Das coisas que estavam em conflito dentro dela. Uma mistura incombinável. A
infinita ternura da maternidade e a raiva rebelde de um terrorista suicida. Era
isso que crescia dentro dela e acabou por levá-la a amar de noite o homem que
seus filhos amavam de dia. A usar de noite o barco que seus filhos usavam de
dia. O barco em que Estha se sentava e que Rahel tinha encontrado.
Nos dias em que o rádio tocava as músicas de Ammu, todo mundo ficava um
pouco incomodado. Sentiam que de alguma forma ela vivia na zona de penumbra
entre dois mundos, fora do alcance deles. Que uma mulher que já haviam
condenado tinha agora pouco a perder e podia, portanto, ser perigosa. Assim, nos
dias em que o rádio tocava as músicas de Ammu, as pessoas a evitavam, davam
voltas em torno dela, porque todo mundo concordava que era melhor deixá-la
em paz.
Outros dias, ela revelava covinhas profundas quando ria.
Tinha um rosto delicado, cinzelado, sobrancelhas pretas em ângulo, como as
asas de uma gaivota em vôo, nariz pequeno e reto e a pele luminosa, cor de
noz. Naquele dia de céu azul de dezembro, seus cabelos rebeldes, encaracolados,
haviam escapado em cachos no vento do carro. Seus ombros, na blusa sem
mangas do sári, brilhavam como se tivessem sido polidos com cera. Às vezes, ela
era a mulher mais bonita que Estha e Rahel já tinham visto. E às vezes não era.
No banco de trás do Plymouth, entre Estha e Rahel, sentava-se Baby
Kochamma. Ex-freira e incômoda tia-avó. Assim como os desafortunados às vezes
desgostam dos colegas desafortunados, Baby Kochamma não gostava dos gêmeos,
que considerava órfãos amaldiçoados, sem pai. Pior ainda, eles eram híbridos
meio hindus com quem nenhum cristão sírio jamais se casaria. Ela fazia questão
de que eles percebessem que (como ela) viviam de favor na Casa Ayemenem, casa
de sua avó materna, onde não tinham realmente nenhum direito de estar. Baby
Kochamma tinha ressentimentos de Ammu porque a via lutando com um destino
que ela, Baby Kochamma, sentia ter aceitado com graça. O destino desgraçado
da mulher sem homem. A triste Baby Kochamma sem padre Mulligan. Ao longo
dos anos, ela tinha conseguido convencer a si mesma que seu amor não
consumado por padre Mulligan devia-se inteiramente ao seu controle e à sua
determinação de fazer o que era certo.
Ela adotava plenamente a posição geralmente aceita de que uma filha casada
não tinha mais lugar na casa dos pais. Quanto a uma filha divorciada, segundo
Baby Kochamma, essa não tinha lugar em parte alguma. E quanto a uma filha
divorciada de um casamento por amor, bem, não havia palavras para descrever
como Baby Kochamma se sentia ultrajada. Quanto a uma filha divorciada de um
casamento inter-religioso por amor... Baby Kochamma preferia manter um trêmulo
silêncio sobre o assunto.
Os gêmeos eram jovens demais para entender tudo isso, então Baby Kochamma
se ressentia dos seus momentos de grande alegria, como no dia em que uma
libélula que haviam pegado levantou uma pedrinha com as pernas em cima da
palma da mão de um deles, ou quando tinham permissão para dar banho nos
porcos, ou quando encontravam um ovo ainda quente da galinha. Mas, acima de
tudo, ela se ressentia do conforto que os gêmeos proporcionavam um ao outro.
Ela esperava deles alguma prova de infelicidade. No mínimo.
No caminho de volta do aeroporto, Margaret Kochamma sentaria na frente
com Chacko porque fora sua esposa. Sophie Mol sentaria entre os dois. Ammu
mudaria para o banco de trás.
Haveria duas garrafas térmicas de água. Água fervida para Margaret Kochamma
e Sophie Mol, água da torneira para todos os outros.
A bagagem estaria no porta-malas. Rahel achava que boot [a palavra inglesa para
porta-malas] era uma palavra linda. Pelo menos muito melhor do que sturdy
[robusto]. Sturdy era uma palavra horrorosa. Como um nome de anão. Sturdy
Koshy Oommen, um anão agradável, classe média, temente a Deus, com joelhos
baixos e cabelo repartido de lado.
No bagageiro do teto do Plymouth havia um cartaz de quatro lados, debruado
de metal, que dizia, em todos os quatro lados, em letras elaboradas, Paraíso, Picles
& Polpas. Abaixo do letreiro, ilustrações de frascos de geléia de frutas mistas e
picles de lima picante em óleo comestível, com rótulos que diziam, em letras
elaboradas, Paraíso, Picles & Polpas. Ao lado dos frascos, uma lista de todos os
produtos Paraíso e a figura de um dançarino de kathakali de rosto verde e saia
esvoaçante. Ao longo da dobra em forma de S da saia em movimento, estava
escrito, numa curva em forma de S, Imperadores do Reino do Sabor, contribuição
não solicitada do camarada K. N. M. Pillai. Tratava-se da tradução literal de
Ruchi lokathinde Rajavu, que soava um pouco menos ridículo do que Imperadores
do Reino do Sabor. Mas como o camarada Pillai já tinha impresso os dizeres
ninguém teve coragem de pedir a ele que refizesse toda a impressão. E assim,
infelizmente, Imperadores do Reino do Sabor tornou-se traço permanente dos rótulos
da Paraíso Picles.
Ammu disse que o dançarino de kathakali era uma mera isca e não tinha nada
a ver com nada. Chacko disse que dava um ar regional aos produtos e que isso
seria favorável quando entrassem no mercado internacional.
Ammu disse que a placa os fazia ridículos. Como um circo itinerante. Com
rabo-de-peixe.
Mammachi começou a fazer picles comercialmente logo depois que Pappachi se
retirou do serviço público em Délhi e veio viver em Ayemenem. A Sociedade
Bíblica de Kottayam ia realizar uma feira e pediu que Mammachi fizesse suas
famosas geléias de banana e picles de manga mole. As conservas foram vendidas
rapidamente, e Mammachi se viu com mais pedidos do que podia atender.
Animada com o sucesso, resolveu continuar com o picles e a geléia, e logo se
viu ocupada durante todo o ano. Pappachi, por sua vez, não estava conseguindo
suportar a ignomínia da aposentadoria. Era dezessete anos mais velho que
Mammachi, e teve um choque ao se dar conta de que era um velho enquanto a
mulher estava ainda na plenitude.
Embora Mammachi tivesse córneas cônicas e já fosse praticamente cega,
Pappachi não ajudava na fabricação das conservas, porque não considerava a
fabricação de conservas uma atividade compatível com um ex-funcionário
governamental de alto escalão. Sempre fora um homem ciumento, de forma que
se ressentia muito da atenção que sua mulher de repente estava recebendo. Ele
passeava pelas instalações em seus imaculados ternos feitos sob medida, traçando
círculos mal-humorados em volta dos montes de pimentões vermelhos e de
açafrão amarelo acabado de moer, observando Mammachi que supervisionava as
compras, a pesagem, a quantidade de sal e a secagem das limas e das mangas.
Todas as noites ele batia nela com um vaso de latão. As surras não eram
novidade. A novidade era apenas a freqüência com que andavam ocorrendo. Uma
noite, Pappachi quebrou o arco do violino de Mammachi e jogou no rio.
Então, Chacko voltou para casa de férias de Oxford. Tinha crescido, era um
homem grande, e, naqueles dias, bem forte porque era do time de remo de
Balliol. Uma semana depois que chegou, descobriu Pappachi batendo em
Mammachi no escritório. Chacko entrou na sala, pegou a mão com que Pappachi
segurava o vaso e torceu seu braço atrás das costas.
“Não quero que isso aconteça de novo”, disse ao pai. “Nunca.”
Pelo resto daquele dia, Pappachi ficou sentado na varanda, olhando fixamente o
jardim ornamental, ignorando os pratos de comida que Kochu Maria lhe trazia.
Tarde da noite, ele entrou no escritório e pegou a cadeira de balanço de mogno
que era a sua favorita. Levou-a para o meio da rua e quebrou-a em pedacinhos
com uma chave inglesa de encanador. Deixou ao luar um monte de palha e
lascas de madeira envernizada. Nunca mais tocou em Mammachi. Mas também
nunca mais falou com ela, até o fim da vida. Quando precisava de alguma coisa,
usava Kochu Maria ou Baby Kochamma como intermediárias.
À noite, quando sabia que viriam visitas, sentava-se na varanda e ficava
pregando botões que não tinham caído em suas camisas, para dar a impressão de
que Mammachi o negligenciava. Até certo ponto, ele conseguiu piorar um
pouquinho a opinião corrente em Ayemenem sobre esposas que trabalhavam.
Comprou o Plymouth azul-celeste de um velho inglês de Munnar. Passou a ser
uma visão costumeira de Ayemenem, rodando, importante, pela estrada estreita
em seu grande carro, parecendo elegante por fora, mas por dentro suando muito
em seus ternos de lã. Não permitia que Mammachi nem ninguém da família
usasse o carro, nem mesmo sentasse nele. O Plymouth era a vingança de
Pappachi.
Pappachi tinha sido Entomologista Imperial no Instituto Pusa. Depois da
Independência, quando os britânicos foram embora, sua designação foi mudada de
Entomologista Imperial para Diretor-Adjunto, Entomologia. No ano em que ele
se aposentou, tinha atingido um nível equivalente ao de diretor.
A coisa que mais lamentava na vida era que a mariposa descoberta por ele não
levasse o seu nome.
O inseto caiu dentro de sua bebida uma noite, quando estava sentado na
varanda de uma casa-dormitório, depois de um longo dia de trabalho no campo.
Ele pegou a mariposa e observou tufos de pêlos dorsais excepcionalmente densos.
Olhou melhor. Com grande excitação, preparou o inseto, mediu e, na manhã
seguinte, deixou-o ao sol por algumas horas para o álcool evaporar. Depois,
pegou o primeiro trem de volta a Délhi. Para a admiração taxionômica e,
esperava ele, para a fama. Depois de seis meses de intolerável ansiedade, para
intensa decepção de Pappachi, chegou um comunicado de que sua mariposa fora
finalmente identificada como uma raça ligeiramente incomum de uma espécie
bem conhecida, pertencente à família tropical dos limantrídeos.
O golpe maior veio doze anos depois, quando, como resultado de um
remanejamento radical da taxionomia, os lepidopterologistas decidiram que a
mariposa de Pappachi era de fato uma espécie distinta e um gênero até então
desconhecido para a ciência. Mas então, claro, Pappachi já tinha se aposentado e
mudado para Ayemenem. Era tarde demais para ele requisitar a descoberta como
sua. Sua mariposa recebeu o nome do diretor em atividade do Departamento de
Entomologia, um funcionário inferior de quem Pappachi nunca tinha gostado.
Nos anos seguintes, apesar de ele já ser mal-humorado muito antes da
descoberta da mariposa, a Mariposa de Pappachi passou a ser responsabilizada
por seus humores negros e súbitas explosões de temperamento. Seu fantasma
pernicioso, cinzento, peludo e com tufos de pêlos dorsais excepcionalmente
densos, assombrou todas as casas em que viveu. E atormentou a ele e a seus
filhos e aos filhos de seus filhos.
Até o dia de sua morte, mesmo no calor sufocante de Ayemenem, todos os
dias Pappachi vestia um terno de três peças muito bem passado e usava o relógio
de bolso de ouro. Em sua penteadeira, ao lado da colônia e da escova de cabelo
de prata, tinha um retrato de si mesmo jovem, com os cabelos brilhantinados,
tirado no estúdio de um fotógrafo em Viena, onde havia feito o curso de
diplomação de seis meses que o qualificara para o cargo de Entomologista
Imperial. Foi durante aqueles poucos meses passados em Viena que Mammachi
teve as suas primeiras lições de violino. As lições foram abruptamente
interrompidas quando o professor de Mammachi, Launsky-Tieffenthal, cometeu o
erro de dizer a Pappachi que sua esposa tinha um talento excepcional e que, em
sua opinião, tinha potencialmente nível de concertista.
Mammachi colou no álbum de fotografias da família o recorte do Indian
Express que notificava a morte de Pappachi. Dizia assim:
O conhecido entomologista Shri Benaan John Ipe, filho do falecido rev. E.
John Ipe, de Ayemenem (conhecido popularmente como Punnyan Kunju), sofreu
um severo ataque cardíaco e faleceu no Hospital Geral de Kottayam ontem à
noite. Ele apresentou dores no peito por volta da 1h05 da manhã e foi levado
às pressas para o hospital. A morte ocorreu às 2h45. Shri Ipe apresentava
problemas de saúde fazia seis meses. Deixa a esposa Soshamma e dois filhos.
No funeral de Pappachi, Mammachi chorou, e suas lentes de contato
deslizaram nos olhos. Ammu disse aos gêmeos que Mammachi estava chorando
porque estava acostumada com o marido e não porque o amasse. Ela estava
acostumada com ele andando pela fábrica de picles, e estava acostumada a
apanhar de vez em quando. Ammu disse que os seres humanos eram criaturas de
hábitos e que era incrível o tipo de coisas com que podiam se acostumar. Basta
olhar em volta, Ammu disse, para ver que surras com vasos de latão não são de
admirar.
Depois do funeral, Mammachi pediu a Rahel para ajudar a encontrar e
remover suas lentes de contato com a pequena pipeta cor de laranja que vinha
dentro da caixinha. Rahel perguntou a Mammachi se, depois que ela morresse,
podia herdar a pipeta. Ammu levou-a para fora do quarto e deu-lhe um tapa.
“Nunca mais quero ver você falando da morte das pessoas com elas mesmas”,
disse.
Estha disse a Rahel que ela havia merecido o tapa por ser tão insensível.
A fotografia de Pappachi em Viena, com o cabelo lambido, foi reemoldurada e
colocada na saleta.
Ele era um homem fotogênico, estiloso e bem cuidado, com a cabeça um tanto
grande de homem baixo. Tinha um princípio de queixo duplo que ficava
enfatizado quando olhava para baixo ou acenava a cabeça. Na foto, tivera o
cuidado de levantar a cabeça o suficiente para disfarçar o queixo duplo, mas não
tão alto a ponto de parecer orgulhoso. Seus olhos castanho-claros eram bem-
educados, mas mesmo assim maléficos, como se estivesse fazendo um esforço para
ser civilizado com o fotógrafo enquanto planejava assassinar a própria esposa.
Tinha uma pequena projeção carnosa no centro do lábio superior que descia
sobre o lábio inferior numa espécie de biquinho efeminado, do tipo que as
crianças que chupam o dedo acabam desenvolvendo. Tinha uma covinha alongada
no queixo que só servia para sublinhar a ameaça de uma furtiva violência
maníaca. Uma espécie de crueldade contida. Usava um culote cáqui apesar de
nunca ter montado a cavalo na vida. As botas de montaria refletiam as luzes do
estúdio fotográfico. Bem ajeitado no colo, um relho com cabo de marfim.
Havia um silêncio vigilante na fotografia, que emprestava uma frieza subjacente
à cálida sala onde foi dependurada.
Quando morreu, Pappachi deixou baús cheios de ternos caros e uma caixa de
chocolate cheia de abotoaduras que Chacko distribuiu entre os motoristas de táxi
de Kottayam. Elas foram separadas e transformadas em anéis e pingentes para
dotes de filhas solteiras.
Quando os gêmeos perguntaram para que serviam abotoaduras [cuff-links],
Ammu respondeu “Para abotoar os punhos”. Eles ficaram encantados com esse
bocado de lógica numa língua que até então tinha parecido ilógica. Cuff [punho]
+ Link [argola, ligadura] = cuff-link. Isso, para eles, rivalizava, em precisão e
lógica, com a matemática. Cuff-links deu aos dois uma desordenada (exagerada)
satisfação, e uma afeição real pela língua inglesa.
Ammu disse que Pappachi era um
CCP
britânico incurável, que era uma espécie
de chhi-chhi poach, que em hindi significa lambe-cu. Chacko disse que a palavra
correta para gente como Pappachi era anglófilo. Ele fez Rahel e Estha procurarem
anglófilo no Grande dicionário enciclopédico da Reader’s Digest. Dizia assim: pessoa que
demonstra boa disposição pelos ingleses. Então Estha e Rahel tiveram de procurar
disposição. Dizia assim:
(1) Maneira como as coisas são colocadas em uma ordem determinada.
(2) Estado mental determinado em relação a alguma coisa.
Chacko disse que no caso de Pappachi o significado era o (2) Estado mental
determinado em relação a alguma coisa. O que, Chacko disse, significava que
mentalmente Pappachi apresentava um determinado estado que fazia com que
gostasse dos ingleses.
Chacko disse aos gêmeos que mesmo detestando ter de admitir, eles eram
todos anglófilos. Eram uma família de anglófilos. Voltados para a direção errada,
presos do lado de fora da própria História e incapazes de retornar sobre os
próprios passos porque as pegadas tinham sido apagadas. Ele explicou aos dois
que a História era como uma casa velha de noite. Com todas as lâmpadas acesas.
E os ancestrais sussurrando lá dentro.
“Para entender a História”, Chacko disse, “temos de entrar na casa e ouvir o
que eles estão dizendo. E olhar os livros e os quadros nas paredes. E sentir os
cheiros.”
Estha e Rahel não tinham dúvidas de que a casa de que Chacko falava era a
casa do outro lado do rio, no meio de uma fazenda de borracha aonde nunca
haviam ido. A casa de Kari Saipu. O sahib negro. O inglês que tinha “virado
nativo”. Que falava malayalam e vestia mundus. O Kurtz de Ayemenem. E
Ayemenem o seu Coração das Trevas. Ele se suicidara com um tiro na cabeça
dez anos antes, quando os pais de seu jovem amante levaram embora o menino e
o mandaram para a escola. Depois do suicídio, a propriedade passou a ser objeto
de prolongado litígio entre o cozinheiro e o secretário de Kari Saipu. A casa
ficara vazia durante anos. Muito pouca gente a tinha visto. Mas os gêmeos
podiam imaginá-la.
A Casa da História.
Com chão de pedra fresca e paredes escuras, e sombras ondulantes enfileiradas
lado a lado. Lagartos gordos, translúcidos, viviam atrás dos velhos quadros, e
ancestrais pálidos, esfarelantes, com unhas dos pés duras, e hálito cheirando a
mapas amarelados, murmuravam em sussurros sibilantes, como papel.
“Mas nós não podemos entrar”, Chacko explicou, “porque fomos trancados do
lado de fora. E quando olhamos para dentro das janelas, tudo o que vemos são
sombras. E quando tentamos ouvir, tudo que ouvimos é um murmúrio. E não
podemos entender o murmúrio, porque nossas cabeças foram invadidas por uma
guerra. Uma guerra que ganhamos e perdemos. O pior tipo de guerra. Uma
guerra que captura os sonhos e ressonha todos. Uma guerra que nos fez adorar
nossos conquistadores e desprezar a nós mesmos.”
“Casar com os conquistadores, isso sim”, disse Ammu, seca, referindo-se a
Margaret Kochamma. Chacko a ignorou. Ele fez os gêmeos procurarem Desprezar.
Dizia: não fazer caso de; não levar em conta; desdenhar, aviltar.
Chacko disse que no contexto da guerra de que estava falando, a Guerra de
Sonhos, desprezar significava todas essas coisas.
“Somos prisioneiros de guerra”, disse Chacko. “Nossos sonhos foram
manipulados. Não pertencemos a lugar nenhum. Navegamos sem âncora por
mares turbulentos. Pode ser que nunca nos permitam desembarcar em terra. A
tristeza de nossas tristezas nunca vai ser suficiente. Nem a alegria de nossa
felicidade, nem o tamanho de nossos sonhos. Nossas vidas nunca terão
importância suficiente para serem levadas em conta.”
Então, para dar a Estha e Rahel uma idéia da perspectiva histórica (embora
perspectiva fosse algo que, nas semanas seguintes, faria muita falta ao próprio
Chacko), ele falou aos dois da Mulher Terra. Fez os dois imaginarem que a
Terra, com quatro bilhões e seiscentos milhões de anos, era uma mulher de
quarenta e seis anos, da idade, digamos, de Aleyamma, a Professora, que dava
lições de malayalam para eles. A Mulher Terra tinha levado a vida inteira para
ser o que era. Para separar os oceanos. Para elevar as montanhas. A Mulher
Terra tinha onze anos de idade, disse Chacko, quando apareceram os primeiros
organismos unicelulares. Os primeiros animais, criaturas iguais a vermes e águas-
marinhas, só apareceram quando tinha quarenta. Tinha quarenta e cinco, havia
apenas oito meses, quando os dinossauros ainda dominavam a Terra.
“Toda a civilização humana conforme nós conhecemos”, Chacko disse aos
gêmeos, “começou faz só duas horas na vida da Mulher Terra. O tempo que leva
para ir de carro de Ayemenem até Cochin.”
Era assustador e humilhante, disse Chacko (Humbling, “humilhante”, era uma
palavra bonita, Rahel pensou. Humbling along without a care in the world), saber
que a totalidade da História contemporânea, as Guerras Mundiais, a Guerra de
Sonhos, o Homem na Lua, a ciência, a literatura, a filosofia, a busca de
conhecimento, não eram mais do que uma piscada de olhos da Mulher Terra.
“E nós, meus queridos, tudo o que nós somos e jamais seremos é só uma
piscada do olho dela”, Chacko disse em tom grandioso, deitado em sua cama,
olhando o teto.
Quando estava nesse estado, Chacko usava seu tom de Ler em Voz Alta. Seu
quarto ficava com um ar de igreja. Ele não se importava se havia alguém
ouvindo ou não. E se havia, não se importava se estavam ou não entendendo o
que dizia. Ammu chamava esses momentos de Clima de Oxford.
Depois, à luz de tudo o que aconteceu, piscada passou a parecer a palavra
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