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A
PRÁTICA
DA
GESTALT-TERAPIA
NO
TRATAMENTO
DA
DEPENDÊNCIA QUÍMICA
Para iniciarmos um capítulo referente ao tratamento psicológico sob a visão da
Gestalt-Terapia, devemos começar abordando o conceito de diagnóstico. Segundo Yontef
(1998), diagnóstico tem origem em duas palavras gregas: “saber” e “por meio de ou entre”,
que concerne a distinguir ou discriminar. Ao nos indagarmos acerca da importância do
diagnóstico no tratamento da dependência química nos deparamos com o fato do diagnóstico
ser, no meio da gestalt-terapia, questionado por promover o afastamento do relacionamento
dialógico humanístico, base do encontro terapeuta-cliente. Contudo, segundo o Yontef (1998)
o diagnóstico pode, por sua vez, auxiliar a terapia humanística, facilitando a compreensão e a
autoexperiência, melhorando a eficácia da terapia.
Dentro do processo de diagnóstico, não podemos deixar de mencionar o conceito de
padronização que, conforme destaca Pimentel (2003, p. 57-58):
Padronização é, portanto, uma atividade estruturada que visa identificar no
movimento cotidiano do paciente os sinais que podem apontar para a estrutura de
hábitos, valores e comportamentos comumente usada para relacionar-se consigo
próprio, com os outros e com o mundo.
Nesta mesma linha de raciocínio, Fagan e Shepherd (1980) utilizavam a mesma
expressão de padronização para fugir das comparações com o modelo médico, tendo em vista
que as críticas feitas ao diagnóstico convencional tinham a ver com o fato de que estavam
sendo considerados apenas os critérios diagnósticos, cuja função é verificar o que há de
comum entre os homens, e para isso, agrupa, nomeia e classifica tudo o que diz respeito à
perda dos mecanismos normais de funcionamento, citando como exemplos o CID, o DSM etc.
Os autores consideram também que a padronização é efetuada no “próprio processo
terapêutico, em vez de ser obtida através do registro histórico ou entrevistas” (FAGAN;
SHEPHERD, 1980).
Conforme assinala Frazão (1996), toda classificação tem a função de verificar aquilo
que é comum, e no caso dos critérios diagnósticos verificam-se as características comuns à
perda dos mecanismos normais de funcionamento. Contudo, no trabalho terapêutico é preciso
ver o homem tanto em suas características comuns, quanto em suas características individuais,
tornando o diagnóstico restrito à comunalidade (o que há de comum entre os homens),
passando a faltar a singularidade (o que há de diferente, próprio, singular em cada homem).
Deste modo, embora haja características em comum com outros, cada ser humano é único.
É imprescindível destacar que Fagan e Shepherd (1980) mostravam-se inclinados em
distinguir o psicodiagnóstico formal do informal, pois assim o psicólogo não entra na relação
terapêutica como autor principal, na cena do diagnóstico, negligenciando a relação dialógica
Eu-Tu. O termo padronização, utilizado por estes, atribui ao profissional a responsabilidade
de contato com o paciente, a compreensão da interação dos acontecimentos e sistemas que
formaram o padrão de sintomas, bem como encontra o ponto principal do problema, para
assim intervir e fazer a avaliação da intervenção (FAGAN; SHEPHERD, 1980). Contribuem
os autores, desta forma, no desenvolver de uma técnica diagnóstica distinta dos modelos
convencionais, que possibilita a gestalt-terapia realizar a intervenção psicoterápica.
Como ressalta Yontef (1998), a importância do psicodiagnóstico e das suas
possibilidades dá-se, sobretudo, no que tange à informação entre os profissionais, aumentando
assim a compreensão estrutural da personalidade do paciente e, ao ser efetuado um
planejamento cuidadoso da intervenção, levamos também em consideração o contato do
paciente com a sua experiência.
Diagnosticar pode ser um processo de prestar atenção, respeitosamente, a quem a
pessoa é, tanto como um indivíduo único como no que diz respeito às características
compartilhadas com outros indivíduos. Categorização, avaliação e diagnóstico são
partes indispensáveis do processso de avaliação e todo terapeuta competente o faz.
Fazemos discriminações a respeito de padrões gerais, sobre que tipo de pessoa o
paciente é, qual o problema central e os principais recursos, a trajetória provável do
tratamento, que abordagens têm maior probabilidade de funcionar, os sinais de
perigo (YONTEF, 1998, p. 278- 279).
Abordando agora a patologia da dependência química, é de suma importância
evidenciarmos um dos seus fenômenos mais comuns entre a maioria dos pacientes - o
conceito de recaída. Este conceito é definido por alguns teóricos como um retorno aos
sintomas, após um período de remissão, ou por outros, como qualquer retomada aos
pensamentos e comportamentos disfuncioanis (ex. pensamentos de usar a substância e a
hábitos da época do uso, como continuar mentindo para as pessoas). Outros autores utilizam o
conceito de recaída como um processo dinâmico, que acaba resultando no retorno aos padrões
anteriores de comportamentos-problema, incluindo uma série de variáveis que podem ser
observadas por meio de frequência e intensidade de pensamentos, afetos e comportamentos
(DIEHL; CORDEIRO; LARANJEIRA, 2011).
Deste modo, o gestalt-terapeuta poderá usar ferramentas diagnósticas com objetivo de
procurar o significado das figuras que emergem, auxiliando a identificação do padrão
existencial do paciente e levando em consideração todo movimento singular individual. Além
disso, surge ainda a possibilidade de realizar diagnósticos diferenciais e, como medida, caso
se faça necessário, a necessidade de alteração de conduta terapêutica aplicada (PIMENTEL,
2003).
O processo de diagnóstico na gestalt-terapia busca o significado da relação entre
figura e fundo, e um estudo fenomenológico do processo figura e fundo de uma pessoa gera
uma melhor compreensão da organização da sua pesornalidade (YONTEF,1998). Todavia,
cabe destacar que o diagnóstico não deve estar presente somente no princípio da relação com
o cliente, e sim acompanhar todo o processo terapêutico, trazendo à tona a percepção sobre “o
que está acontecendo? E a serviço do que isto está acontecendo? (qual a função?)” (FRAZÃO,
1996, p. 29). Portanto, o objetivo do diagnóstico é compreender o que se passa com este
indivíduo único, a fim de discriminar a melhor forma de possibilitar que a Gestalt inacabada
se complete.
Frazao (1996) propõe que, uma vez que o diagnóstico deve acompanhar o processo
terapêutico, devemos abordar o pensamento diagnóstico processual. Segundo a mesma,
descrito da seguinte forma:
Pensamento, porque me refiro à reflexão do terapeuta, que o ajuda a compreender
o que se passa com o cliente. Diagnóstico, porque se trata de um conhecimento que
ocorre a partir da relação com o cliente e que visa discernir/discriminar o que se
passa com este cliente. Processual, porque deve acompanhar o processo terapêutico
e, tanto quanto este, estar constantemente mudando e se reconfigurando, pois, à
medida que nos relacionamos com nosso cliente vamos ampliando cada vez mais
nosso conhecimento, o que nos possibilita uma compreensão cada vez maior.
Pensar em termos de processo implica levar em consideração o crescimento do
cliente, suas mudanças ao longo do tempo e na sua relação consigo e com o outro,
as de seu mundo intra e inter-pessoal. (FRAZÃO, 1996, p. 29, grifo do autor)
Para abordarmos agora os sintomas, devemos relembrar o conceito de normalidade
em gestalt-terapia, que concerne ao ajustamento criativo, mais especificamente à capacidade
do organismo interagir ativamente com o meio, possibilitando a satisfação de suas
necessidades. Porém, como nem sempre o meio pode atender às necessidades, ocorre um
ajustamento criativo para se manter o equilíbrio, no qual a pessoa modifica sua necessidade, a
fim de que possa ser suprida (FRAZÃO, 1996). Tal ajuste é crucial para a sobrevivência
psíquica do indivíduo num determinado momento, mas se este se mantém acaba se tornando
disfuncional. Podemos observar tal fato no fenômeno da dependência química, quando a
necessidade da droga torna-se um ajustamento criativo disfuncional e cristalizado, uma vez
que o organismo busca incessantemente se vincular a substância dependente.
De acordo com a visão gestáltica de homem único e singular, é impensável tratar a
questão do diagnóstico por um caminho linear e padronizado com todos os clientes. Além
disso, devemos ressaltar que, embora os critérios diagnósticos sejam bastante úteis, devem ser
inter-relacionados com toda a complexidade que compõe o processo terapêutico,
possibilitando-nos somente de ter uma ideia da organização psíquica do cliente. Pensamos que
por um lado essa crítica é pertinente, pois o que nos interessa é compreender o ser humano
tanto em suas características comuns quanto em suas características individuais. Sem falar que
faltam aos critérios diagnósticos uma descrição e uma compreensão mais aprimorada da
organização psíquica de cada pessoa em sua singularidade existencial.
Diante de tal conjuntura, paramos para nos questionar o que de fato constitui um
diagnóstico? “O diagnóstico pode ser um processo de prestar atenção, respeitosamente, a
quem a pessoa é, tanto como indivíduo único como no que diz respeito às características
compartilhadas com outros indivíduos” (YONTEF, 1998, p. 278). Para Augras (1986), o
diagnóstico significa identificar e explicitar o modo de existência do sujeito no seu
relacionamento com o ambiente em determinado momento.
Face ao exposto, devemos enfatizar que o diagnóstico é apenas uma indicação do
caminho a ser seguido, e que é de suma importância que estejamos em constante
questionamento sobre o que está acontecendo e para que está acontecendo. Tratando-se de um
processo, implica levar em consideração, portanto, o crescimento do cliente e sua mudança ao
longo do tempo.
Nessa perspectiva, diagnosticar requer de nós uma atitude mais compreensiva do que
explicativa ou interpretativa, onde não se restringe a detectar que “doença” a pessoa tem, e,
sim, busca compreender “em que ponto da existência essa pessoa se encontra e que feixe de
significados ela constrói em si e no mundo” (AUGRAS, 1986, p. 12).
O importante para nós é saber, no tocante à dependência química, em que momento
existencial o cliente encontra-se, como está lidando com este momento, que aspectos de sua
subjetividade podem estar cristalizados, causando-lhe sofrimento e quais as possibilidades de
expansão e criação, buscando compreender o sistema total de cada cliente.
Vale destacar a importância do pensamento diagnóstico na Gestalt-terapia por ser este
uma ferramenta a mais que possibilita ao terapeuta buscar novas formas de lidar com suas
cristalizações, bloqueios, com vistas a superá-los, para que ele possa seguir seu processo de
crescimento e desenvolvimento.
Enfim, podemos compreender que o pensamento diagnóstico processual faz sentido
para nossa prática clínica, porque implica em falar do crescimento do cliente, da sua relação
consigo, com o outro e com o mundo. Significa abertura, pois solicita uma constante
reconfiguração do pensamento diagnóstico que dê conta de acompanhar a beleza do processo
de transformação do cliente.
Deste modo, podemos definir a prática clínica ou abordagem clínica:
Psicoterapia é o tratamento, por meios psicológicos, de problemas de natureza
emocional, no qual uma pessoa treinada estabelece deliberadamente um
relacionamento profissional com um paciente, com o objetivo de remover, modificar
ou retardar sintomas, de intervir em modelos perturbados do comportamento e de
promover um crescimento e um desenvolvimento Positivo da personalidade.
(RIBEIRO, 2013, p. 50)
Atualmente, minha experiência de trabalho com dependência química dá-se tanto em
consultório particular, quanto em instituição de modelo de internação para tratamento à
revelia. Na instituição, posso inteirar que o indivíduo passa inicialmente pelo processo de
desintoxicação, e neste período o tratamento focaliza-se na assistência no leito somada à
intervenção medicamentosa, que cabe ressaltar é de suma importância para promover a busca
da reorganização das funções biológicas, como alimentação e sono. É uma etapa fundamental,
pois geralmente os pacientes chegam bastante debilitados, após muitos dias de uso, no qual
nem se alimentavam, à mercê de mais uma dose. Contudo, esta etapa inicial de tratamento
demanda o mínimo possível de abordagem terapêutica. Tal fato dá-se pelo fenômeno da
síndrome de abstinência, que se trata de adaptações feitas pelo cérebro, devido à interrupção
ou redução do uso da droga, ocorrendo manifestações clínicas da abstinência da substância
pelo corpo e podem variar de uma droga para outra (FIGLIE; BORDIN; LARANJEIRA,
2004).
Em referência a síndrome de abstinência, Diehl, Cordeiro e Laranjeira (2011)
consideram que o termo esteja estritamente ligado ao conceito de tolerância farmacodinâmica,
adquirida pelo uso/abuso da substância, no qual o organismo adapta-se à presença da
substância, decorrente da adaptação dos receptores à droga. Todavia, após determinado tempo
esses receptores deixam de apresentar os efeitos anteriores produzidos pela droga, ocorrendo
um novo equilíbrio atingido. Contudo, na falta da quantidade adaptada pelo organismo, o
indivíduo começa a apresentar sintomas de desequilíbrio, chamado abstinência. Trata-se de
um fenômeno puramente farmacológico, podendo ocorrer na pessoa mesmo em coma, no feto
ou no recém-nascido.
Após o período de desintoxicação, aproximadamente de uma semana, o tratamento
evolui para as atividades terapêuticas, quando o paciente é inserido no cotidiano da clínica,
especificamente montada para recuperar as suas funções executivas, que foram afetadas
também pelo seu uso. Eles voltam à rotina com disciplina, passando a ter horários para comer,
fumar, tomar banho, praticar exercícios físicos e, sobretudo para participar das propostas
terapêuticas. Tais atividades terapêuticas são feitas especialmente em grupo no primeiro
momento terapêutico, devido ao isolamento social que a dependência química promove, tendo
agora como objetivo a reinserção deste nos relacionamentos interpessoais. Vale ressaltar que a
maior parte do seu tratamento dentro da instituição é feito em grupo, diferentemente da
prática no consultório, que é puramente individual.
A dependência química afeta o organismo como um todo, seja no processo fisiológico,
através da compulsão da repetição pelo uso; no psicológico, com a obsessão mental para
consumir mais uma dose; no sociológico, através de uma estigmatização da sociedade, que
rotula o indivíduo como “mau caráter”, “cachaça”, “viciado”; e na parte espiritual, que vai
explicar a perda da capacidade do drogadicto em se colocar no lugar do outro, colocando a
sua própria sobrevivência à mercê de mais uma dose (NARCÓTICOS ANÔNIMOS, 1998). O
dependente químico então perde a capacidade de se relacionar sadiamente com tudo à sua
volta, inclusive com ele mesmo. Durante o tratamento é de suma importância avaliar cada
área acima citada, relacionando-as ao seu campo total. É por meio do tratamento em grupo e
da interação intra e interpessoal que os pacientes conseguem se nutrir e se perceber como um
ser total e relacional.
De acordo com Ribeiro (1994, p. 10), o “grupo é um fenômeno cuja essência reside no
seu poder de transformação, no seu poder de escutar, de sentir, se posicionar, de se arriscar a
compreender o processo de significação do viver e do responsabilizarse.” É através do
processo grupal, onde o paciente depara-se com outros membros que também passam ou
passaram pela mesma situação que a sua, que acontece a ampliação da percepção real da sua
situação de vida.
No grupo, um dos objetivos terapêuticos é fazer com que o indivíduo possa voltar a se
responsabilizar pela própria vida. Através da conscientização da sua experiência associada à
experiência do outro ele perceberá o que está fazendo naquele momento ou como a sua vida
perdeu o controle a partir do seu abuso da substância psicoativa. Isso proporcionará ao mesmo
a liberdade e as condições para mudar, bem como o desenvolvimento dos recursos necessários
para dar respostas mais adequadas à sua vida.
O trabalho grupal dentro de uma instituição que trabalhe a mesma problemática, tendo
um grupo homogêneo, pode ajudar o membro a se identificar com mais facilidade,
diferentemente de um grupo heterogêneo (com questões diferentes). Por vezes acontece de
todos os membros do grupo identificarem-se com a mesma questão, ocorrendo então um
fenômeno grupal no qual todos os pacientes compartilham dos mesmos sentimentos. O grupo,
pensando da mesma forma, pode produzir o mesmo insight em relação ao tema trabalhado.
Concernente ainda à minha área de atuação junto a dependentes químicos, mas agora
no espaço terapêutico do consultório, posso afirmar que a demanda refere-se a pessoas ou
familiares que buscam ajuda em relação ao uso/abuso de substâncias psicoativas, sendo o
tratamento sempre voluntário. Neste caso, são trabalhadas questões existenciais, buscando,
sobretudo a emergência da awareness, ou seja, a conscientização de si. Através do diálogo
Eu-Tu
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faz-se o contato. Cabe ressaltar que, nos casos de dependência muito grave, o
indivíduo fica fisicamente impedido de fazer contato com o outro e com ele mesmo, devido à
compulsão fisiológica, não estando pronto, desta forma para uma abordagem clínica. Nestes
casos, a indicação de internação involuntária faz-se necessária, assegurando sua integridade
física e psicológica.
É importante destacar, desta forma, que o trabalho institucional junto ao dependente
químico precisa ser respaldado pela lei atual 10.216/2001, que define a responsabilidade do
Estado no tratamento com o doente mental; estabelece três espécies de internação que serão
possíveis de serem efetuadas (internação voluntária, involuntária e compulsória); diz como
serão as pesquisas envolvendo os doentes; e determina a criação de uma comissão para
acompanhar a implantação da lei (BRASIL, 2001). É uma lei, portanto que trata os doentes
mentais com dignidade, cidadania e como pessoas sujeitas a direitos.
Segundo a referida lei, temos no parágrafo único do artigo 6º a definição das espécies
de internação psiquiátrica que serão possíveis:
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Na relação Eu-tu, Buber (1974) descreve que a relação do homem não ocorre nele mesmo, mas sim o que está a
sua frente. Ele usa o conceito inter-humano, que não pode ser encontrado em um dos parceiros, nem nos dois
juntos, mas sim no diálogo estabelecido e vivenciado por ambos.
São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I – internação
voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II – internação
involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de
terceiro; e III – internação compulsória: aquela determinada pela justiça. (BRASIL,
2001).
Outro ponto importante é que a internação, em qualquer uma de suas modalidades,
deverá ser o último recurso a ser empregado pelos profissionais de saúde, sendo aplicadas
somente após terem sido esgotados todos os outros meios de tratamento. Desta forma, todas
as pessoas portadoras de algum tipo de transtorno mental serão tratadas e cuidadas com base
nos procedimentos determinados na referida lei, bem como os dependentes químicos ou
drogadictos, que serão internados com base na lei em consonância com o decreto 891/1938
que continua vigente. Fica nítido, assim, a não existência de uma política pública de saúde
específica para os dependentes químicos, existindo somente para as consequências do uso da
droga, como por exemplo o transtorno mental, por meio do desenvolvimento de comorbidades
ou pela alteração provocada pela droga no cérebro.
Cabe destacar também que a internação compulsória do dependente químico está
respaldada pelo decreto-lei nº 891, de 25 de novembro de 1938, ainda em vigor e autoriza essa
internação, conforme preceitua em seus artigos 27, 28 e 29:
Artigo 27
A toxicomania ou a intoxicação habitual, por substâncias entorpecentes, é
considerada doença de notificação compulsória, em caráter reservado, à autoridade
sanitária local.
Artigo 28
Não é permitido o tratamento de toxicômanos em domicílio.
Artigo 29
Os toxicômanos ou os intoxicados habituais, por entorpecentes, por inebriantes em
geral ou bebidas alcoólicas, são passíveis de internação obrigatória ou facultativa por
tempo determinado ou não. §1º. A internação obrigatória se dará, nos casos de
toxicomania por entorpecentes ou nos outros casos, quando provada à necessidade
de tratamento adequado ao enfermo, ou for conveniente à ordem pública. Essa
internação se verificará mediante representação da autoridade policial ou a
requerimento do Ministério Público, só se tornando efetiva após decisão judicial.
(BRASIL, 1938).
No que tange à permanência do tratamento voluntário efetuado no setting terapêutico,
dentro da perspectiva da Gestalt-terapia, é trabalhada primordialmente a questão figura-fundo
5
e o processo de necessidade emocional, psicológica e física pelo consumo de drogas. No
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“Na relação Figura/Fundo, a figura tem pragnância, brilho, clareza, vivacidade, e se destaca de um fundo difuso
e amorfo. O fundo diz respeito ao campo perceptual, isto é, a tudo que é relativo ao organismo e ao meio
ambiente” (ARAÚJO, 2007, p. 113).
consultório é possível trabalhar as necessidades do indivíduo, através da sua forma de se
relacionar e interagir com o profissional e, consequentemente com a sua terapia, no qual o
foco dá-se na forma do discurso, em como se apresenta aqui e agora, e não tanto no conteúdo
em si trazido.
Tal abordagem de tratamento é diferente da aplicada na instituição, em que o paciente
precisa ser inserido nas necessidades do funcionamento desta, impondo linhas de conduta
como tratamento e prevenção. Contudo, dá-se pouca abertura aos fenômenos emergentes da
sua forma singular de ser e estar no mundo, trabalhadas especificamente no âmbito do
consultório, enfatizando a qualidade do contato e facilitando o encontro do cliente com o seu
mundo interior.
Conforme destaca Ribeiro (1994, p. 25):
Contato é isto: eu e você, você e eu, você e o ambiente, eu e o ambiente, nós dois e o
ambiente, o ambiente e nós dois. Num casamento misterioso entre figura e fundo é
possível que as verdadeiras necessidades ocorram e que a verdadeira vida aconteça.
É de suma importância que, no trabalho terapêutico no consultório, o cliente sinta-se
compreendido e acolhido pelo terapeuta, sendo confirmado tal como é, pois em situações de
dependência química comumente o indivíduo vai perdendo a capacidade de ser ouvido e
compreendido pelas pessoas, pela razão de viver e agir em função de mais uma dose,
desrespeitando os limites, afetando assim as suas relações afetivas e emocionais.
A perspectiva da Gestalt-terapia, segundo Ribeiro (2013), não trata o sintoma de forma
isolada, mas sim essencialmente como parte de uma realidade existencial da pessoa, e fruto de
um ajustamento criativo disfuncional. Deste modo, no consultório, sinto-me livre para
perceber o fator da dependência química como um fundo, explorando a figura que é a pessoa
em si, tal como aparece e o processo como está vivenciando a sua drogadição. Meu trabalho,
portanto, é facilitar a tomada de consciência do cliente sobre o seu processo, sobretudo a
respeito da sua necessidade por mais uma dose.
Através da minha experiência com o tratamento da dependência química, percebo que
a prática da psicoterapia individual nestes casos é um grande pilar, que busca auxiliar o
cliente a olhar o seu mundo, conhecendo com profundidade a própria existência, dificuldades
e potencialidades. A partir da melhora do contato pleno consigo mesmo, com as próprias
necessidades, surge a possibilidade de transformação em uma forma de viver sadia. Todavia,
se por acaso um cliente, submetido e aderido ao tratamento psicológico, deseje continuar a
abusar de alguma substância, eu, enquanto gestalt-terapeuta, devo convidá-lo a assumir as
responsabilidades que isso implica, auxiliando-lhe na parte existencial e, como agente auxiliar
na redescoberta do seu equilibro, perdida com a sua dependência. Com essa postura, trago-o à
normalidade e à posse do seu próprio poder. Um fenômeno observado nos casos de
dependência química é a negação das consequências nocivas do uso e, quando são exploradas
tais consequências negativas, o trabalho terapêutico é propor ao cliente a percepção da
responsabilidade de todo o contexto da drogadição, tendo, desta forma, forças para
redimensionar a sua vida.
Para Ribeiro (2013), maturidade emocional é o real olhar da própria capacidade
emocional e afetiva, reconhecendo as suas limitações, e da habilidade com os próprios afetos,
emoções e limites. Características esquecidas, quando se trata de dependentes químicos que
acabam cristalizados na imaturidade, querendo viver no prazer de forma compulsiva, sem
levar em consideração as consequências e adaptando-se a viver uma vida sem limites.
É através do encontro terapêutico que amplio o contexto do uso e auxilio no
desenvolvimento das suas próprias potencialidades, muitas vezes impactadas ou perdidas pela
sua dependência, auxiliando assim na construção do seu caminho a uma vida saudável e,
inserido a um processo de mudança, que lhe permite repensar sobre as suas atitudes e
caminhos, aumentando o “leque” de possibilidades de cura da sua dependência.
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CONCLUSÃO
Este trabalho teve como objetivo ilustrar a importância de se articular o tratamento
psicoterápico da Dependência Química à abordagem da Gestalt-terapia. Após o
aprofundamento no referido tema, portanto, foi possível constatar com clareza que a
perspectiva gestáltica colabora veementemente na recuperação do indivíduo drogadicto, onde
possibilita a este reconstruir significados das experiências vividas, tanto no passado, quanto
no momento presente, bem como promove a autopercepção e conscientização do próprio
funcionamento psíquico, das emoções, do comportamento e da postura diante da vida,
sobretudo implicando na responsabilidade da própria existência.
Considero tal articulação de vital importância, principalmente pelo caráter
relativamente recente e de constante reformulação por quais passam os modelos de tratamento
da dependência química. Diante das diversas abordagens existentes e disponíveis para a
execução do trabalho psicológico junto aos drogadictos, devemos destacar o fato da linha
teórica da Gestalt-terapia ser ainda pouco explorada na aplicabilidade desta problemática.
Talvez, por ser esta abordagem contrária aos modelos tradicionais que costumam priorizar a
padronização de comportamentos, que impõem através da realização de diagnósticos a
conotação evidenciada à rotulação do indivíduo ao seu sintoma em detrimento da sua
subjetividade e existência, acabando por subjugar o potencial humano de transformação.
Podemos observar, contudo, que infelizmente temos ainda uma grande lacuna no que
concerne a literaturas especializadas em tratamento psicológico da dependência química sob o
viés da Gestalt-terapia. Todavia, foi esta mesma escassez teórica e prática que possibilitou um
novo desafio em minha atuação como gestalt-terapeuta, por um lado, e especialista em
dependência química de outro, sendo a viabilidade do encontro destes dois campos o norte do
presente estudo. Desta maneira, foi proposta a exploração de alguns dos conceitos chaves da
teoria, ampliando-os para a constatação prática de tal possibilidade de atuação no contexto
clínico e institucional junto a dependentes de substâncias psicoativas.
Dentre os conceitos chaves da Gestalt-terapia abordados foi possível apontar a
importância do aprofundamento nos bloqueios de contato no tratamento com dependentes
químicos, onde pudemos evidenciar os mecanismos de resistência comuns nesta patologia,
nitidamente exacerbados e impedidores da disponibilidade do ser humano contatar a si mesmo
e o mundo, sendo a cristalização de tais resistências de grande colaboração ao
desenvolvimento de várias patologias, inclusive da dependência química.
Não obstante, pudemos ilustrar a relevância da relação dialógica entre terapeuta e
cliente, capaz de promover a conscientização do grau do comprometimento da relação com a
substância no cliente drogadicto, considerado um passo difícil e de suma importância na
eficácia do tratamento.
Foi possível realizar ainda a análise da importância do psicodiagnóstico no processo
psicoterápico, no qual pudemos apresentar a importância da intervenção a partir da condição
patológica do dependente químico.
Durante o presente estudo, pudemos observar que a Gestal-terapia proporciona a
oportunidade de se trabalhar as resistências que emergem, cabendo ressaltar que nos casos de
dependência química estas são sempre bastante evidenciadas, ao invés da tentativa de
imposição para superá-las ou extingui-las. Tal fato só é possível devido a esta linha teórica
priorizar a singularidade do indivíduo que está a frente do terapeuta, e através da postura
acolhedora e de inclusão construir um ambiente favorável e fértil para o contato com as
próprias negações, bloqueios, ajustamentos criativos disfuncionais e potencialidades.
Ao entender o abuso de drogas psicoativas como um padrão de comportamento cuja
gravidade pode chegar à desmoralização e à morte do indivíduo, existe a necessidade de se
unir os vários serviços que possam atender o indivíduo drogadicto nos diferentes estágios, tais
como: médicos, psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas, etc. Novos conceitos sobre o
tratamento da dependência química passaram a ganhar “peso” no quadro do diagnóstico
terapêutico. Diferentemente do passado no qual a internação era o recurso mais utilizado,
devido ao objetivo central ter sido a busca da abstinência total, hoje em dia existe uma nova
concepção que traz a necessidade de abordagens capazes de motivar o indivíduo a tratar a sua
dependência em ampliação às suas questões existenciais, buscando, assim agregar novas
abordagens e intervenções possíveis de tratamento dos usuários de drogas.
Seguindo este viés, pude ressaltar em minha experiência com esta patologia, tanto no
âmbito do consultório quanto da instituição, a contribuição da psicoterapia no enfoque da
Gestalt-terapia no tratamento da dependência química. Todavia, fica evidente também o
surgimento da necessidade de maiores aprofundamentos no tema, devido à sua grande
complexidade.
Pelas restrições inerentes a esta temática, bem como à delimitação do tema escolhido,
devemos sinalizar que diversas questões da mesma forma importantes com relação a pacientes
dependentes químicos, sobretudo sob a ótica terapêutica da abordagem da Gestalt-terapia não
puderam ser aprofundadas no presente trabalho. Dentre tais, e possível de novos estudos
podemos citar a relevância do acompanhamento dos familiares dos drogadictos, considerado
de suma importância para a eficácia do tratamento destes e, principalmente o fato da pessoa
dependente não ficar doente sozinha, ou seja, nestes casos a família adoece junto com ela.
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