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Bettina usava um chapéu engraçado; Roxanne achou que ela ficava parecida
com a avó de Chapeuzinho Vermelho, mas não comentou nada. Parece que a
mãe também achou que não estava bem porque fez cara de choro, e saíram
todos atrás de um véu preto e uma flor. Era só isso o que ela queria.
— Eu disse que não queria usar chapéu — reclamou. — Não tenho tipo para
isso. Não sei o que me deu na cabeça para comprar essa coisa estranha: Bem no
dia do casamento da minha filha, não vou fazer papel de palhaça! Com essa
coisa horrenda, eu não saio de casa. Prefiro não ir à igreja!
O pai, ao contrário, não abria a boca. Andava de cá para lá, e de lá para cá, a
passos largos, como um relógio de ponto. Roxanne ficou até cansada de olhar.
Não era possível! Nem um atleta teria conseguido tanto.
Sentada, já arrumada, esperando a hora de sair, começou a ficar com um sono
terrível. Que idéia obrigarem a noiva a se vestir com tanta antecedência!
Não podia nem pensar em se deitar um pouquinho. E bem que precisava!
Sentia as pernas bambas feito gelatina e um enjôo no estômago que aumentava
a cada minuto. Era como se estivesse caindo num poço muito fundo e não
encontrasse nada para se agarrar.
Não, isso não ia acontecer! Fechou os olhos, tentando manter a calma. Procurou
se lembrar de cada detalhe daquela casa que estava prestes a deixar. Pensar em
coisas familiares talvez a ajudasse a encontrar forças.
Lembrou-se do quadro da sala. Aquele dos grandes cavalos negros pastando,
com uma cerca ao fundo. Quando criança, costumava ficar olhando para eles,
fascinada, esperando, que, a qualquer instante, saíssem daquela imobilidade e
saltassem a cerca para ir descobrir o que havia do outro lado. Agora, sentia-se
como aqueles cavalos: presa à sua própria passividade. Era impossível saltar a
cerca e fugir.
Os cachimbos do pai. O morno cheiro de fumo. Ia sentir tanta falta daquilo.
Cheiro de lar. Ele sempre acendia o cachimbo, quando se sentava para lhe
contar suas histórias favoritas. Como a do gigante sem rosto que comia gente.
Senhora dona Sancha, coberta de ouro e prata, descubra seu rosto, queremos
ver sua cara!
Abriu os olhos, assustada. Rhonda levantava seu véuzinho.
— Roxanne, não é possível. Dormir no dia do casamento! Só faltava roncar. Está
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(Sabrina 196)
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na hora, criatura. Que calma enervante!
Não saberia dizer como, de repente, estava na porta da igreja, de braço dado
com o pai. Repetiu as palavras da cerimônia automaticamente, quase sem se dar
conta da sombra do estranho a seu lado. Só na hora da aliança, ergueu o rosto e
viu o olhar grave e concentrado dele.
O tempo parou.
Prometi amá-lo, honrá-lo, até que a morte nos separe. Ele também prometeu.
Mas só nos detestamos... Como vai ser de agora em diante?
A pergunta continuou a martelar em sua cabeça, enquanto a cerimônia
prosseguia, mal escutando as palavras solenes de um sermão que lhes pedia
amor.
Começou a rezar. Que as coisas se endireitem, meu Deus!
Chegou a hora das assinaturas, dos cumprimentos.
A mãe tinha o rosto molhado e Rhonda, vestida de azul, como dama de honra,
estava ansiosa para beijar a irmã e o cunhado.
No carro, durante o rápido caminho até a recepção, Sebastian segurou a mão
dela com força. Roxanne não via seus olhos, só a boca sem ternura, rude e firme.
Na recepção, ao lado dele, ouviu discursos, tilintar de copos, parabéns, rindo
daqui e dali para todos, desejando o fim do pesadelo. Percebia a alegria do pai
por sua voz que se alteava sobre as outras. Viu Max Ansell dirigindo-se para o
grupo de Delia. A garota estava elegante, o cabelo loiro cortado mais curto, um
vestido azul que realçava seus olhos. Usava bastante pintura, mas bem-feita,
toda em tons azuis combinando com a roupa. Ainda era a bela Delia, mas o riso
tinha sido domado; os gestos, dosados.
Esquecendo os próprios problemas, Roxanne observou Max parar de falar com
a moça, a surpresa dela, o jeito como sacudiu a cabeça negando e a raiva de
Max, denunciada pelo rubor do seu pescoço.
A festa estava acabando. As pessoas ofereciam carona umas às outras e
resolviam quem iria para a casa dos Challis e quem iria embora.
Num impulso, Roxanne aproximou-se de Max, que ousadamente lhe deu um
beijo na boca.
— Viva a noiva! Você está linda, e Blair é um sujeito de muita sorte, mesmo.
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— Obrigada. Sabe onde está Delia? Fez o meu penteado e eu queria dar a ela
uma rosa do bolo, como lembrança. Parece que a vi conversando com você,
agora há pouco.
— Você viu Delia me dando o fora. Saiu com uns amigos do seu marido.
Novidades. Uma noite na cidade.
— Duvido — respondeu, calma. — Percebeu como baixou o tom de voz e que
mudou de jeito, nos últimos tempos?
— Truques. Só truques para conseguir um namorado novo. Conheço o gênero.
— Você a feriu muito, sabia?
— Ela estava pedindo.
— Você é inatacável, com certeza.
— Está bem, ganhou. Fui muito rude. Perdi a cabeça.
— Porquê?
— Você sabe o porquê. Estou querendo esganar aquele pescocinho há meses, e
só percebi o motivo naquela festa. Não a culpo. Agora, ela deve me odiar.
— Acho que as pessoas não fazem mudanças drásticas em si próprias para
agradar a quem odeiam, não? Até pensou em deixar os cabelos castanhos outra
vez, usar roupas de Gata Borralheira!
— Burrinha! — ele comentou, com um leve sorriso um pouco esperançoso. —
Com ela, é oito ou oitenta!
— Ela é assim. E se você não tomar uma providência, Delia vai acabar num
convento; vira freira.
Max deu uma gargalhada.
— Não podemos deixar que isso aconteça. Mas eu não conseguiria impedi-la.
— Por que não? Se um dia ela se apaixonar, vai se dar inteira. Não faz nada pela
metade.
— Sei que você já percebeu, Roxanne. Acreditem ou não, quero me casar com
ela. E mantê-la com a rédea curta, que é disso que ela precisa!
Parecia muito possessivo e chauvinista, mas Delia encontraria um porto seguro
num marido ciumento.
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— Boa sorte para vocês, Max.
— Vou precisar mesmo — murmurou, tristonho.
A conversa com o rapaz ajudou Roxanne a voltar novamente à realidade.
Sebastian veio chamá-la e levou-a para o carro de Neal Osborne, que estava
escondido, esperando por eles com hora marcada. Iriam até Auckland e, de
avião, até Rotorua.
Quando Sebastian lhe perguntou onde queria passar a lua-de-mel, Roxanne
sugeriu aquele lugar com sarcasmo e ele tinha levado a coisa a sério. Marcara o
hotel, nas teimas de Whakarewarewa.
Guiou calado por algum tempo. A tensão começou a crescer.
— Sua mãe parece muito moça.
A sra. Blair tinha sido encantadora, mas bastante formal. Parecida com a carta
que mandara, no noivado. Sebastian deu de ombros.
— A sua também.
— Correu tudo bem, você não achou?
— Muito. Sua mãe merece parabéns.
— Você está fazendo ironia, por acaso? — perguntou, percebendo uma nota
ríspida no tom dele.
— Não, mas não é preciso ficar puxando conversa, só por minha causa,
Roxanne.
A moça virou o rosto para a janela, fez força para não chorar, mordeu o lábio.
— Fazendo manha? Ou com medo?
Segurou o queixo dela com força, tentando obrigá-la a encará-lo. Roxanne
chorou, sem querer, uma lágrima sentida.
— Não vou violentar você, menina — disse, suavemente. — Será que esta
promessa ajuda?
Beijou-a, Ela não retribuiu e sentiu a raiva e a frustração dele, o que lhe deu
prazer.
Não vai ser fácil assim, pensou ela. Alguma coisa se rebelava contra a idéia de
um casamento baseado no sexo, e não no amor. Uma musiquinha obsessiva
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martelava em sua cabeça: "o anel que tu me destes era vidro e se quebrou, o
amor que tu me tinhas era pouco e se acabou..."
Que coisa boba de lembrar.
Talvez um dia tivessem se amado, um pouquinho. Acabara-se tudo. Que
espécie de casamento poderia construir sobre uma base de desilusão e
amargura? Que chance de felicidade tinham? Nenhuma.
CAPITULO VII
Jantaram no hotel e Roxanne descobriu, surpresa, que estava com fome. A
ponto de dar cabo de um prato de ostras muito frescas, de um ensopado de
carneiro cheirando a vinho e ervas aromáticas e de um fortíssimo sorvete
coberto de fruta kiwi e de creme. Um vinho leve, espumante, acompanhou a
refeição, e o café estava forte e quente.
O hotel tinha uma pequena pista de dança e uma orquestra tocava, mas
Roxanne se negou a dançar, quando Sebastian a convidou. Não queria ficar
muito perto dele, embalando-se com música romântica num ambiente pouco
iluminado.
Quando ele se levantou e puxou a cadeira para ela, lembrou-se de que a
intimidade do quarto, com suas camas gêmeas, seria mais sufocante ainda e
sugeriu:
— Vamos andar um pouquinho. Preciso de ar fresco.
— Claro. Você está bem agasalhada?
Ela usava saia e blusa de seda natural e um casaquinho. Acenou que sim,
atravessaram o vestíbulo do hotel e saíram para a noite fria. Sebastian caçoou:
— Ar fresco era o que você queria?
Ela riu também, porque havia um cheiro de enxofre denso e forte.
— Faz bem à saúde — respondeu. — Mas a gente se acostuma logo e nem sente
mais.
Ele a segurou pelo braço, guiando-a por um caminho que ladeava um riacho
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preguiçoso e onde se escutava o barulho de água fervente, subterrânea.
— Definitivamente, é um passeio de não se tirar o nariz do chão. Perigoso —
disse ele.
Roxanne já ia concordar, mas mudou de idéia. O que ele queria, sendo gentil,
era desarmá-la. Estava sendo educado, braço passado à volta de seus ombros,
andando passo a passo com ela. Continuaram em silêncio, até chegarem ao
jardim público, às margens do lago e tomaram um dos caminhos que levava à
água. A lua fazia mil brincadeiras com as pequenas ondas que se enroscavam e,
no ar, o cheiro era de rosas e enxofre, misturados.
Numa ponte ornamental sobre um riacho quente que desaguava no rio,
Sebastian parou. Roxanne debruçou-se no parapeito de madeira. Podia sentir a
respiração dele nos cabelos, o calor de seu corpo tão perto. Não muito longe,
ouvia-se música maóri, vozes altas e excitadas, a batida rítmica dos pés nus no
chão.
Roxanne estava apreensiva, nervosa.
— Calma, relaxe — sussurrou ele em seu ouvido. — Aprecie o luar e a
paisagem.
Ela obedeceu, cansada, e, quando viu, estava nos braços dele, num beijo
apaixonado, suas mãos quentes percorrendo, possessivas, o corpo dela.
Não se mexeu, estava assustada. Através dos olhos entreabertos, via a lua
parecendo querer hipnotizá-la. O carinho ia e vinha, foi se sentindo morna,
desarmada, toda trêmula por dentro e por fora, frágil e carente de amor.
E o beijo dele era a resposta a tudo isso. Um desejo devorador que a consumia
inteira, que fazia com que se esquecesse de tudo, a não ser de seus corpos
unidos, tão perto, que o bater do coração de um era o do outro.
Sentiu que ele ficava excitado demais e acordou do sonho, para tentar lutar
contra aquela força que a dominava.
— Não faça isso, sua boba. Não brigue comigo. Não há nada para ter medo.
— É fácil dizer. O que você espera de mim, usando força bruta para me beijar?
Largou-a
— Pronto, o bruto largou a presa indefesa. Agora, vamos voltar para o hotel?
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No quarto, perguntou se ela queria usar o banheiro primeiro. Aceitou, tomou
um banho de chuveiro demorado, escovou os cabelos e saiu com o seu robe de
noiva, rosa, com muita renda, bem amarrado sobre a camisola do dia.
Ele voltou do banheiro de roupão e ela percebeu que não usava pijama por
baixo. Parou em frente da cama onde ela estava sentada e perguntou:
— Ainda me odeia, Roxanne?
— Ainda.
— É pena.
Segurou seus pulsos com uma das mãos, obrigando-a a se levantar, e tirou a
colcha da cama. Depois, soltou o cinto do robe cor de rosa, que se abriu e caiu
de seus ombros.
— Linda — murmurou, afagando as rendas do decote. — Muito virginal.
Empurrou-a, delicadamente, para a cama... e cobriu-a com o lençol.
— Boa noite, mulherzinha. Durma com os anjos. E apagou a luz, para espanto
atônito de Roxanne.
De manhã, quando ela acordou, ele já estava vestido, sentado, lendo o jornal.
— Alô. O café da manhã começa daqui a dez minutos e aluguei um carro para
as nove horas. Quer ir a algum lugar especial?
Roxanne negou com a cabeça, muda.
— Há muitos lugares interessantes. Estudei os folhetos que estavam na gaveta
da cabeceira. Já esteve na Cidade Soterrada?
— Quando era pequena. — Quer voltar lá?
— Para mim, tanto faz. Como quiser:
Sebastian levantou-se, muito alto, parecia um inquisidor.
— Estou apenas tentando ser gentil, querida. Foi sua idéia vir aqui.
— Você sabe que pouco estou ligando para isso. Não queria lua-de-mel
nenhuma.
— Não queria nem casamento, não é? — ele zombou. — Mas casou. E está
tendo uma lua-de-mel, como nos romances. Beijos ao luar, e, hoje, os prazeres
turísticos. Ou prefere passar o dia no quarto? Também faz parte da tradição, é
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claro.
— Não quero ficar aqui, trancada com você por nada deste mundo. Qualquer
lugar é melhor.
Afastou as cobertas, pegou o robe e se levantou.
— Você é o mestre e o senhor: irei aonde mandar. Pessoalmente, sempre odiei
este lugar. Me dá horror, me deixa arrepiada!
O céu anuviou-se, enquanto exploravam a cidade que fora engolida pelo vulcão
e soterrada numa noite de 1886, quando o Tarawera, bem perto dali, entrou em
erupção tão forte que seu topo cônico explodiu e alterou para sempre a
paisagem de uma área enorme. Os famosos terraços e as casas construídas nos
declives dos morros desapareceram e só existiam agora em velhas fotos em
sépia e em pinturas do século dezenove, de muito mau gosto.
As ruínas das moradias da antiga cidade haviam sido descobertas nas
escavações para se tornarem atrações turísticas, cheias de panelas, pratos e o
mais que tinha sobrado da catástrofe. Placas contavam histórias das pessoas que
sentiram o terror do fogo, e havia uma plaqueta na cabana de alguém que ficara
preso por vários dias e depois, miraculosamente, acabou sendo resgatado.
Sebastian examinava tudo com interesse e Roxanne, com horror fascinado.
Continuaram o passeio por Waimangu para ver as "maravilhas" termais que
haviam sido formadas com a erupção.
Eram terraços de sinca, brancos como leite, constantemente lavados por uma
fina película de água, buracos de lama borbulhante e um lago profundo de água
fervente cercado de precipícios cobertos de vapor e do sempre presente enxofre
amarelo.
Almoçaram tarde, num restaurante sobre o vale, denso de emanações, e aí caiu
a chuva. Voltaram para a cidade, visitaram o pequeno centro de Maori em
Ohinemutu, com a estátua da rainha Vitória sobre uma coluna entalhada.
Andaram pela igreja, mistura de trançados tradicionais, esculturas e enormes
janelas modernas de vidro, com a figura de Cristo trabalhada em jatos de areia
sobreposta ao lago, de modo que parecia andar sobre as águas.
A tensão que Roxanne sentira durante todo o dia começou a relaxar na igreja,
interessada que ficou na arquitetura e esculturas. Quando saíram, ainda chovia
bastante e tiveram que dar uma corrida até o carro. Sebastian olhou pela janela
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e achou melhor voltar ao hotel.
— Quem sabe, podemos ir aos banhos azuis? — sugeriu.
Com aquele mau tempo, nadar em águas minerais mornas parecia uma boa
idéia.
Boiando preguiçosamente na piscina, observando Sebastian mergulhar do alto
trampolim, Roxanne sentiu as lágrimas se misturando com as gotas d'água em
seu rosto. Uma lua-de-mel devia significar felicidade perfeita, tempo para um
homem e uma mulher que se amavam descobrirem segredos, intimidades. Que
lua-de-mel era aquela, com Sebastian a clamar por seus direitos, sem amor, e
ela, determinada a não ceder, atenta a cada movimento para fugir, desconfiada
de cada momento de ternura.
Fechou os olhos, tentando afastar o pensamento, as emoções. O calor da água e
o vapor que subia eram como um soporífero e ela estava quase adormecendo,
quando dedos fortes apertaram seu rosto molhado.
— Dormindo? Que idéia! Pode se afogar. Era Sebastian. Quem mais?
— Talvez fosse uma boa idéia. Ele não achou graça.
— Não seja idiota. Se está se sentindo tão infeliz, a culpa é toda sua. Você está é
com medo de estender a mão e pegar o que está a seu alcance.
— Talvez eu não queira aquilo que posso pegar. Talvez queira aquilo que está
fora do meu alcance.
Virou-se para nadar para longe, mas ele a segurou pelo braço e puxou-a.
— O quê, por exemplo? Você disse que não queria Mark.
— Liberdade — disse ela. — Acho que é impossível imaginar que eu não queira
homem algum, não é?
Ele caçoou:
— Você não é o peixinho gelado que finge ser, Roxanne. Já vi o gelo derreter
uma ou duas vezes. Vai derreter de novo. Por mim.
— É o mais irresistível dos homens, não é? Lembre-se de que eu estava
fingindo. Há uma diferença.
Um grupo de crianças entrou estabanadamente na água e ela aproveitou para
sair e ir se vestir.
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Naquela noite, depois do jantar, enquanto Sebastian conversava com um
hóspede, Roxanne subiu para se deitar, pegou uma revista qualquer e caiu em
sono profundo com a revista do lado, a luz acesa e tudo. Estava realmente
cansada.
Passaram o dia seguinte num dos riachos de truta, observando os peixes
preguiçosos nadando em águas fundas, mas tão transparentes que dava para
ver cada seixo do fundo. Fizeram um piquenique por ali mesmo. Roxanne
alimentou peixes, pardais e pombos e aceitou relutante o convite para ver o
gêiser Pohutu mais tarde.
Não queria que Sebastian soubesse, mas sentia pavor daquele lugar. Ainda
menina, tinha visitado Rotorua e foi perseguida por pesadelos durante muito
tempo depois. Que importava isso agora? Estava deprimida e triste por motivos
bem mais sérios. Sebastian nem tinha chegado perto dela, o dia inteiro. É claro
que não havia desistido, estava só ganhando tempo. Do ponto de vista dele, era
uma causa ganha. Legalmente casados, juntos, ele a desejava e sabia que ela o
queria; pelo menos, um pouco. Era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, o
natural acontecesse. Então, por que não aceitar? Por que aquela resistência
inútil que o deixava furioso e amargo? A resposta vinha-lhe fácil. Porque queria
que fosse por amor; e não o pagamento de uma dívida; não a cobrança de um
contrato.
Um dia, ele devia ter sentido amor por ela... Um homem não pede em
casamento alguém a quem não ama. Não um homem como Sebastian.
Subitamente, entendeu tudo com a maior clareza do fundo de um rio cheio de
pedrinhas. Entendeu que ele a amava e que sofrerá ao ser rejeitado, passando a
sufocar seus sentimentos. E ela, tonta, não tinha sido capaz de enxergar a
verdade. No momento, só pensava na família. Realmente, que coisa fora de
propósito fizera!
Como remediar seu erro agora? Ferido, será que ele passara a não gostar dela?
Gostava ainda? Como saber? Não, não podia contar com o amor de Sebastian.
E, ao admitir que o perdera para sempre, veio a dor inesperada de saber que ela
o queria mais do que tudo na vida...
Ainda tremia por dentro, com sua recente descoberta, quando visitaram a
Escola de Artes Nativas. Quase não escutou as explicações de como a escola
surgira para salvar as técnicas antigas, que estavam ameaçadas de desaparecer.
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Foram para as teimas e Sebastian andava sempre longe dela. Roxanne custava a
disfarçar o medo e a necessidade de alguma segurança, um braço, um apoio.
Ao descerem, voltando por entre poços de barro cinza, e buracos sulfurosos que
espirravam jatos de água fervendo, começou a sentir o terror infantil que a
perseguira durante a primeira visita ao gêiser. Não muito antes da ida da
família Challis a Rotorua, uma mulher tinha caído sem querer ou se suicidado
num dos poços. Roxanne vira as notícias pela televisão, e no passeio, de mãos
dadas com o pai, fugia das "atrações" do lodo e da água quente.
Enjoara com cheiro de enxofre, o borbulhar teimoso da lama, a vegetação podre
que parecia o corpo meio decomposto de um animal que se mexia a cada
movimento do barro.
Agora, Sebastian a acompanhava, mas não segurava a sua mão. Estava
interessado nos fenômenos, e quando chegaram ao lugar do Pohutu, depois de
passarem pela cascata do Véu de Noiva, Roxanne era só ressentimento, medo e
aflição.
Um grupo de turistas escutava com atenção a guia maori vestida a caráter,
corpete vermelho e saia de linha estampada de preto e uma tira trançada na
testa. O Pohutu esguichava fortes jatos de vapor e água quente, e Sebastian
andava por ali, procurando um lugar com melhor visão. Ofereceu a mão a
Roxanne, quando passou, e ela recusou. No mesmo momento, o chão sob seus
pés começou a vibrar e um ruído profundo e amedrontador saiu da terra.
— Sebastian! Cuidado! — ela gritou. Ele se voltou, espantado.
— Não tem perigo. Não vou chegar perto.
O gêiser escolheu aquela hora para se exibir e, como uma besta descontrolada,
soltou uma enorme coluna de água fervendo de suas entranhas. Os turistas
bateram palmas, fotografaram de todos os lados e Roxanne viu Sebastian,
encantado, tentando apreciar o espetáculo de mais perto.
Que ele ficasse por lá. Ela ia fugir. Cedeu a um medo irracional de criança e
começou a andar em meio ao vapor espesso. O chão de sílica resistente mudou
para terra encrustada de enxofre, e ela continuou a andar, evitando as fendas do
chão, o vapor tomando conta do seu corpo, até que a perna afundou num
buraco e a água quente tocou seu tornozelo.
Aterrorizada, teve visões do inferno. Era engolida pela línguas de fogo.
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