lábios na barriga de Ammu e chupou, puxando a pele macia para dentro da boca
e depois afastando a cabeça para admirar o oval brilhante de saliva e a tênue
marca avermelhada de seus dentes na pele da mãe.
Ammu ficou pensando na transparência daquele beijo. Era um beijo límpido
como vidro. Desanuviados de paixão ou desejo, aqueles dois cachorros que
dormem tão profundamente dentro das crianças, esperando que elas cresçam. Era
um beijo que não exigia retribuição.
Não um beijo enevoado cheio de perguntas exigindo respostas. Como os beijos
de homens de um braço só nos sonhos.
Ammu se cansou de ser manipulada pelos dois, como se fossem seus donos.
Queria seu corpo de volta. Era dela. Afastou as crianças do jeito que uma cadela
afasta os filhotes quando enjoa deles. Sentou-se, torceu o cabelo num nó na
nuca. Depois jogou as pernas para fora da cama, foi até a janela e abriu as
cortinas.
A luz inclinada da tarde inundou o quarto e iluminou as duas crianças sobre a
cama.
Os gêmeos ouviram a chave sendo virada no banheiro de Ammu.
Clique.
Ammu olhou-se no espelho grande do banheiro e o espectro de seu futuro
apareceu no reflexo para caçoar dela. Em conserva. Como picles. Grisalho. De
olhos lacrimejantes. Rosas de ponto de cruz na bochecha murcha, afundada. Seios
gastos dependurados como meias pesadas. Secos como um osso entre suas pernas,
os pêlos muito brancos. Esparsos. Quebradiços como uma folha de samambaia
entre as páginas de um livro.
Pele que esfarelava e caía como neve.
Ammu estremeceu.
Sentindo na tarde quente aquela fria sensação de que a Vida tinha sido Vivida.
De que sua taça estava cheia de pó. De que o ar, o céu, as árvores, o sol, a
chuva, a luz e as trevas estavam todos se transformando lentamente em areia. De
que a areia ia encher suas narinas, seus pulmões, sua boca. Ia puxá-la para baixo,
deixando na superfície um redemoinho, como deixam os caranguejos quando se
enterram na praia.
Ammu tirou a roupa e colocou uma escova de dentes vermelha debaixo de um
seio para ver se ficava presa. Não ficava. Em todo lugar que tocava, sua carne
era firme e lisa. Debaixo de sua mão, os mamilos se enrugaram e endureceram
como nozes escuras, repuxando a pele macia dos seios. A fina trilha de penugem
descia do umbigo para a base da barriga, para o triângulo escuro. Como uma
flecha indicando a direção para um viajante perdido. Para um amante
inexperiente.
Desmanchou o cabelo e virou para ver de que comprimento estava. As ondas e
cachos e caracóis rebeldes, macios por baixo, mais ásperos por fora, desciam até
pouco abaixo do ponto em que a cintura fina, forte, começava a formar a curva
dos quadris. O banheiro estava quente. Pequenas contas de suor pontilhavam sua
pele como diamantes. Depois partiam-se e escorriam. Pela linha funda de sua
coluna o suor escorria. Ela olhou um tanto crítica para o traseiro redondo,
pesado. Não grande propriamente. Não grande per se (como Chacko de Oxford
diria, sem dúvida). Grande apenas porque todo o resto do corpo era tão esguio.
Pertencia a algum outro corpo, mais voluptuoso.
Tinha de admitir que cada um dos lados seguraria alegremente uma escova de
dentes. Talvez duas. Riu alto da idéia de sair andando nua por Ayemenem com
um conjunto de escovas de dentes coloridas espetado de cada face de sua bunda.
Calou-se depressa. Viu um vestígio de loucura escapar de sua garrafa e saltitar
triunfante pelo banheiro.
Ammu se preocupava com a loucura.
Mammachi tinha dito que havia um traço de loucura na família. Que aparecia
de repente nas pessoas e as pegava desprevenidas. Havia Pathil Ammai, que com
a idade de sessenta e cinco anos deu de tirar a roupa e correr nua pela margem
do rio, cantando para os peixes. Havia Thampi Chachen, que toda manhã
examinava a própria merda com uma agulha de tricô em busca de um dente de
ouro que ele tinha engolido anos antes. E o dr. Muthachen, que teve de ser
removido do próprio casamento dentro de um saco. Será que as futuras gerações
iam dizer: “Havia Ammu, Ammu Ipe. Que casou com um bengalês. Que ficou
bem louca. Que morreu moça. Numa hospedaria barata por aí”?
Chacko dizia que a alta incidência de insanidade entre os cristãos sírios era o
preço que pagavam pelos casamentos consangüíneos. Mammachi dizia que não.
Ammu recolheu o cabelo pesado, enrolou-o no rosto e espiou a estrada para a
Velhice e a Morte através das mechas. Como um carrasco medieval olhando o
condenado através das fendas oculares do capuz preto e pontudo. Um carrasco
esguio, nu, com mamilos escuros e covinhas fundas quando ria. Com sete estrias
devidas a seus gêmeos bivitelinos, que lhe nasceram à luz de velas em meio a
notícias de uma guerra perdida.
Não era o que havia no fim da estrada que assustava Ammu, mas sim a
natureza da estrada em si. Nenhum marco registrava seu avanço. Nenhuma árvore
crescia às suas margens. Nenhum retalho de sombra a sombreava. Nenhuma
neblina rolava por ela. Nenhum pássaro a sobrevoava. Nenhuma curva, nenhum
desvio obscurecia, nem mesmo momentaneamente, a clara visão do fim da
estrada. Isso encheu Ammu de um horror terrível, porque não era o tipo de
mulher que queria saber o próprio futuro. Ela sentia muito horror dele.
Portanto, se lhe fosse concedido um pequeno desejo, talvez fosse apenas Não
Saber. Não saber o que cada dia lhe reservava. Não saber onde estaria no mês
que vem, no ano que vem. Daqui a dez anos. Não saber para que lado sua
estrada viraria e o que haveria depois da curva. E Ammu sabia. Ou pensava que
sabia, o que era tão mau quanto (porque se num sonho você come peixe, isso
quer dizer que você comeu peixe). E o que Ammu sabia (ou achava que sabia)
tinha o cheiro do vapor avinagrado e choco que subia dos barris de cimento da
Paraíso Picles. Vapores que engruvinhavam a juventude e punham em conserva os
futuros.
Oculta em seu próprios cabelos, Ammu encostou-se no espelho do banheiro e
tentou chorar.
Por si mesma.
Pelo Deus das Pequenas Coisas.
Pelos parteiros gêmeos do seu sonho, polvilhados de açúcar.
Naquela tarde, enquanto no banheiro os fados conspiravam para alterar
horrivelmente o caminho misterioso de sua mãe, enquanto no quintal de Velutha
um velho barco esperava por eles, enquanto numa igreja amarela um
morceguinho esperava para nascer, no quarto de sua mãe, Estha equilibrou-se de
cabeça em cima do bumbum de Rahel.
O quarto de cortinas azuis e vespas amarelas que preocupavam as vidraças. O
quarto cujas paredes logo conheceriam seus segredos torturantes.
O quarto em que Ammu primeiro seria trancada e depois trancaria a si
mesma. Cuja porta, Chacko, louco de dor, arrombaria quatro dias depois do
funeral de Sophie Mol.
“Saia da minha casa antes que eu quebre todos os ossos do seu corpo!”
Minha casa, meus abacaxis, meus picles.
Depois disso, durante muitos anos, Rahel sonharia este sonho: um homem
gordo, sem rosto, ajoelhado junto ao cadáver de uma mulher. Arrancando os
cabelos dela. Quebrando todos os ossos de seu corpo. Estalando até os menores.
Os dedos. Os ossos do ouvido partidos como ramos. Clequecleque o sonzinho de
ossos quebrados. E Rahel (embora anos depois, no Crematório Elétrico, fosse
usar o escorregadio do suor para escapar da mão de Chacko) amava os dois. O
pianista e o piano.
O assassino e o cadáver.
Enquanto a porta era lentamente posta abaixo, Ammu ficou fazendo barras nas
fitas de Rahel, que não precisavam de barras, para controlar o tremor das mãos.
“Me prometam que vocês vão sempre amar um ao outro”, ela tinha dito,
puxando os filhos para si.
“Prometo”, Estha e Rahel disseram. Sem encontrar palavras para dizer que para
eles não existia nem Um, nem Outro.
Pedras de moinho gêmeas e sua mãe. Pedras de moinho entorpecidas. O que
eles fizeram iria voltar para esvaziá-los. Mas isso seria Depois.
De Pois. Um som grave de sino dentro de um poço cheio de musgo. Trêmulo
e veludoso como pés de mariposa.
Na época, houve só incoerência. Como se todo sentido tivesse deslizado para
fora das coisas, deixando-as fragmentadas. Desconexas. O brilho na agulha de
Ammu. A cor da fita. A trama da colcha de ponto de cruz. A porta se
quebrando devagar. Coisas isoladas que não significavam nada. Como se a
inteligência que decodifica os padrões ocultos da vida, que liga reflexos a
imagens, lampejos a luz, tramas a tecidos, agulhas a linhas, paredes a quartos,
amor a medo, a raiva, a remorso, tivesse repentinamente se perdido.
“Arrume suas coisas e vá embora”, Chacko diria, pisando em cima dos
destroços. Pairando acima deles. Uma maçaneta cromada na mão. De repente,
estranhamente calmo. Surpreso com a própria força. O próprio tamanho. O
próprio poder de agressão. A enormidade de sua própria dor terrível.
Vermelha, a cor da madeira lascada da porta.
Ammu, calma por fora, tremendo por dentro, não levantaria os olhos da barra
inútil. A lata de fitas coloridas aberta no colo, no quarto onde tinha perdido seu
Locusts Stand I.
O mesmo quarto em que (depois da resposta da Especialista em Gêmeos de
Hyderabad) Ammu iria arrumar o bauzinho de Estha e sua sacola cáqui: doze
camisetas sem manga, doze camisetas de meia manga. Estha, olhe, o seu nome está
aqui, escrito a tinta. As meias dele. A calça apertada. As camisas de colarinho
pontudo. O sapato bege de bico fino (de onde brotavam os Sentimentos de
Raiva). Os discos de Elvis. Os comprimidos de cálcio e o xarope Vydalin. A
Girafa Grátis (que vinha com o Vydalin). Os Livros de Conhecimento, vols. 1 a
4. Não, querido, lá não vai ter um rio para você pescar. A Bíblia encapada de couro
branco com zíper com uma abotoadura de ametista do Entomologista Imperial
no zíper. A caneca. O sabonete. O Presente de Aniversário Adiantado que ele não
podia abrir. Quarenta aerogramas verdes nacionais. Escute, Estha, eu vou escrever
nosso endereço em todos. Você só tem de dobrar. Veja se consegue dobrar sozinho. E
Estha dobrou direitinho os aerogramas verdes nacionais nas linhas pontilhadas
que diziam Dobre aqui e olhou para Ammu com um sorriso que cortou o
coração dela.
Me prometa que vai escrever? Mesmo que não tenha notícias?
Prometo, Estha disse. Não inteiramente consciente da própria situação. O fio
afiado de suas apreensões cego pela súbita riqueza de posses materiais. Eram
coisas Dele. Que tinham seu nome escrito a tinta em cima delas. Que iam ser
embaladas no baú (com o nome dele em cima) aberto no chão do quarto.
O quarto ao qual, anos depois, Rahel voltaria para observar um estranho
silencioso tomando banho. E lavando as próprias roupas com sabão azul brilhante
esfarelado.
Musculoso e cor de mel. Com segredos do mar nos olhos. E uma gota de
chuva prateada na orelha.
Esthapappychachen Kuttapen Peter Mon.
12.
KOCHU THOMBAN
O
SOM DO
CHENDA
era um cogumelo sobre o templo, acentuando o silêncio da
noite envolvente. Da estrada molhada, solitária. Das árvores vigilantes. Rahel, sem
fôlego, segurando um coco, entrou no conjunto do templo pelo portão de
madeira do alto muro circundante.
Lá dentro, era tudo paredes brancas, ladrilhado de musgo, iluminado pela lua.
Tudo cheirava a chuva recente. O sacerdote magro dormia num colchão na
varanda de pedra elevada. Um pires de latão para moedas ao lado de seu
travesseiro como uma ilustração de quadrinhos daquilo com que sonhava. O
conjunto estava coalhado de luas, uma em cada poça de lama. Kochu Thomban
tinha encerrado suas funções cerimoniais e estava acorrentado a uma estaca de
madeira perto de um monte fumarento de seu próprio esterco. Estava dormindo,
o trabalho feito, a bexiga vazia, uma presa pousada na terra, a outra apontando
para as estrelas. Rahel aproximou-se silenciosamente. Viu que a pele dele estava
mais solta do que na sua lembrança. Não mais Kochu Thomban. Suas presas
tinham crescido. Agora era Vellya Thomban. O Presas Grandes. Ela colocou o
coco no chão ao lado dele. Uma ruga coriácea se abriu para revelar um brilho
líquido de olho de elefante. Tornou a se fechar, e os cílios longos, curvos,
retomaram o sono. Uma presa voltada para as estrelas.
Junho era a estação baixa do kathakali. Mas existem alguns templos pelos quais
um grupo não passa sem se apresentar. O templo de Ayemenem não era um
desses, mas naqueles dias, graças à sua geografia, as coisas tinham mudado.
Em Ayemenem eles dançavam para aliviar a humilhação que sofriam no
Coração das Trevas. A apresentação truncada ao lado da piscina. O recorrer ao
turismo para escapar da fome.
No caminho de volta do Coração das Trevas, eles paravam no templo para
pedir perdão a seus deuses. Para se desculpar por corromper suas histórias. Por
transformarem em dinheiro suas identidades. Por malversarem suas vidas.
Nessas ocasiões, uma platéia humana era bem-vinda, mas inteiramente
dispensável.
No amplo corredor coberto, o kuthambalam de colunas adjacente ao coração do
templo onde morava o Deus Azul com sua flauta, os tocadores de tambor
tocavam e os dançarinos dançavam, suas cores girando lentamente na noite. Rahel
sentou-se de pernas cruzadas, encostada no redondo de um pilar branco. Uma
lata alta de óleo de coco brilhava na luz bruxuleante do lampião de latão. O
óleo alimentava a luz. A luz iluminava a lata.
Não importava que a história já tivesse começado, porque o kathakali descobriu
há muito que o segredo das Grandes His-tórias é que elas não têm segredos. As
Grandes Histórias são aquelas que você ouviu e quer ouvir de novo. Aquelas em
que você pode entrar por qualquer parte e habitar confortavelmente. Elas não
enganam você com truques e finais emocionantes. Elas não surpreendem você
com o imprevisível. Elas são tão familiares como a casa em que se vive. Ou
como o cheiro da pele do amante. Você sabe como elas terminam, mas, mesmo
assim, você escuta como se não soubesse. Da mesma forma que apesar de saber
que um dia vai morrer, você vive como se não fosse. Nas Grandes Histórias você
sabe quem vive, quem morre, quem encontra o amor, quem não encontra. E,
mesmo assim, você quer ouvir de novo.
Esse é o seu mistério e a sua magia.
Para o Homem do Kathakali essas histórias são seus filhos e sua infância. Ele
cresceu dentro delas. Elas são a casa em que cresceu, os riachos em que brincou.
São sua janela e sua maneira de olhar. Portanto, quando conta uma história, ele
a manipula como se fosse um filho seu. Brinca com ela. Castiga. Solta no ar,
como uma bolha. Ele a domina no chão e deixa que se vá. Ri com ela porque a
ama. Ele é capaz de fazer você voar por outros mundos em questão de minutos
e é capaz de parar durante horas para examinar uma folha seca. Ou brincar com
o rabo de um macaco adormecido. Ele pode mudar sem nenhum esforço da
carnificina da guerra para a alegria de uma mulher lavando o cabelo num riacho
de montanha. Da habilidosa efervescência de um rakshasa que tem uma idéia
nova na cabeça para uma intrigante malaiala que tem um escândalo para
espalhar. Da sensualidade de uma mulher com um bebê ao seio para a maliciosa
sedução do sorriso de Krishna. Ele pode revelar a pepita de tristeza contida na
felicidade. O peixe da vergonha oculto num mar de glória.
Ele conta histórias dos deuses, mas seu fio é urdido a partir do coração
humano.
O Homem do Kathakali é o mais belo dos homens. Porque seu corpo é a sua
alma. Seu único instrumento. Desde os três anos de idade ele é projetado e
polido, aplainado, arreado todo, para a tarefa de contar histórias. Ele tem mágica
dentro dele, esse homem dentro da máscara pintada e das saias esvoaçantes.
Mas hoje em dia ele ficou inviável. Impraticável. Um bem condenável. Seus
filhos o desdenham. Querem ser tudo o que ele não é. Ele os viu crescerem para
se transformarem em funcionários e cobradores de ônibus. Funcionários extra-
oficiais de quinta classe. Com sindicatos próprios.
Mas ele próprio, deixado suspenso em algum ponto entre o céu e a terra, não
pode fazer o que eles fazem. Não pode percorrer corredores de ônibus, contando
troco e vendendo bilhetes. Não pode responder às sirenes que o convocam. Não
pode se curvar detrás de bandejas de chá e bolachas maria.
Em desespero, ele se volta para o turismo. Entra no mercado. Saqueia a única
coisa que tem. As histórias que seu corpo é capaz de contar.
Ele se torna um Sabor Regional.
No Coração das Trevas caçoam dele, os turistas com sua nudez ociosa e seus
breves momentos de atenção importada. Ele controla a raiva e dança para eles.
Ele recebe o pagamento. Ele fica bêbado. Ou fuma um baseado. Da boa
maconha de Kerala. Que o faz rir. Depois, pára no Templo de Ayemenem, ele e
os que estão com ele, e dançam para pedir perdão aos deuses.
Rahel (sem Planos, sem Locusts Stand I), encostada no pilar, viu Karna rezando
nas margens do Ganges. Karna, vestido em sua armadura de luz. Karna, filho
melancólico de Surya, Deusa do Dia. Karna, o Generoso. Karna, o filho
abandonado. Karna, o guerreiro mais respeitado de todos.
Nessa noite, Karna estava de barato. A saia rasgada remendada. Na coroa,
buracos no lugar das pedras preciosas. A blusa de veludo careca de uso. Os
calcanhares rachados. Duros. Ele apagava os baseados com eles.
Mas se tivesse um bando de maquiadores esperando por ele na coxia, um
agente, um contrato, uma porcentagem dos lucros, o que seria dele? Um
impostor. Um mentiroso rico. Um ator representando um papel. Poderia fazer o
papel de Karna? Ou estaria protegido demais dentro de sua vagem de riqueza?
Será que o dinheiro viraria uma casca entre ele e a história? Seria capaz de
tocar o coração da história, seus segredos, da maneira que conseguia agora?
Talvez não.
Esse homem desta noite é perigoso. Seu desespero, completo. Sua história é a
rede de segurança sobre a qual ele salta e mergulha como um palhaço brilhante
num circo decadente. É tudo o que ele tem para evitar que despenque pelo
mundo como uma pedra que cai. É a sua cor e a sua luz. É o recipiente em
que ele se derrama. Dá-lhe forma. Estrutura. O protege. O contém. Seu Amor.
Sua Loucura. Sua Esperança. Sua Infinita Ventura. Ironicamente, sua luta é o
oposto da luta do ator: ele batalha não para entrar no papel, mas para escapar
dele. Mas isso é o que não pode fazer. Em sua derrota abjeta jaz seu triunfo
supremo. Ele é Karna, quando o mundo foi abandonado. Karna Sozinho. Deuses
condenados. Um príncipe criado em pobreza. Nascido para morrer injustamente,
desarmado e sozinho nas mãos de seu irmão. Rezando nas margens do Ganges.
Com a cabeça feita pela maconha.
Então, apareceu Kunti. Ela também era um homem, mas um homem que ficou
suave e feminino, um homem com seios, porque fez papéis femininos durante
anos. Seus movimentos fluidos. Cheios de mulher. Kunti também pirado. O
baseado repartido. Ela veio para contar uma história a Karna.
Karna inclinou a bela cabeça e escutou.
De olhos vermelhos, Kunti dançou para ele. Contando a história de uma jovem
que recebeu uma bênção. Um mantra secreto que ela podia usar para escolher
um amante entre os deuses. E que, com a imprudência da juventude, resolveu
experimentar para ver se de fato funcionava. Sozinha num campo vazio, ela
voltou o rosto para o céu e recitou o mantra. Mal as palavras deixaram seus
lábios tolos, disse Kunti, Surya, o Deus do Dia, apareceu na frente dela. A
jovem, enfeitiçada pela beleza do jovem deus tremeluzente, entregou-se a ele.
Nove meses depois, teve um filho. O bebê nasceu envolto em luz, com brincos
de ouro nas orelhas e uma placa de ouro no peito, gravada com o emblema do
sol.
A jovem mãe amou profundamente o seu primogênito, disse Kunti, mas não
era casada e não pôde ficar com ele. Colocou-o numa cesta de junco e lançou-o
ao rio. A criança foi encontrada rio abaixo por Adhirata, um cocheiro. Que o
chamou de Karna.
Karna olhou para Kunti. Quem era ela? Quem era minha mãe? Me diga onde está.
Me leve até ela.
Kunti inclinou a cabeça. Ela está aqui, disse. Na sua frente.
A excitação e raiva de Karna diante da revelação. Sua dança de confusão e
desespero. Onde estava, perguntou a ela, quando mais precisei de você? Algum dia me
carregou nos braços? Me alimentou? Nunca procurou por mim? Nunca pensou onde eu
poderia estar?
Em resposta, Kunti pegou a nobre face entre suas mãos, verde a face,
vermelhos os olhos, e o beijou na testa. Karna estremeceu de prazer. Um
guerreiro reduzido à infância. O êxtase daquele beijo. Ele o enviou até o
extremo do corpo. Até os dedos dos pés. Até as pontas dos dedos. O beijo de
sua mãe adorável. Sabe o quanto senti sua falta? Rahel podia ver aquele sentimento
correndo pelas veias dele como um ovo descendo pelo pescoço de um avestruz.
Um beijo viajante cuja jornada foi interrompida pelo desalento quando Karna
se deu conta de que sua mãe só se revelou a ele para garantir a segurança de
seus outros cinco filhos, mais amados, os Pandavas, que estavam a ponto de
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