Então o camarada Pillai, com uma voz agressiva, citou o presidente Mao. Em
malayalam. A expressão do rosto curiosamente parecida com a da sobrinha.
“A Revolução não é um banquete. A Revolução é uma insurreição, é um ato
de violência em que uma classe derruba outra.”
E assim, uma vez acertado o contrato para os rótulos de Vinagre Sintético
para Cozinha, ele habilmente expulsou Chacko das fileiras dos Insurrectos para a
ala traiçoeira A Ser Derrubada.
Os dois sentados lado a lado nas cadeiras de aço dobráveis, na tarde do Dia
em Que Sophie Mol Chegou, bebendo café e comendo flocos de banana.
Deslocando com as línguas a polpa úmida que lhes grudava no céu da boca.
O Homem Pequeno Magro e o Homem Grande Gordo. Adversários de revista
em quadrinhos numa guerra ainda por vir.
Acabou sendo uma guerra que, infelizmente para o camarada Pillai, terminaria
quase antes de ter começado. A vitória lhe foi dada de presente embrulhada e
amarrada com fita, numa bandeja de prata. Só então, quando já era tarde demais
e a Paraíso Picles despencava suavemente para o chão sem nem um murmúrio,
nem mesmo um arremedo de resistência, foi que o camarada Pillai se deu conta
de que o que ele realmente precisava era do processo da guerra mais do que da
vitória. A guerra teria sido o cavalo em que ele trilharia, senão todo, pelo menos
parte do caminho para a Assembléia Legislativa, enquanto a vitória o deixava no
mesmo ponto em que tinha começado.
Ele quebrou os ovos, mas queimou a omelete.
Ninguém jamais soube a natureza exata do papel desempenhado pelo camarada
Pillai nos eventos que se seguiram. Nem mesmo Chacko, que sabia que eram
hipócritas os discursos ardentes, agudos, pronunciados pelo camarada Pillai,
defendendo os direitos dos intocáveis (“Casta é Classe, camaradas”) durante o
cerco do Partido Marxista à Paraíso Picles, nem mesmo Chacko jamais soube a
história inteira. Nem se deu ao trabalho de descobrir. Na época, entorpecido
pela perda de Sophie Mol, ele olhava tudo com uma visão toldada pela dor.
Como uma criança tocada pela tragédia, que cresce de repente e abandona seus
brinquedos, Chacko jogou fora seus brinquedos. O sonho de ser o Barão do
Picles e a Guerra do Povo foram se juntar aos montes de aeromodelos
quebrados no armário de porta de vidro. Quando a Paraíso Picles fechou, foram
vendidos alguns campos de arroz (junto com as hipotecas) para cobrir os
empréstimos bancários. Na época que Chacko emigrou para o Canadá, a única
renda da família vinha da plantação de seringueiras junto da Casa Ayemenem e
dos poucos coqueiros da propriedade. Era disso que Baby Kochamma e Kochu
Maria viviam depois que todo mundo morreu, foi embora, ou foi Devolvido.
Para fazer justiça ao camarada Pillai, ele não planejou o curso que os eventos
tomaram. Ele simplesmente deslizou os cinco dedos na luva que a História lhe
estendeu.
Não era inteiramente culpa sua viver numa sociedade em que a morte de um
homem podia ser muito mais proveitosa do que sua vida jamais fora.
A última visita de Velutha ao camarada Pillai, depois de seu confronto com
Mammachi e Baby Kochamma, e o que se passou entre eles, ficou para sempre
em segredo. A última traição que levou Velutha a cruzar o rio, nadando contra
a corrente, no escuro e na chuva, bem a tempo de seu encontro com a História.
V
ELUTHA PARTIU
no último ônibus de Kottayam, onde tinha levado a máquina
de enlatamento para consertar. No ponto do ônibus, encontrou outro operário da
fábrica, que lhe disse, com um sorriso malicioso, que Mammachi queria falar
com ele. Velutha não fazia idéia do que tinha acontecido e ignorava por
completo a visita de seu pai, bêbado, à Casa Ayemenem. Não sabia também que
Vellya Paapen estava sentado fazia horas na porta da cabana, ainda bêbado, o
olho de vidro e o fio do machado brilhando na luz do lampião, esperando
Velutha voltar. Nem que o paralítico Kuttapen, morto de apreensão, fazia já duas
horas falava continuamente com o pai, tentando acalmá-lo, aguçando o ouvido o
tempo todo, alerta para o som de um passo ou o roçar do mato, de forma a
poder gritar um alerta ao irmão que não sabia de nada.
Velutha não foi para casa. Foi direto para a Casa Ayemenem. Se, por um lado,
foi pego de surpresa, por outro lado, sabia, sempre soubera, com um instinto
antigo, que um dia a História lhe daria o troco. Durante toda a explosão de
Mammachi ele ficou contido e estranhamente composto. Uma compostura nascida
da extrema provocação. Brotada de uma lucidez que fica além da raiva.
Quando Velutha chegou, Mammachi perdeu a compostura e cuspiu cegamente
seu veneno, seus insultos crassos, intoleráveis, na direção de um dos painéis da
porta corrediça, até que Baby Kochamma, com muito tato, virou-a e apontou
sua raiva na direção certa, para Velutha, parado, muito quieto, na penumbra.
Mammachi continuou sua tirada, os olhos vazios, o rosto contorcido e feio, a
raiva impulsionando-a na direção de Velutha, até que estava gritando na cara
dele, e ele sentia os borrifos de saliva e o cheiro de chá velho no hálito dela.
Baby Kochamma ficou perto de Mammachi. Não disse nada, mas usou as mãos
para modular a fúria de Mammachi, para atiçá-la. Um tapinha encorajador nas
costas. Um braço carinhoso sobre os ombros. Mammachi não tinha a menor
consciência dessa manipulação.
Exatamente onde uma senhora como ela, que usava sáris engomados passados a
ferro e tocava a Suíte Quebra-Nozes no violino de noite, tinha aprendido a
linguagem baixa que Mammachi usou naquele dia era um mistério para todo
mundo que estava ouvindo (Baby Kochamma, Kochu Maria, Ammu trancada no
quarto).
“Fora!”, ela acabou gritando. “Se encontrar você na minha propriedade amanhã,
mando castrar como o cachorro pária que você é! Mando matar você!”
“Isso nós vamos ver”, Velutha disse, baixo.
Foi tudo o que disse. E foi isso que, na sala do inspetor Thomas Mathew,
Baby Kochamma enfatizou e bordou como ameaça de assassinato e rapto.
Mammachi cuspiu na cara de Velutha. Saliva grossa. Que se espalhou na pele
dele. Na boca, nos olhos.
Ele ficou ali. Tonto. Depois, virou-se e foi embora.
Enquanto se afastava da casa, percebeu que seus sentidos estavam afiados,
aguçados. Como se tudo à sua volta estivesse chapado em uma ilustração nítida.
Uma planta de máquina com um manual de instruções que lhe dizia o que
fazer. Sua cabeça, precisando desesperadamente se ancorar em alguma coisa,
agarrava-se a detalhes. Rotulando cada coisa que encontrava.
Portão, pensou ao atravessar o portão. Portão. Estrada. Pedras. Céu. Chuva.
Portão.
Estrada.
Pedras.
Céu.
Chuva.
A chuva estava morna em sua pele. A laterita irregular debaixo de seus pés. Ele
sabia aonde estava indo. Atento a tudo. A cada folha. Cada árvore. Cada nuvem
no céu sem estrelas. Cada passo que dava.
Koo-koo kookum theevandi
Kooki paadum theevandi
Rapakal odum theevandi
Thalannu nilkum theevandi
Essa era a primeira lição que tinha aprendido na escola. Um poema sobre um
trem.
Começou a contar. Alguma coisa. Qualquer coisa. Um dois três quatro cinco seis
sete oito nove dez onze doze treze catorze quinze dezesseis dezessete dezoito dezenove vinte
vinte e um vinte e dois vinte e três vinte e quatro vinte e cinco vinte e seis vinte e sete
vinte e oito vinte e nove...
A planta da máquina começou a ficar borrada. As linhas nítidas foram se
esfumaçando. As instruções não faziam mais sentido. A estrada subiu ao seu
encontro e a escuridão ficou mais densa. Grossa. Seguir em frente virou um
esforço. Como nadar debaixo da água.
Está acontecendo, uma voz o informou. Começou.
Sua mente, de repente incrivelmente velha, flutuou para fora do corpo e pairou
muito acima dele, no ar, de onde pronunciava avisos inúteis.
Olhou para baixo e viu o corpo de um jovem caminhando no escuro e na
chuva pesada. Mais do que qualquer outra coisa, aquele corpo queria dormir.
Dormir e acordar em outro mundo. Com o cheiro do corpo dela no ar que respirava.
O corpo dela no dele. Talvez nunca mais a visse. Onde ela estava? O que tinham feito
com ela? Teria sido ferida por eles?
Ele continuou andando. O rosto nem virado para a chuva, nem inclinado por
causa da chuva. Nem a recebia, nem se defendia da chuva.
Embora a chuva tivesse limpado a saliva de Mammachi do rosto dele, não
tinha eliminado a sensação de que alguém levantara a sua cabeça e vomitara
dentro do seu corpo. Vômito empelotado escorrendo por dentro dele. Por seu
coração. Pelos pulmões. O líquido grosso caindo lento da boca do estômago.
Todos os seus órgãos cobertos de vômito. A chuva nada podia contra aquilo.
Ele sabia o que tinha de fazer. O manual de instruções o instruíra. Tinha de
chegar ao camarada Pillai. Não sabia mais por quê. Seus pés o levaram à Gráfica
Fortuna, que estava fechada, e depois, através do jardinzinho, para a casa do
camarada Pillai.
O mero esforço de levantar o braço para bater na porta o exauriu.
O camarada Pillai tinha acabado o seu avial e estava esmagando uma banana
madura, deixando a pasta escorrer de seu punho fechado para o prato de
coalhada, quando Velutha bateu na porta. Ele mandou a mulher atender. Ela
voltou emburrada e, o camarada Pillai pensou, repentinamente sexy. Sentiu
vontade de tocar os seios dela imediatamente. Mas estava com a mão suja de
coalhada e havia alguém na porta. Kalyati sentou-se na cama e, abstraída,
acariciou Lenin que dormia ao lado da avó minúscula, chupando o polegar.
“Quem é?”
“Aquele paravan filho de Paapen. Disse que é urgente.”
O camarada Pillai terminou sua coalhada sem pressa. Sacudiu os dedos sobre o
prato. Kalyani trouxe água num recipiente de aço inoxidável e despejou para ele.
Os restos de comida em seu prato (chile seco vermelho e rígidos pedaços de
pernas de galinha chupados e cuspidos fora) flutuaram. Ela lhe trouxe uma toalha
de mão. Ele enxugou as mãos, arrotou seu prazer e foi até a porta.
“Enda? A esta hora da noite?”
Ao responder, Velutha sentiu a própria voz atingi-lo de volta como se tivesse
batido numa parede. Tentou explicar o que tinha acontecido, mas podia ouvir-se
deslizando para a incoerência. O homem com quem falava estava longe, pequeno,
por trás de uma parede de vidro.
“É uma aldeia pequena”, o camarada Pillai estava dizendo. “As pessoas falam.
Eu escuto o que dizem. Não que eu não soubesse o que estava acontecendo.”
Mais uma vez Velutha ouviu a si mesmo dizendo alguma coisa que não fez
nenhuma diferença para o homem com quem falava. Sua voz se enleava nele
próprio como uma cobra.
“Talvez”, disse o camarada Pillai. “Mas, camarada, você devia saber que o
Partido não foi constituído para dar apoio à indisciplina de trabalhadores em sua
vida pessoal.”
Velutha viu o corpo do camarada Pillai desaparecer da porta. Sua voz
flauteada, sem corpo, continuava dizendo slogans. Faixas flutuando numa porta
vazia.
Não é do interesse do Partido assumir questões desse tipo.
O interesse individual é subordinado ao interesse da organização.
Violar a Disciplina do Partido é a mesma coisa que violar a Unidade do Partido.
A voz continuava. Parágrafos se desagregando em frases. Em palavras.
Progresso da Revolução.
Aniquilação da Classe Inimiga.
Agente Capitalista.
Tempestade de verão.
E ali estava de novo: mais uma religião que se voltava contra si mesma. Mais
um edifício construído pela mente humana, dizimado pela natureza humana.
O camarada Pillai fechou a porta e voltou para a mulher e para o jantar.
Resolveu comer mais uma banana.
“O que ele queria?”, a mulher perguntou, dando a ele a banana.
“Descobriram tudo. Alguém deve ter contado. Mandaram ele embora.”
“Só isso? Ele tem sorte de não ter sido dependurado da primeira árvore.”
“Eu notei uma coisa esquisita...”, disse o camarada Pillai descascando a banana.
“O sujeito estava com as unhas pintadas de vermelho...”
De pé, na chuva, na luz fria e molhada do poste único, Velu-tha foi
subitamente dominado pelo sono. Teve de fazer força para manter os olhos
abertos.
Amanhã, disse a si mesmo. Amanhã, quando a chuva parar.
Seus pés o levaram para o rio. Como se fossem a guia e ele o cachorro.
A História levando o cachorro a passear.
15.
A TRAVESSIA
P
ASSAVA DA MEIA-NOITE.
O rio tinha subido, as águas rápidas e negras,
serpenteando para o mar, levando com elas o céu noturno e nublado, a fronde
de uma palmeira inteira, parte de uma cerca de palha e outros presentes que o
vento tinha lhe dado.
Rapidamente a chuva diminuiu até virar uma garoa, e parou. O vento sacudia
a água das árvores e durante algum tempo só choveu debaixo das árvores, onde
antes era abrigo.
Um luar fraco, aquoso, filtrou-se das nuvens e revelou um jovem sentado no
primeiro dos treze degraus que levavam para a água. Ele estava muito quieto,
muito molhado. Muito jovem. Logo depois, se pôs de pé, despiu o mundu branco
que estava usando, torceu o pano para tirar a água e enrolou-o na cabeça, como
um turbante. Nu, desceu os treze degraus de pedra até a água e continuou até
onde o rio batia no peito. Depois, começou a nadar com braçadas fáceis, fortes,
indo na direção onde a corrente era rápida e direta, onde começava o Fundo
Mesmo. O rio enluarado pendia de seus braços como mangas de prata. Levou
alguns minutos para fazer a travessia. Quando chegou ao outro lado, emergiu,
reluzente, e subiu para a margem, negro como a noite que o cercava, negro
como a água que tinha atravessado.
Entrou na trilha que atravessava o pântano na direção da Casa da História.
Ele não deixava ondulações na água.
Nem pegadas na praia.
Levava o mundu estendido acima da cabeça para secar. O vento o enfunava
como uma vela de navio. Ele estava subitamente alegre. As coisas vão piorar,
pensou consigo mesmo. Depois melhorar. Estava andando depressa agora, na
direção do Coração das Trevas. Sozinho como um lobo.
O Deus da Perda.
O Deus das Pequenas Coisas.
Nu, a não ser pelo esmalte das unhas.
16.
POUCAS HORAS DEPOIS
T
RÊS CRIANÇAS NA MARGEM
do rio. Dois gêmeos e uma outra, cujo avental de
veludo cotelê cor de malva dizia Férias! Em letras alegres, inclinadas.
As folhas molhadas das árvores faiscavam como metal batido. Densas touceiras
de bambu amarelo pendiam para o rio, como se lamentassem antecipadamente o
que ia acontecer. O próprio rio estava escuro e quieto. Uma ausência mais que
uma presença, sem trair o quanto estava cheio e forte.
Estha e Rahel arrastaram o barco do meio dos arbustos onde costumavam
escondê-lo. Os remos que Velutha fizera estavam escondidos no oco de uma
árvore. Eles colocaram o barco na água e seguraram para Sophie Mol poder
subir a bordo. Pareciam confiar na escuridão e subiam e desciam os degraus
reluzentes com a segurança de cabritos.
Sophie Mol era mais insegura. Um pouco assustada com o que podia haver nas
sombras à sua volta. Trazia uma bolsa de pano cruzada no peito, cheia de
comida surrupiada da geladeira. Pão, bolo, biscoitos. Os gêmeos, sobrecarregados
pelas palavras da mãe, Se não fosse por causa de vocês, eu estaria livre! Eu devia ter
enfiado vocês num orfanato no dia que nasceram! Vocês são como pedras amarradas no
meu pescoço!, não levavam nada. Graças ao que o Homem do Refrescodelaranja
Refrescodelimão tinha feito com Estha, sua Casa Longe de Casa já estava
equipada. Nas duas semanas que se passaram desde que Estha havia remado a
geléia e pensado Dois Pensamentos, tinham surrupiado Provisões Essenciais:
fósforos, batatas, uma panela amassada, um ganso inflável, meias com dedos
multicoloridos, canetas esferográficas com ônibus londrinos e o coala da Qantas
com olhos de botão soltos.
“E se Ammu encontrar a gente e implorar para a gente voltar?”
“A gente volta. Mas só se ela implorar.”
Estha, o Misericordioso.
Sophie Mol tinha convencido os gêmeos de que era essencial que ela fosse
também. Que a ausência de crianças, de todas as crianças, intensificaria o remorso
dos adultos. Ia deixá-los realmente arrependidos, como os adultos de Hamelin
quando o flautista levou embora todos os seus filhos. Eles iam procurar por toda
parte e só quando estivessem convencidos de que todos estavam mortos é que os
três voltariam para casa em triunfo. Valorizados, amados e mais indispensáveis do
que nunca. O argumento definitivo que ela usou foi que, se a deixassem em casa,
ela podia ser torturada e forçada a revelar o esconderijo deles.
Estha esperou Rahel subir, depois tomou seu lugar, montando no barquinho
como se fosse uma gangorra. Ele usou a perna para empurrar o barco para longe
da margem. Quando chegaram em águas profundas, começaram a remar rio
acima em diagonal, contra a corrente, do jeito que Velutha tinha ensinado. (“Se
quer chegar ali, tem de mirar lá.”)
No escuro, não conseguiam ver que estavam indo na pista errada, numa estrada
silenciosa cheia de tráfego abafado. Que galhos, troncos, partes de árvores,
estavam correndo na direção deles com certa velocidade.
Tinham passado pelo Fundo Mesmo, estavam a apenas alguns metros do Outro
Lado, quando colidiram com um tronco flutuante e o barquinho virou. Isso já
havia acontecido com eles várias vezes em expedições anteriores ao rio, e eles
então nadavam atrás do barco, que usavam como bóia, nadando de cachorrinho
até a margem. Dessa vez, não podiam ver o barco no escuro. Ele foi arrebatado
pela corrente. Nadaram para a margem, surpresos com o esforço necessário para
cobrir distância tão curta.
Estha conseguiu agarrar um ramo baixo que fazia um arco para dentro da
água. Ele olhou rio abaixo, no escuro, para ver se conseguia enxergar o barco.
“Não estou vendo nada. Foi embora.”
Rahel, coberta de lama, arrastou-se margem acima e estendeu a mão para
ajudar Estha a sair da água. Levaram alguns minutos para recobrar o fôlego e
registrar a perda do barco. Para lamentar a sua morte.
“E a nossa comida toda estragou”, Rahel disse para Sophie Mol, e só
encontrou o silêncio. Um silêncio corredio, fluido, de peixe nadando.
“Sophie Mol?”, ela sussurrou para o rio que corria. “Estamos aqui! Aqui! Perto
da árvore de Illimba!”
Nada.
No coração de Rahel, a mariposa de Pappachi desdobrou as asas sombrias.
Abriu.
Fechou.
E mexeu as pernas.
Para cima.
Para baixo.
Eles correram ao longo da margem chamando por ela. Mas ela havia ido
embora. Levada pela estrada abafada. Cinza-esver-deada. Com peixes dentro dela.
Com o céu e árvores dentro dela. E, de noite, uma lua amarela quebrada dentro
dela.
Não houve música de tempestade. Nenhum redemoinho surgiu das profundezas
tintas do Meenachal. Nenhum tubarão supervisionou a tragédia.
Apenas uma calada cerimônia de entrega. Um barco derramando sua carga. Um
rio aceitando a oferenda. Uma pequena vida. Um breve raio de sol. Com um
dedal de prata apertado na mãozinha, como um talismã.
Eram quatro da manhã, ainda escuro, quando os gêmeos, exaustos, perturbados
e cobertos de lama, atravessaram o pântano e foram para a Casa da História.
Hansel e Gretel num horrendo conto de fadas em que seus sonhos seriam
capturados e ressonhados. Deitaram-se na varanda dos fundos, num colchão de
crina com um ganso inflável e um coala da Qantas. Dois anões molhados,
entorpecidos de medo, esperando o mundo acabar.
“Acha que ela já está morta?”
Estha não respondeu.
“O que é que vai acontecer?”
“Nós vamos para a cadeia.”
Ele Sabia Muito Bem. O Homem Pequeno. Ele morava numa cara-van. Dum
dum.
Eles não viram que havia alguém mais dormindo nas sombras. Solitário como
um lobo. Com uma folha marrom nas costas negras. Que fazia as monções virem
na data certa.
17.
A ESTAÇÃO DE TRENS DE COCHIN
E
M SEU QUARTO LIMPO
na suja Casa Ayemenem, Estha (nem velho, nem moço)
estava sentado na cama no escuro. Muito ereto. Os ombros retos. As mãos no
colo. Como se fosse o próximo da fila em algum tipo de inspeção. Ou esperando
para ser preso.
Tinha acabado de passar a ferro. As roupas estavam numa pilha bem arrumada
em cima da tábua de passar. Tinha passado as de Rahel também.
Chovia uma chuva uniforme. Chuva noturna. O baterista solitário praticando
seu repique muito depois de o resto da banda ter ido dormir.
No mittam lateral, junto da entrada independente das “Necessidades
Masculinas”, o rabo-de-peixe cromado do Plymouth cintilou momentaneamente
num relâmpago. Durante anos, depois de Chacko ter mudado para o Canadá,
Baby Kochamma mandara lavar o carro regularmente. Duas vezes por semana, o
cunhado de Kochu Maria, que dirigia o caminhão de lixo amarelo da prefeitura
de Kottayam, vinha para Ayemenem (escoltado pelo fedor dos refugos de
Kottayam, que permaneciam muito tempo depois de ele ter ido embora), para
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