror indizível:
incêndios de casa depois de pregadas as portas e janelas para que não
escapassem à morte os moradores. Enchia as narrativas populares a
personalidade do terrível Saraiva, o tenente da quadrilha cujo nome não se
pronunciava sem fazer arrepiar as carnes aos pacíficos habitantes do
Amazonas. Félix Salvaterra tinha a fama de rico e era português, duas
qualidades perigosas em tempo de cabanagem. ( SOUSA, 2004, p. 112)
O conto relata que o sofrimento não acontece apenas para aqueles que penam até a
morte, no caso dos personagens homens, mas principalmente às mulheres que são arrancadas
do seio de sua família, e são levadas pelos bandidos passando por muita violência, como
retrata o autor.
[...] Eram donzelas raptadas para saciar as paixões dos tapuios; pais de
família assassinados barbaramente; crianças atiradas ao rio com uma pedra
ao pescoço; herdades incendiadas, uma quadro interminável de atrocidades
inauditas[...] ( SOUSA, 2004, p. 116-117)
A partir dessa ótica, "A Quadrilha de Jacó Patacho" tem um desfecho que permite o
leitor entender quão trágica é a vida do cabano, que em sua simplicidade e desejo de acolher,
coloca nas mãos de algozes a própria vida. Mas talvez, o drama mais dolorido e triste seja de
Anica e sua mãe, Maria dos Prazeres, que em vez de serem mortas, são levadas pelos
bandidos, tendo um destino bem mais cruel e desolador, pelo o fato de ver morrerem os seus e
de serem aprisionadas pelos algozes. A visita na casa do português não se resume apenas na
presença do terrível tenente Saraiva, mas também na presença da morte que vem para ambos
os lados.
E por fim, narra-se, que resta apenas o cenário da tragédia em sua velha e
abandonada casa, enquanto em outro lugar, as mulheres sobreviventes, recordam com terror
na alma e no corpo, a cruel e triste noite da matança. Nesse aspecto, o narrador apresenta com
clareza a fatalidade, que ronda a vida dos personagens, levando-os
incondicionalmente
a um
fim trágico.
A partir de todo o estudo que foi feito sobre o conto "A Quadrilha de Jacó Patacho",
é possível verificar a presença da guerra em um contexto regional, marcado pela dor, morte e
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tragédia. É realidade mais dura e crua que um povo pode vivenciar dentro de sua vida
humana.
Assim, se perpassa a história da região do Grão-Pará que busca por meio da Revolta
da Cabanagem, a sua liberdade e independência; no entanto, vivencia no seio obscuro dessa
revolta as práticas mais drásticas da bandidagem, que assola, mata e destrói a vida das
pessoas. Nesse contexto, a Cabanagem retrata um aspecto histórico ocorrido na região
amazônica do Brasil, trazendo à discussão um episódio que permite analisar a configuração
política e social de um povo que vive sem condições de uma vida digna.
2.3 A Guerra do Paraguai e a história de um voluntário
Para compreendermos a Guerra do Paraguai, que possui grande importância para a
compreensão do conto “Voluntário” de Inglês de Sousa, vale a pena relembrar fatos e
episódios ocorridos durante o século XIX.
Boris Fausto (1995) afirma que o episódio da guerra Napoleônica contra os Ingleses
favorece a chegada da corte real de Portugal ao Brasil, no final de 1807. Esse fato muda a
vida colonial do Brasil, que agora aconchega em seu seio a família real. De acordo com o
autor, a vinda da corte real para o Brasil deslancha uma dinâmica de várias efervescências,
como o cenário cultural que precisa atender a demanda da Coroa portuguesa. Principalmente a
cidade do Rio de Janeiro passa por uma modificação em sua estrutura social e política e
consequentemente cultural, pois se ajustam à nova fase do Reinado Português no Brasil. A
crescente imigração de portugueses, franceses, ingleses e espanhóis fomenta a vida no Brasil
contribuindo com novos fatos, novas ideias e nova conjuntura.
Fausto (1995) apresenta de forma muito objetiva o relato histórico desse período
mencionando o descontentamento ocorrido, como a conflituosa relação entre as forças
militares que ora atendem ao Brasil e ora atendem à Coroa portuguesa, beneficiando com os
melhores cargos a nobreza de Portugal e o alto custo na manutenção da Coroa portuguesa e as
drásticas desigualdades regionais. Esses impasses germinaram revoltas que foram
disseminando-se no país. Entre essas revoltas temos a que ocorreu no Pernambuco em 1817,
estendendo-se até o Sertão e carregando consigo os ideários dos militares, proprietários rurais,
artesões, juízes e comerciantes.
E em relação à Guerra do Paraguai, Fausto (1995) afirma:
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Enquanto o café seguia sua marcha no Oeste Paulista e as propostas de
abolição gradual da escravatura davam os primeiros passos, um
acontecimento internacional iria marcar profundamente a história do
Segundo Império. Esse acontecimento foi a Guerra do Paraguai, travada por
mais de cinco anos, entre 11 de novembro de 1864, quando ocorreu o
primeiro ato das hostilidades, e 1 de março de 1870. Ela é conhecida, na
América espanhola, como a Guerra da Tríplice Aliança (BORIS, 1995, p.
208)
A partir dessa contextualização é possível verificar que a Guerra do Paraguai foi um
conflito militar que aconteceu na América Latina, envolvendo o Paraguai de um lado e a
Tríplice Aliança (Brasil, Uruguai e Argentina) do outro.
Em outro trecho do livro, Fausto afirma:
A guerra constitui um claro exemplo de como a história, sem ser arbitrária, é
um trabalho de criação que pode servir a vários fins. Na versão tradicional
da historiografia brasileira, o conflito resultou da megalomania e dos planos
expansionistas do ditador Paraguai Solano Lopes. Membros das Forças
Armadas – especialmente do Exército – encaram os episódios da guerra
como exemplos da capacidade militar brasileira, exaltando os feitos heróicos
de Tamandaré, de Osório e, em especial, de Caxias. Nas escolas brasileiras,
pelo menos até alguns anos atrás, admirávamos esses heróis e olhávamos
com desdém para a figura sisuda do barbudo Solano (BORIS, 1995, p.208)
Com isso, fica claro que a guerra do Paraguai evidenciou como causa a luta por
conquistas de terras na região da Bacia do Rio Prata, já que esse local garantia a possibilidade
de novas rotas marítimas.
Ainda de acordo com Fausto (1995) a Guerra contabilizou um prejuízo irreparável,
quanto na questão material quanto humana. Morreram aproxidamente 300 mil pessoas, entre
civis e militares. O Paraguai teve uma baixa populacional de cerca de 20%, além de ficar com
a sua economia destruída e ter seu território diminuído drasticamente. Do lado do Brasil,
ressalta Fausto (1995), o prejuízo também foi grande, ficando com a economia totalmente
comprometida.
O próprio título do conto “Voluntário” já denota um tom de dúvida que o autor
assume, no qual, por meio da crítica em torno das ações militares que estavam impregnadas
no seio do país, questiona a guerra e seu reflexo na vida dos habitantes da região amazônica.
Neste sentido, o conto apresenta como eram recrutados os homens para lutarem na Guerra do
Paraguai.
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Sousa (2004) retrata a luta entre Brasil e Paraguai como um movimento estarrecedor
nos recantos amazônicos.
Nas classes mais favorecidas da fortuna, nas cidades principalmente, o
entusiasmo foi grande e duradouro. Mas entre o povo miúdo o medo do
recrutamento para voluntário da pátria foi tão intenso que muitos tapuios se
meteram pelas matas e pelas cabeceiras dos rios e ali viveram como animais
bravios sujeitos a toda espécie de privações. Falava-se de Francisco Solano
Lopez nos serões do interior da província como de um monstro devorador de
carne humana, de um tigre incapaz de sentimento humanitário. A ignorância
dos nossos rústicos patrícios, agravada pelas fábulas ridículas editadas pela
imprensa oficiosa, dando ao nosso governo o papel de liberador do Paraguai
(embora contra a vontade do libertando o libertasse a tiro), não podia
reconhecer no ditador o que realmente era: uma coragem de herói, uma
vontade forte, uma inteligência superior ao serviço de uma ambição
retrógrada (SOUSA, 2004, p.8).
O conto "Voluntário" trata da questão da Guerra do Paraguai, através do
recrutamento de voluntários. Mesmo o conflito ocorrido em terras tão longínquas, os homens
da região amazônica, eram recrutados para ser "voluntários" de forma involuntária para lutar
contra o forte e audacioso Solano Lopes. Verifica-se, através da ótica do autor, que o conto
começa com um tom irônico, que questiona e coloca em dúvida os motivos e a utilidade real
da guerra.
Coisa terrível que era então o recrutamento!
Esse meio violento de preencher os quadros do exército era, ao tempo da
guerra, posto em prática com barbaridades e tirania, indignas de um povo
que pretende foros de civilizados. ( SOUSA, 2004, p. 9)
Em outra passagem do texto o narrador apresenta o personagem como aquele que
vive a seriedade da vida, e demonstra como os habitantes da região amazônica estão
condicionados a um ambiente dominado pelo silêncio e pela solidão. O sentido contemplativo
do caboclo mostra uma sintonia com a natureza e com uma visão futura de seu destino.
O caboclo não ri, sorri apenas; e sua natureza contemplativa revela-se no
olhar fixo e vago em que lêem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da
inteligência ao mundo objetivo e dele assoberbada. Os seus pensamentos não
se manifestam em palavras por lhes faltar, a esses pobres tapuios, a
expressão comunicativa, atrofiada pelo silencio forçado da solidão.
(SOUSA, 2004, p. 6)
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Por meio do conto “Voluntário”, temos a história de um homem chamado Pedro que
vive humildemente cuidando de sua velha e viúva mãe, chamada Rosa. Eles viviam na
margem do rio, bem perto da cidade de Alenquer que fica no interior do estado do Pará. Os
dois viviam tranquilamente até o momento em que aparece o capitão Fabrício e leva Pedro
para lutar na Guerra do Paraguai.
O conto retrata a realidade da família de Pedro, de seu zelo e cuidado pela casa. No
fragmento que segue, vale destacar a descrição de uma casa simples, do povo simples que
habitava a região amazônica.
Apesar da pobreza rústica da casa, com as suas portas de japá e as paredes de
sopapo, com o chão de terra batida, cavada pela ação do tempo, tinha a
tapuia em alguma conta o asseio. Trazia o terreiro bem varrido e o porto
livre das canaranas que a corrente do rio vinha ali depositando. E se os
tipitis, as cuiambucas e todos os utensílios caseiros andavam sempre lavados
com cuidado, as redes de dormir pareciam ter saído do tear, de brancas e
novas que sempre se encontravam. (SOUSA, 2004, p. 3)
Em outra passagem do livro, o protagonista do conto é indicado para lutar na Guerra
do Paraguai, por meio de um desafeto que de alguma forma se vinga do rapaz. Aproveitando
de sua estatura forte e vistosa, o seu desafeto coloca-o como um voluntário apto para guerrear,
como pode ser observado abaixo:
Pedro era em 1865 um rapagão de dezenove anos, desempenado e forte.
Tinha os olhos pequenos, tais quais os do pai, com a diferença de que eram
vivos, e de uma negrura de pasmar. A face era cor de cobre, as feições
achatadas e grosseiras, de caboclo legitimo, mas com um cunho de bondade
e de candura, que atraía o coração de quantos lhe punham a vista em cima.
Demais, serviçal e alegre até ali. (SOUSA, 2004, p. 4)
De acordo com Paixão (2004) o conto, a partir do momento que inicia a história da
reclusão de Pedro, tem um cunho histórico, pois apresenta sistematicamente, um episódio
importante da história do Brasil, a Guerra da Tríplice Aliança. O narrador, que se apresenta
como advogado, busca sem sucesso livrar Pedro desse destino cruel e trágico, mas de nada
adianta, pois ele é embarcado para lutar contra o terrível Solano Lopez. Assim, se deu a
abordagem e o recrutamento.
— Ora bom dia, seu Pedro. Então já sei que vai à caça? E está com uma
bonita arma! Quer vendê-la? E foi lha tirando das mãos, sem que o pescador,
admirado de tão grande afabilidade, pensasse em contrariar-lhe o gesto.
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— Eh, eh! Seu Pedro, você está um rapaz robusto e deveria ser voluntário da
Pátria. O governo precisa de gente forte lá no sul para dar cabo do demônio
do Lopez. Ora, é uma vergonha que você esteja a matar os pobrezinhos dos
papagaios e a arpoar os inocentes dos pirarucus, quando melhor quebraria a
proa aos paraguaios, que são brutos também e inimigos dos cristãos.
Pedro Balbuciava negativas e desculpas. Era filho único... não tinha jeito
para a guerra... quem tomaria conta da pobre velhinha? Mas o capitão pôs-
lhe a Mao no ombro dizendo em voz repassada de mel:
— Pois então tenha paciência. Se não quer ser voluntário, está recrutado.
Pedro deu um pulo para trás, como se fora mordido por uma cobra.
Recrutado, ele! A palavra fatídica soou-lhe aos ouvidos como anúncio de
irreparável desgraça (SOUSA, 2004, p. 13-14)
Esse episódio que coloca em cena o advogado, o juiz e o policial, mostra a
conveniência que existia entre os poderes de mando e comando, em que o pobre Pedro foi
emboscado e enviado a um destino sem volta.
Voltei imediatamente à cidade e, por intermédio de um amigo comum,
obtive do delegado de polícia a licença para ver o recruta na cadeia, mas por
uma só vez, e como exceção rara. O tapuio estava mergulhado num silêncio
apático, de que nada o fazia sair. (SOUSA, 2004, p. 18)
A seguir, a agonia do adeus sem poder despedir-se de seus queridos e a caminhada
fúnebre para o desconhecido, um lugar sem volta.
Os recrutas caminhavam sob um sol ardente, seguidos das mães, das irmãs e
das noivas, que soluçavam alto, numa prantina desordenada, chamando a
atenção do povo. Os homens iam silenciosos como se acompanhassem um
enterro. Ninguém se atrevia a levantar a voz contra a autoridade. Se a fuga
fosse possível, nenhum daqueles homens deixaria de facilitá-la. Mas como
fugir em pleno dia, no meio de tantos guardas nacionais armados e
prevenidos? Nada, mais valia resignar-se e sofrer calado, que sempre se
lucrava alguma coisa. (SOUSA, 2004, p. 20)
O conto não informa como foi o restante da vida de Pedro, se morreu na guerra, ou se
continua a vida em outras terras. O que o conto de Inglês de Sousa trata com clareza é a
relação existente entre os poderes que não vê o outro como detentor de direitos, de sonhos e
de vontades, mas que recruta de forma involuntária, os “voluntários” para uma guerra que até
então, não se entendiam direito o seu princípio e significado e tão pouco a sua utilidade
importância para um país que vivia a transtorno da fatalidade.
A partir desse conto, fica evidente o contexto em que Amazônia se encontrava.
Repleta de vidas que se deslocavam em desatino por um período de guerras e revoltas, as
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pessoas se desprendiam da esperança e da alegria por conta da tragédia assoladora que visitara
suas vidas e famílias.
Percebe-se o quanto Inglês de Sousa é pertinente em sua forma de expor a realidade
de seu tempo, através de sua literatura que se encarrega de apontar os devaneios de uma
época, em que tudo se baseava no discurso de uma política imprudente que não garantia a paz
e o equilíbrio.
De fato, a história é feita de lutas, guerras, tragédias e pouquíssimas conquistas, mas
a Amazônia de Inglês de Sousa vai muito além desse cenário, e vivencia o que a vida tem de
mais cruel. O interessante é que esses contos são também feitos de mitos. Mas essa
abordagem, mostraremos no próximo capítulo.
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