e pregos e parafusos velhos.
“Aiyyo, Mon! Mol! O que é que vocês vão pensar? Que Kuttappen é um
inútil!”, disse uma voz envergonhada, sem corpo.
Os gêmeos levaram algum tempo para acostumar os olhos ao escuro. Então o
escuro se dissolveu e Kuttappen apareceu em sua cama, um gênio brilhando na
penumbra. O branco de seus olhos era amarelo-escuro. As solas dos pés (finas de
tanto ficar deitado) saindo para fora do pano que lhe cobria as pernas. Ainda
eram manchadas de cor de laranja pálido de anos e anos andando descalço na
lama vermelha. Ele tinha calos cinzentos nos tornozelos onde apertava a corda
que os paravans usam amarrada nos pés para trepar nos coqueiros.
Na parede atrás dele, havia um Jesus de calendário, benigno, de cabelos ralos,
batom e ruge, com um coração horrível aparecendo como uma jóia entre as
roupas. A parte de baixo do calendário (o pedaço onde ficavam as datas) estava
embabadado como uma saia. Jesus de míni. Doze camadas de anáguas para os
doze meses do ano. Nenhuma tinha sido arrancada.
Havia outras coisas da Casa Ayemenem que haviam sido ou dadas a eles ou
resgatadas por eles da lata de lixo. Coisas ricas numa casa pobre. Um relógio
que não funcionava, um cesto de papel de metal florido. As velhas botas de
montaria de Pappachi (marrons, com mofo verde) com as fôrmas ainda dentro
delas. Latas de bolachas com imagens suntuosas de castelos ingleses e damas de
saias rodadas e cachos nos cabelos.
Um pequeno pôster (de Baby Kochamma, dado por ela por causa de uma
mancha de umidade) dependurado ao lado de Jesus. Era a figura de uma criança
loira escrevendo uma carta, com lágrimas escorrendo pelas faces. Embaixo estava
escrito: Estou escrevendo para dizer que sinto sua falta. Parecia que tinha acabado de
cortar os cabelos e que os seus cachos é que rolavam pelo quintal de Velutha.
Um tubo de plástico transparente saía de debaixo do velho lençol de algodão
que cobria Kuttappen e ia até uma garrafa de líquido amarelo que recebia o raio
de luz da porta. Isso respondia a uma pergunta que vinha crescendo dentro de
Rahel. De uma koojah de barro, ela pegou água para ele com um copo de metal.
Parecia conhecer o espaço. Kuttappen levantou a cabeça e bebeu. Um pouco de
água escorreu por seu queixo.
Os gêmeos se agacharam, como futriqueiros profissionais do mercado de
Ayemenem.
Ficaram sentados em silêncio por um tempo. Kuttappen mortificado, os gêmeos
preocupados com pensamentosbarco.
“A Mol de Chacko Saar chegou?”, Kuttappen perguntou.
“Chegou”, Rahel respondeu, lacônica.
“Cadê ela?”
“Sei lá. Por aí. A gente não sabe.”
“Vocês vão trazer ela aqui para eu ver?”
“Não dá”, Rahel disse.
“Por quê?”
“Ela tem de ficar dentro de casa. É muito delicada. Se ficar suja, ela morre.”
“Sei.”
“A gente não pode trazer ela aqui... e além disso, não tem nada para ver”,
Rahel garantiu a Kuttappen. “Ela tem cabelo, perna, dente, você sabe, o de
sempre... só que ela é um pouco alta.” E essa foi a única concessão que Rahel
fez.
“Só isso?”, Kuttappen perguntou, entendendo depressa. “Então por que ver
ela?”
“Não tem por quê”, Rahel disse.
“Kuttappa, quando um vallom está furado é muito difícil de consertar?”, Estha
perguntou.
“Não deve ser, não”, Kuttappen respondeu. “Depende. Que vallom que está
furado, de quem?”
“O nosso, que a gente encontrou. Quer ver?”
Os dois saíram e voltaram com o barco grisalho para o homem paralisado
examinar. Colocaram o barco acima dele, como um teto. Pingou água em cima
dele.
“Primeiro, tem de encontrar os furos”, Kuttappen disse. “Depois, tem de vedar
com um pedaço de madeira.”
“Depois lixar”, Estha disse. “Depois envernizar.”
“Depois, os remos”, Rahel disse.
“Depois, os remos”, Estha concordou.
“Depois, é ir”, Rahel disse.
“Para onde?”, Kuttappen perguntou.
“Por aí”, Estha respondeu, ausente.
“Vocês têm de ter cuidado”, Kuttappen disse. “Esse nosso rio... ele nem sempre
é o que finge que é.”
“O que ele finge que é?”, Rahel perguntou.
“Ah... uma ammooma, velha e pequenininha, quieta e limpa, que vai na igreja...
idi appam no café-da-manhã, kanji e meen no almoço. Sem se meter na vida de
ninguém. Sem olhar nem para a direita nem para a esquerda.”
“E de verdade ele é...?”
“Selvagem mesmo... eu escuto de noite, correndo no luar, sempre com pressa.
Vocês têm de tomar cuidado com ele.”
“E o que é que ele come?”
“Come? Ah... Cozido... e...” Ele procurou alguma coisa em inglês para o rio
mau comer.
“Fatias de abacaxi...”, Rahel sugeriu.
“Isso mesmo! Fatias de abacaxi e cozido. E ele bebe. Uísque.”
“E conhaque.”
“E conhaque. Verdade.”
“E olha para a direita e para a esquerda.”
“Verdade.”
“E se mete na vida dos outros...”
Esthappen escorou o barquinho no chão de terra irregular, usando uns pedaços
de madeira que achou na oficina de Velutha no quintal. Deu a Rahel uma
concha de cozinha, feita de uma metade da casca de coco lixada presa a um
cabo de madeira.
Os gêmeos subiram no vallom e remaram por águas vastas, agitadas.
Com um Thaiy thaiy thaka thaiy thaiy thome. Com um Jesus de jóia no peito
assistindo.
Ele andava sobre a água. Talvez. Mas será que Ele podia nadar na terra?
De calcinha combinando e óculos escuros? Com seu chafariz e Amor-em-
Tóquio? De sapato de bico fino e topete? Será que Ele teria imaginação para
isso?
Velutha voltou para ver se Kuttappen precisava de alguma coisa. De longe
ouviu a cantoria. Vozes jovens sublinhando, deliciadas, a escatologia.
Ô, seu Macaco,
Por que sua BUNDA é tão VERMELHA, sô?
Eu fui CAGAR em Madras
E esfreguei tanto que SANGROU!
Momentaneamente, por alguns poucos momentos felizes, o Homem do
Refrescodelaranja Refrescodelimão fechou o sorriso amarelo e foi embora. O
medo cedeu e assentou no fundo da água funda. Dormindo um sono de
cachorro. Pronto para levantar e escurecer as coisas de uma hora para outra.
Velutha sorriu ao ver a bandeira marxista brotando como uma árvore ao lado
de sua porta. Ele tinha de se abaixar muito para entrar em casa. Um esquimó
tropical. Quando viu as crianças, sentiu um aperto no peito. Não entendeu por
quê. Mas, de repente, não era mais a mesma coisa. Agora. Depois do grande erro
da História. Nunca tinha sentido um punho fechado no peito antes.
Os filhos dela, disse um sussurro dentro dele.
Os olhos dela, dela a boca. Os dentes.
A pele macia, fulgurante, dela.
Ele afastou zangado o pensamento. Mas o pensamento voltou e sentou-se em
cima de sua cabeça. Como um cachorro.
“Ah!”, disse aos jovens visitantes. “Posso saber quem é essa Gente Pescadora?”
“Esthapappychachen Kuttapen Peter Mon. Sr. e sra. Muito prazer.” Rahel
estendeu sua concha para apertar em cumprimento.
Ela foi apertada em cumprimento. A dela, depois a de Estha.
“E posso saber para onde vão de barco?”
“Para a África!”, Rahel gritou.
“Pare de gritar”, Estha disse.
Velutha deu uma volta em torno do barco. Os dois contaram onde o tinham
encontrado.
“Então, ele não é de ninguém”, Rahel disse um pouco hesitante, porque lhe
ocorreu que podia ser de alguém. “Será que a gente devia dar parte na polícia?”
“Não seja boba”, Estha disse.
Velutha bateu na madeira com os nós dos dedos, depois arranhou um
pedacinho com a unha.
“Madeira boa”, disse.
“Ele afunda”, Estha contou. “Está furado.”
“Pode consertar para nós, Veluthapappychachen Peter Mon?”, Rahel perguntou.
“Vamos ver”, Velutha disse. “Não quero vocês fazendo nenhuma bobagem nesse
rio.”
“Não fazemos. Prometemos. Só vamos usar o barco quando você estiver junto.”
“Primeiro, vamos ter de achar os furos...”, Velutha disse.
“Depois, tem de vedar com um pedaço de madeira!”, os gêmeos gritaram,
como se fosse o segundo verso de um poema bem conhecido.
“Quanto tempo demora?”, Estha perguntou.
“Um dia”, Velutha respondeu.
“Um dia! Achei que você ia dizer um mês!”
Estha, delirante de alegria, pulou em cima de Velutha, enrolou as pernas na
cintura dele e beijou-o.
A lixa foi dividida em duas metades exatamente iguais, e os gêmeos se puseram
a trabalhar com uma concentração impressionante que anulava todo o resto.
Poeira de barco voava pela sala e assentava nos cabelos e sobrancelhas. Em
Kuttappen como uma nuvem, em Jesus como uma oferenda. Velutha teve de tirar
a lixa das mãos deles.
“Aqui não”, disse com firmeza. “Lá fora.”
Pegou o barco e levou para fora. Os gêmeos foram atrás, olhos fixos no barco,
sem desmanchar a concentração, cãezinhos atrás da comida.
Velutha ajeitou o barco para eles. O barco onde Estha se sentava e que Rahel
tinha descoberto. Mostrou a eles como acompanhar as fibras da madeira. E
começou junto a lixação. Quando voltou para dentro, a galinha preta foi atrás,
decidida a estar onde quer que o barco não estivesse.
Velutha mergulhou uma toalha fina de algodão numa tigela de barro cheia de
água. Torceu a toalha (ferozmente, como se fosse um pensamento indesejado) e
deu para Kuttappen limpar a sujeira do rosto e do pescoço.
“Eles disseram alguma coisa?”, Kuttappen perguntou. “De verem você na
manifestação?”
“Não”, Velutha respondeu. “Ainda não. Mas vão falar. Eles sabem.”
“Tem certeza?”
Velutha deu de ombros e levou a toalha para lavar. E enxaguar. E bater. E
torcer. Como se ela fosse um cérebro ridículo, desobediente.
Tentou odiá-la.
Ela é como eles, disse para si mesmo. Só uma no meio deles.
Mas não conseguia.
Ela tinha covinhas fundas quando ria. Seus olhos estavam sempre em algum outro
lugar.
A loucura esgueirou-se por uma frincha da História. Levou apenas um
momento.
Depois de uma hora lixando, Rahel lembrou-se de Dormir de Tarde. E largou
tudo e saiu correndo. Tropeçando pelo calorverde da tarde. Seguida pelo irmão
e por uma vespa amarela.
Esperando, rezando, para Ammu não ter acordado e descoberto que ela havia
saído.
* Em 1931, Ghandi, liderando a luta pela independência da Índia, pregava a desobediência civil. Seu primeiro
ato contra o monopólio inglês foi ir a pé até o litoral e colher sal no mar. (N. T.)
11.
O DEUS DAS PEQUENAS COISAS
N
ESSA TARDE,
Ammu viajou para o alto, num sonho em que um homem
alegre, de um braço só, a abraçava à luz de um lampião de óleo. Ele não tinha
outro braço para lutar contra as sombras que bruxuleavam no chão à sua volta.
Sombras que só ele conseguia ver.
Os músculos de sua barriga ondulavam como montanhas debaixo da pele, igual
às divisões de uma barra de chocolate.
Ele a abraçava junto de si, à luz do lampião de óleo, e brilhava como se
tivesse sido encerado com um polidor corporal.
Ele só podia fazer uma coisa de cada vez.
Se a abraçava, não podia beijá-la. Se a beijava, não podia vê-la. Se a via, não
podia senti-la.
Ela podia ter tocado o corpo dele de leve com os dedos e ter sentido sua pele
lisa arrepiar-se. Podia ter deixado os dedos correrem para a base de sua barriga
plana. Deslizando por aqueles morros de chocolate brunido. E ter deixado
desejadas trilhas de pele arrepiada no corpo dele, como placas de giz num
quadro-negro, como o vento cortando um campo de arroz, como as trilhas de
jatos num céu azul de igreja. Era tão fácil fazer aquilo tudo, mas ela não fez.
Ele podia ter tocado nela também. Mas não a tocou, porque na penumbra que
ficava além do lampião de óleo, na sombra, havia cadeiras de metal desmontáveis
arrumadas em círculo, e nessas cadeiras havia gente, com óculos gatinho cheios
de strasses, assistindo. Todos tinham violinos posicionados debaixo dos queixos, os
arcos todos em ângulos idênticos. Todos tinham as pernas cruzadas, a esquerda
sobre a direita, e todas as pernas esquerdas sacudiam.
Alguns seguravam jornais. Outros não. Alguns faziam bolhas de saliva. Outros
não. Mas em todas as lentes refletia-se a luz oscilante do lampião de óleo.
Para além do círculo de cadeiras desdobráveis, havia uma praia coberta com
cacos de vidro de garrafas azuis. As ondas silenciosas traziam mais garrafas para
serem quebradas e arrastavam as velhas de volta no refluxo. Sobre uma pedra, no
meio do mar, num raio de luz violeta, havia uma cadeira de balanço de mogno
e palha. Destruída.
O mar era negro, a espuma verde-vômito.
Peixes comiam cacos de vidro.
Os cotovelos da noite estavam pousados na água, e estrelas cadentes emitiam
suas lascas rijas.
Mariposas iluminavam o céu. Não havia lua.
Ele conseguia nadar, com seu braço único. Ela com os dois.
A pele dele estava salgada. A dela também.
Ele não deixava pegadas na areia, nem ondulações no mar, nem imagem nos
espelhos.
Ela podia ter tocado nele com os dedos, mas não tocou. Só ficaram juntos.
Quietos.
Pele com pele.
Uma brisa colorida, poeirenta, levantou os cabelos dela e fez com que
esvoaçassem como um xale ondulante em torno do ombro sem braço dele, que
terminava abrupto, como um precipício.
Uma vaca, magra e vermelha, com o osso da pelve saliente, apareceu e nadou
direto para o mar, sem molhar os chifres, sem olhar para trás.
Ammu voou pelo meio do sonho, com asas pesadas, trêmulas, e parou para
descansar, logo abaixo da pele do sonho.
Tinha as rosas da colcha azul de ponto de cruz impressas no rosto.
Sentiu os rostos de seus filhos dependurados no sonho, como duas luas escuras,
preocupadas, esperando para serem admitidas.
“Acha que ela está morrendo?”, ouviu Rahel sussurrar para Estha.
“É um pesadelo diurno”, Estha, o Preciso, respondeu. “Ela sonha muito.”
Se ele a tocasse, não tinha como lhe falar, se ele a amasse, não tinha como ir embora,
se ele falasse, não tinha como escutar, se lutasse, não tinha como ganhar.
Quem era ele, o homem de um braço só? Quem poderia ser? O Deus da
Perda? O Deus das Pequenas Coisas? O Deus do Arrepio e dos Sorrisos
Súbitos? Dos Cheiros Acres de Metal, como o cheiro dos canos dos ônibus e o
cheiro das mãos do cobrador por segurar neles?
“Será que a gente devia acordar ela?”, Estha perguntou.
Frinchas da luz do fim da tarde penetravam no quarto pelas cortinas e caíam
sobre o rádio transistor em forma de tangerina que ela sempre levava para o rio.
(Em forma de tangerina também era a Coisa que Estha levou para a sala de
projeção de A noviça rebelde com a Outra Mão melada.)
Barras brilhantes de luz do sol iluminavam os cabelos emaranhados de Ammu.
Ela esperou, sob a pele do sonho, não querendo deixar os filhos entrarem.
“Ela falou que não se deve nunca acordar de repente alguém que está
sonhando”, Rahel disse. “Ela falou que pode dar um Ataque do Coração.”
Juntos, os dois decidiram que o melhor seria incomodá-la discretamente, em vez
de acordá-la de repente. Então abriram gavetas, pigarrearam, cochicharam alto,
cantarolaram uma canção. Mexeram com os sapatos. E descobriram uma porta de
armário que rangia.
Ammu, repousando sob a pele de seu sonho, observou-os e sentiu que seu
amor por eles doía.
O homem de um braço só apagou o lampião e atravessou a praia irregular, se
afastando por entre sombras que só ele enxergava.
Não deixou pegadas na areia.
As cadeiras dobráveis foram dobradas. O mar negro acalmou-se. As ondas
amassadas foram passadas a ferro. A espuma, reengarrafada. As garrafas, tampadas.
A noite protelada até segunda ordem.
Ammu abriu os olhos.
Era longa a jornada que tinha feito, desde o abraço do homem de um braço
só até os seus gêmeos bivitelinos não idênticos.
“Você estava tendo um pesadelo diurno”, a filha informou.
“Não era um pesadelo”, Ammu disse. “Era um sonho.”
“Estha achou que você estava morrendo.”
“Parecia que você estava tão triste”, Estha disse.
“Eu estava feliz”, Ammu disse, e percebeu que estava mesmo.
“Ammu, se a gente fica feliz num sonho, vale?”, Estha perguntou.
“Vale como?”
“A felicidade vale?”
Ela sabia exatamente o que ele queria dizer, seu filho com o topete
desmanchado.
Porque na verdade só o que vale vale.
A sabedoria simples e direta das crianças.
Se você come peixe num sonho, isso vale? Quer dizer que você comeu peixe
mesmo?
O homem alegre que não deixa pegadas, ele vale?
Ammu agarrou seu transistor tangerina e ligou. Tocou uma música de um
filme chamado Chemmeen.
Era a história de uma moça pobre, forçada a casar com um pescador de uma
praia vizinha, apesar de ela amar outro. Quando o pescador fica sabendo do
antigo amante da nova esposa, ele sai para o mar em seu barquinho, mesmo
sabendo que uma tempestade se aproxima. Escurece, e sopra um vento. Um
redemoinho sobe do leito do mar. Toca uma música de tempestade e o pescador
morre afogado, sugado para o fundo do mar pelo vórtice do redemoinho.
Os amantes fazem um pacto de suicídio, e, na manhã seguinte, são encontrados
afogados na praia, um nos braços do outro. Então todo mundo morre. O
pescador, a mulher dele, o amante dela e um tubarão que não tinha nada a ver
com a história, mas que morre assim mesmo. O mar reclama todos eles.
No escuro azul de ponto de cruz entrelaçado de bordas de luz, com rosas de
ponto de cruz impressas nas bochechas sonolentas, Ammu e seus gêmeos (um de
cada lado) cantaram baixinho junto com o rádio tangerina. A canção que os
pescadores cantam para a noiva triste enquanto trançam seus cabelos e a
preparam para se casar com o homem que ela não ama.
Pandoru mukkuvan muthinu poyi,
[Um pescador um dia fez-se ao mar,]
Padinjaran kattathu mungi poyi,
[o Noroeste soprou e engoliu seu barco,]
Uma Toalete de Fada do Aeroporto no chão, mantida em pé por sua própria
espuma e rigidez. Lá fora, no mittam, sáris engomados estendidos em fileiras,
endurecendo ao sol. Brancos-cru e dourados. Pedregulhos aninhados nas dobras
engomadas, que tinham de ser tirados antes de eles serem dobrados e recolhidos
para passar.
Arayathi pennu pizhachu poyi,
[sua mulher, na praia, enlouqueceu,]
O elefante (que não era Kochu Thomban) eletrocutado em Ettumanoor foi
cremado. Uma pira gigantesca foi erigida na estrada. Os engenheiros da
preocupada municipalidade serraram fora as presas e as repartiram entre eles,
extra-oficialmente. Em partes desiguais. Oitenta latas de manteiga líquida foram
despejadas em cima do elefante para alimentar o fogo. A fumaça subiu em densos
rolos e se dispôs em padrões complexos contra o fundo do céu. Juntou gente a
distância segura para ler o que a fumaça dizia.
Havia muitas moscas.
Avaney kadalamma kondu poyi.
[Então, a Mãe Oceano subiu e o levou.]
Abutres párias pousaram nas árvores próximas, para supervisionar a supervisão
dos últimos ritos do elefante morto. Esperavam, não sem razão, beliscar vísceras
gigantes. Uma vesícula biliar enorme, talvez. Ou um baço gigantesco, torrado.
Não ficaram de todo decepcionados. Nem inteiramente satisfeitos.
Ammu notou que seus dois filhos estavam cobertos com uma poeira fina.
Como dois pedaços de bolo não idênticos, levemente polvilhados de açúcar.
Rahel tinha um cacho loiro aninhado entre os seus pretos. Um cacho do quintal
de Velutha. Ammu o retirou.
“Eu já falei antes”, disse, “que não quero vocês na casa dele. Isso só pode dar
problema.”
Que problema, ela não disse. Ela não sabia.
Ela sabia que, não mencionando o nome dele, de alguma forma, puxava-o para
a desmazelada intimidade daquela tarde de ponto de cruz azul embalada pela
canção do transistor tangerina. Não mencionando o nome dele, ela sentia que
forjava um pacto entre seu Sonho e o Mundo. E que os parteiros desse pacto
eram, ou seriam, seus gêmeos bivitelinos cobertos de pó de madeira lixada.
Ela sabia quem era ele: o Deus da Perda, o Deus das Pequenas Coisas. Claro
que sabia.
Desligou o rádio tangerina. No silêncio da tarde (entrelaçado de bordas de
luz), seus filhos se enrolaram no calor dela. No cheiro dela. Cobriram as cabeças
com os cabelos dela. De alguma forma, sentiam que no sono ela havia viajado
para longe deles. Eles a exigiam de volta agora com as mãozinhas espalmadas na
pele nua de sua barriga. Entre a anágua e a blusa. Eles adoravam o fato do
marrom das costas de suas mãos ser exatamente do mesmo marrom da pele da
barriga da mãe.
“Estha, olhe”, Rahel disse, puxando a suave penugem da trilha que descia do
umbigo de Ammu.
“Foi aqui que nós chutamos você”, Estha acompanhou com o dedo uma estria
curva e prateada.
“Foi no ônibus, Ammu?”
“Na estrada estadual cheia de curvas?”
“Que Baba teve de segurar sua barriga?”
“Você teve de pagar a passagem?”
“A gente machucou?”
E então, no mesmo tom de voz casual, a pergunta de Rahel: “Você acha que
ele pode ter perdido nosso endereço?”.
Um mero indício de pausa na respiração de Ammu fez Estha tocar o dedo
médio de Rahel com o seu. E com os dedos médios encostados, sobre a barriga
de sua bela mãe, eles abandonaram essa linha de interrogatório.
“Este é o chute de Estha, e este é o meu”, disse Rahel. “...E este é de Estha e
este é meu.”
Distribuíram entre eles as sete estrias prateadas da mãe. Rahel, então, pôs os
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