cao/>. Acesso em: 26/7/2016.
12 Idem.
69
GAUDÊNCIO FRIGOTTO
de abertura do site, expondo publicamente as pessoas (inclusive alunos) sem
qualquer mediação. Cabe observar, a esse respeito, a dupla instrumentalidade
dessa forma de exposição que, a título de defender direitos, reúne elementos que
legitimam e autorizam a posição acusatória do Escola sem Partido, conferindo-lhe
confiabilidade (especialmente nas esferas conservadoras, claro!), sobrepondo-o
aos espaços e regras institucionais no âmbito dos quais as questões escolares
deveriam ser tratadas, bem como intimidando e constrangendo profissionais
e alunos no âmbito escolar, ao propagar a ameaça da disseminação de práticas
de registro clandestino e de divulgação pública das suas atividades e diálogos.
É importante notar que a lógica de associação aberta, presente espe-
cialmente nos espaços destinados à divulgação de depoimentos, denúncias e
artigos de opinião, não é de todo ilusória. O site faz esse chamamento e acolhe
parte das respostas, incorporando-as ao seu programa geral de discussão. Mas
essa forma de associação cumpre efetivamente um papel complementar, de
fornecer material capaz de alimentar uma discussão circunscrita a um quadro
compreensivo predeterminado, uma discussão que é sistematicamente coorde-
nada e conduzida por um grupo mais delimitado de militantes, “fornecendo
provas” úteis à sustentação das suas teses, e ajudando a difundir um clima de
suspeição sobre a prática docente, que contribui para alimentar as disposições
de confrontação e denúncia por parte de novas pessoas e grupos.
Portanto, o propósito subjacente da suposta interatividade, por meio da
qual também as pessoas atendem ao chamado do Escola sem Partido, reforçando
suas ideias e ações, não é ampliar uma associação de pessoas que, coletivamente
e de forma horizontal e solidária, conduzem uma luta relacionada a objetivos
comuns. É incorporar pessoas de forma utilitária, seletiva e subordinada, de
modo que elas possam, por meio de sua participação fragmentária, referendar
posições que já estão definidas e decisões que são tomadas por um rol bem
mais restrito de participantes.
Um último aspecto a observar diz respeito ao modo como se conjugam
as variadas frentes de ação vinculadas ao Escola sem Partido. Note-se, a esse
respeito, que no site as inserções na mídia e as ações no âmbito parlamentar
podem parecer, a um observador ocasional, âmbitos autônomos que seriam
próximos apenas devido à similaridade de temas, propósitos e questões.
Mas a reiteração de pessoas, de partidos, de vinculações midiáticas e religiosas,
e de ênfases e estratégias de intervenção
13
não deixa dúvidas sobre o sentido
13 Cuja teia de relações, como já indicado anteriormente, encontra-se bem revelada no artigo de
Espinosa e Queiroz (2017) que compõe esta coletânea.
70
ESCOLA “SEM” PARTIDO
de conjunto cada vez mais orgânico que interliga esses âmbitos como braços
de uma ação coordenada, em que as estratégias de mobilização e propaganda
relativamente diversificadas estão, na verdade, ancoradas em propósitos co-
muns nada apartidários.
A relativa variedade de estilos, que torna a discussão aqui ou ali mais
palatável e aparentemente mais ancorada em bases acadêmicas, não chega a
ocultar suficientemente seus vínculos com o tom primordial do site, reiterado
por parte dos associados, em que predominam conclamações conservadoras,
a utilização de uma linguagem deselegante e não raramente grosseira, além
de formas de intimidação, ameaça e desqualificação que não disfarçam as
intenções de “abater o inimigo”.
Essas características impedem que o Escola sem Partido seja entendido
como “movimento”. Ainda que suas ações ancorem-se em agregações vincu-
ladas a propósitos aparentemente comuns, sua coordenação personalizada e
centralizada, bem como a assimetria completa entre os que ocupam posições de
decisão e comando e os demais participantes o definem como uma organização
especializada, que cumpre funções específicas de propaganda, mobilização e
controle no âmbito de uma vertente partidária compromissada com a defesa
de prerrogativas econômicas, políticas e socioculturais ultraconservadoras.
PARA QUE (E A QUE) SERVE?
Essas observações nos possibilitam prosseguir com maior propriedade
em nossas considerações a respeito dos propósitos e dos resultados reais
almejados por esse organismo, a partir do uso estratégico de seus principais
instrumentos de ação.
Nesse sentido, cabe destacar, primeiramente, que o Projeto de Lei (PL)
compõe o programa de ação do Escola sem Partido tanto como um instrumento
estratégico de mobilização e propaganda, quanto como um instrumento jurí-
dico-político de controle da escola que, no entanto, não precisa de sua plena
vigência jurídica, propriamente dita, para produzir os efeitos desejados. Como
o teor do modelo de Projeto de Lei e sua forma de divulgação difundem, por
si, um clima de vigilância, suspeição, denúncia e punição, não é preciso haver
um projeto aprovado para que se cumpra parte dos efeitos esperados, que não
são necessariamente a efetiva responsabilização criminal e a aplicação jurídica
de punição, mas a autocensura, o constrangimento e a coibição de comporta-
mentos e práticas que possam, mesmo remotamente, ser identificados como
“doutrinação” ou “desrespeito às convicções morais da família”.
71
GAUDÊNCIO FRIGOTTO
Considerando-se que o projeto, por sua impressionante generalização e
suas muitas incongruências, pode, se aprovado, mobilizar as mais desvairadas
“denúncias”, não é plausível acreditar que seus formuladores esperem efetiva-
mente criminalizar e punir um grande número de pessoas. O mais provável
é que estejam visando os controles prévios da atividade escolar, da atividade
docente e da discussão educacional, a partir da disseminação da ameaça de
exposição pública e de criminalização. Daí a propriedade da alcunha atribuída
ao PL por inúmeras vertentes críticas: Lei da Mordaça.
Por sua vez, pode-se depreender disto que os objetivos concretos do
Escola sem Partido relacionam-se de forma mais intensa ao enfraquecimento
de forças do que à instauração de novos mecanismos efetivamente jurídicos.
Porém, não é demais observar que uma nova ordem jurídico-política pode
vir de braçada nesse processo, já que as novas concepções, interpretações e
práticas fomentadas podem ser projetadas sobre a legislação vigente, distor-
cendo-a e traduzindo-a de forma a definir, segundo novos critérios e de forma
certamente restritiva, direitos, deveres e condutas autorizadas.
É preciso, portanto, atenção ao tino oportunista da organização, que se
manifesta em variadas nuances das suas estratégias de atuação, como, por
exemplo, quando se apresenta como “movimento” conduzido pelo propósito
altruísta de combater a partidarização da escola, dissimulando sua própria
condição de organismo de um campo partidário conservador, fortemente
ramificado em instituições (mídia, parlamento) e portador de um programa
de ação que envolve técnicas de mobilização e propaganda bastante sincroni-
zadas. Ou quando tenta transparecer uma aura de defesa moral, enquanto se
utiliza de uma linguagem e de estratégias que amesquinham o debate político,
instigando intrigas e futricas que ajudam a instaurar um ambiente similar ao
que Gramsci (2000 e 2002) denominou de “pequena política”, possibilitando
à vertente partidária à qual se vincula essa organização reservar para si a
grande política, relacionada às posições fundamentais de domínio e direção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há algo de particularmente intrigante, quando observamos com relativo
distanciamento o discurso e as formas de atuação do Escola sem Partido.
Em um quadro nacional de realização da escola, ainda tão combalido devido
à história de descasos com a educação do povo, um quadro no qual imensas
assimetrias ainda constituem a oferta escolar pelos mais variados aspectos, das
condições materiais e funcionais das escolas às condições de contratação e remu-
72
ESCOLA “SEM” PARTIDO
neração do trabalho docente, um quadro no qual diversos estados e municípios
descumprem e até entram na justiça contra a primeira lei federal que busca
instituir um piso salarial nacional docente e uma ampliação da carga horária
destinada ao trabalho de formação e planejamento coletivos do professor, não
soa estranha a acalorada discussão sobre a suposta partidarização da formação
escolar? Não há uma evidente desmedida na forma como este tema é colocado,
como se fosse uma trincheira fundamental da questão educacional no Brasil e
como se ele existisse, de fato, na escala e cores com que se tenta afirmar?
Essa não conformidade entre a cruzada empreendida pelo Escola sem
Partido e a escola real – que exige imensos e valiosos esforços construtivos
de professores e demais profissionais do campo educacional, de alunos e suas
famílias, de movimentos sociais compromissados com a garantia do exercício
igualitário do direito à Educação e de tantos outros sujeitos que a essa emprei-
tada se somam – sinaliza exatamente o quê? Quais pretensões, quais disputas?
Referindo-se à elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) hoje vigente, Florestan Fernandes, em uma de suas célebres discussões
sobre o “desafio educacional”, atento à necessidade de percebermos com clareza
qual deveria ser o centro de nossas preocupações no processo de erguer uma
escola que garantisse as mais ricas relações com o conhecimento, observou que:
O importante, hoje, não é o que a nova lei poderá fazer para acabar
com os vestígios de uma pedagogia às avessas, pervertida. É o que
ela poderá ser para gerar, a partir de nossos dias, uma educação
escolarizada fincada na escola e nucleada na sala de aula. Não basta
remover os “excessos” de centralização, que substituem a relação
pedagógica pela relação de poder. É preciso construir uma escola
autossuficiente e autônoma, capaz de crescer por seus próprios
dinamismos. Conferir à sala de aula a capacidade de operar como
o
experimentum crucis
da prática escolar humanizada, de liberação
do oprimido, de descolonização das mentes e corações dos pro-
fessores e alunos, de integração de todos nas correntes críticas de
vitalização da comunidade escolar e de transformação do meio
social ambiente. (Fernandes, 1989, p.22)
Sabemos que não é fácil “construir uma escola autossuficiente e autônoma,
capaz de crescer por seus próprios dinamismos”. Como buscamos discutir em
ocasiões anteriores (Algebaile, 2009), e como discutido por autores que se
debruçaram em profundidade sobre a questão das desigualdades educacionais
no Brasil, como Beisegel (1974) e Frigotto (2001), as desigualdades sociais de
73
GAUDÊNCIO FRIGOTTO
todo tipo, as problemáticas condições de realização de um grande número
de escolas e as grandes diferenciações entre sistemas de ensino e no interior
desses próprios sistemas produzem distâncias importantes entre os diferentes
segmentos profissionais e sociais presentes no campo ampliado das relações
que tecem a experiência escolar, posicionando-os em ângulos e momentos
diferentes no que diz respeito as suas expectativas em relação às políticas
educacionais, à escola, ao trabalho e à formação escolar.
Por conseguinte, nesse quadro, em que as condições objetivas e subjetivas
de atuação nas escolas são tão variadas, torna-se muito difícil discernir quais
são os elementos fundamentais das lutas.
Não devemos ter dúvidas, no entanto – e as observações de Florestan
iluminam nossa compreensão nessa direção –, de que a plena realização da
potência formativa da escola reside na possibilidade de que ela opere como
um experimento crucial, decisivo, vitalizador, para aqueles que a produzem,
estando juntos no seu fazer cotidiano.
Portanto, se queremos uma escola capaz de acionar em nós nossas melhores
potências, aquilo pelo qual devemos lutar está inevitavelmente nucleado na
garantia de um espaço escolar entendido como espaço de elaboração coletiva,
um espaço em que a autonomia não seja entendida como prerrogativa indivi-
dual, mas como construção colegiada e solidária. E se há algo que não ajuda
nesse processo é plantar a suspeição no chão da escola, judicializando suas
relações e práticas, e impondo, deste modo, que ela viva sob a intervenção de
quem dela não participa.
Ao apelar para a disseminação de práticas de suspeição, denúncia e cri-
minalização especialmente dos professores, incitando ações individuais ou de
grupos que se sobrepõem à escola como espaço coletivo, o Escola sem Partido
atinge, fundamentalmente, isto: o fato de que a escola, como coletivo, seja
garantida, antes de tudo, como um espaço capaz de construir com autonomia,
colegialidade e respeito os parâmetros de ação que, no seu interior, produzirão
uma formação coletiva insubstituível.
O que está efetivamente em disputa, neste caso, é o caráter público e de-
mocrático da escola pública, inevitavelmente relacionado ao modo como ela
é definida, por meio de que processos, de que sujeitos. É o que deve resultar
da sua organização e ação: se é a possibilidade de bons negócios e a segmen-
tação dos sujeitos segundo a classe social, como interessa aos propósitos
privatistas e à lógica capitalista, ou se é a relação ampla com o conhecimento
coletivamente tecida, como interessa à grande maioria dos sujeitos da escola.
É o que entendemos que deva ser um professor: um executor de um programa
74
ESCOLA “SEM” PARTIDO
censurado ou um sujeito que encontra na escola as condições e as relações
por meio das quais ele pode aprimorar sua formação e seu trabalho como
fundamentalmente intelectual.
Uma escola que funcione como uma experiência crucial para os que a
produzem cotidianamente é tudo de que precisamos para que professores, alu-
nos e pais de alunos avancem nas suas formas de compreender a si, ao mundo
e aos outros. Num quadro de realização da escola em que esses sujeitos não
sejam previamente contrapostos uns aos outros, em que não sejam incitados
a se verem como inimigos, e em que as condições de trabalho e estudo não
estilhassem suas energias e disposições, certamente haverá discordâncias e
conflitos, mas estes poderão, na sua maioria, ser pensados e tratados, funda-
mentalmente, como elementos dinâmicos de um processo coletivo de formação,
e não como objeto de suspeita, censura e judicialização.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALGEBAILE, Eveline. Escola pública e pobreza no Brasil: a ampliação para
menos. Rio de Janeiro: FAPERJ/Lamparina, 2009.
BEISIEGEL, Celso R. Estado e educação popular: um estudo sobre a educação
de adultos. São Paulo: Pioneira, 1974.
ESPINOSA, Betty R. S. & QUEIROZ, Felipe B. C. Breve análise sobre as re-
des do Escola sem Partido. In: FRIGOTTO, Gaudêncio. (Org .) Escola “sem”
Partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro:
LPP/UERJ, 2017, p.49-62.
FERNANDES, Florestan. A escola e a sala de aula. In: O desafio educacional.
São Paulo: Cortez, 1989, p.22-24.
FRIGOTTO, Gaudêncio. A produtividade da escola improdutiva: um (re)exame
das relações entre educação e estrutura econômico-social capitalista. São Paulo:
Cortez, 2001.
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Cadernos
do Cárcere, v.3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
_____. O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália. Cadernos do Cárcere,
v.5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
Escola sem Partido: a criminalização do trabalho
pedagógico
1
Marise Nogueira Ramos
*
Em 1897, uma vila parece ser o local ideal para viver:
tranquila, isolada e com os moradores vivendo em har-
monia. Porém, este local perfeito passa por mudanças,
quando os habitantes descobrem que o bosque que a cerca
esconde uma raça de misteriosas e perigosas criaturas,
por eles chamados de “aquelas de quem não falamos”. O
medo de ser a próxima vítima destas criaturas faz com que
nenhum habitante da vila se arrisque a entrar no bosque.
2
Parece já ser de amplo conhecimento dos educadores brasileiros, assim
como o devido debate, o Projeto de Lei n° 867/2015, do Deputado do PSDB /DF,
Sr. Izalci Lucas, que “inclui, entre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional
[LDB], o Programa Escola sem Partido”. Visando toda a educação nacional, a
tramitação desse projeto não exclui outros de mesmo teor em estados e mu-
nicípios, voltados aos respectivos sistemas de ensino, a exemplo de Alagoas,
onde um projeto local já foi aprovado. O modelo de projeto de lei, inclusive,
é fornecido pelo blog do movimento,
3
assim como o “modelo de notificação
extrajudicial” ao professor, além de orientações nesse sentido, tais como “fla-
grando o doutrinador” e “planeje sua denúncia”.
Os apologistas desse movimento o definem como “uma iniciativa con-
junta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação políti-
co-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao
superior”.
4
Dizem eles que, “se a lei for aprovada pelo parlamento brasileiro,
1 Uma versão preliminar e reduzida deste texto foi publicado no Boletim da Anped. Disponível em:
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