Os pelinhos dos braços de Estha ficaram arrepiados. Mexer a geléia virou
remar um barco. Girar e girar virou para a frente e para trás. Atravessando um
rio escarlate pegajoso. Uma canção da corrida de barcos de Onam encheu a
fábrica. “Thaiy thaiy thaka thaiy thaiy thome!”
Enda da korangacha, chandi ithra thenjadu?
[Ô, seu Macaco, por que sua bunda é tão vermelha, sô?]
Pandyill thooran poyappol nerakkamuthiri nerangi njan.
[Eu fui cagar em Madras e esfreguei tanto que sangrou.]
Sobre as perguntas e respostas um tanto malcriadas da canção de remadores, a
voz de Rahel flutuou pela fábrica.
“Estha! Estha! Estha!”
Estha não respondeu. O coro da canção de remadores sussurrava na geléia
grossa.
Theeyome
Thithome
Tharaka
Thithome
Theem
Uma porta de tela rangeu, e uma Fada do Aeroporto com galoschifres e óculos
de sol vermelhos de armação amarela olhou para dentro com o sol por trás. A
fábrica era cor de raiva. As limas em salmoura eram vermelhas. As mangas moles
eram vermelhas. O armário de rótulos era vermelho. O raio de sol empoeirado
(que Ousa nunca usava) era vermelho.
A porta de tela se fechou.
Rahel ficou parada na fábrica vazia com seu chafariz e o Amor-em-Tóquio.
Ouviu uma voz de freira cantando a canção de remadores. Uma voz límpida de
soprano flutuando sobre vapores de vinagre e barris de picles.
Ela foi até Estha, curvado sobre o caldo escarlate no caldeirão preto.
“O que você quer?”, Estha perguntou sem levantar os olhos.
“Nada”, Rahel respondeu.
“Então para que veio aqui?”
Rahel não respondeu. Houve um silêncio breve e hostil.
“Por que você está remando a geléia?”, Rahel perguntou.
“A Índia é um País Livre”, Estha respondeu.
Ninguém podia negar.
A Índia era um País Livre.
Você podia colher sal.* Remar geléia, se quisesse.
O Homem do Refrescodelaranja Refrescodelimão podia entrar pela porta de
tela.
Se quisesse.
E Ammu podia lhe oferecer suco de abacaxi. Com gelo.
Rahel sentou na beirada de um barril de cimento (as bordas espumosas da
anágua e da renda delicadamente mergulhadas em picles de manga mole) e
experimentou os protetores de dedo de borracha. Três moscas-varejeiras lutavam
ferozmente contra as portas de tela, querendo entrar. E Ousa, a coruja, observava
o silêncio com cheiro de picles que jazia entre os dois gêmeos, como um
hematoma.
O dedos de Rahel estavam Amarelo Verde Azul Vermelho Amarelo.
A geléia de Estha estava mexida.
Rahel levantou-se para ir embora. Dormir de Tarde.
“Aonde você vai?”
“Para um lugar.”
Rahel tirou os novos dedos e ficou com dedos cor de dedos de antes. Não
amarelos, nem verdes, nem azuis, nem vermelhos. Nem amarelos.
“Vou para Akkara”, Estha respondeu. Sem levantar os olhos. “Para a Casa da
História.”
Rahel parou e virou-se para ele, e em seu coração uma mariposa parda com
tufos de pêlo dorsal excepcionalmente densos desdobrou as asas predadoras.
Abrindo devagar.
Fechando devagar.
“Por quê?”, Rahel perguntou.
“Porque Tudo Pode Acontecer Para Qualquer Um”, Estha respondeu. “É
melhor Estar Preparado.”
Ninguém podia negar.
Ninguém mais ia até a casa de Kari Saipu. Vellya Paapen dizia ter sido o
último ser humano a pousar os olhos nela. Ele dizia que era assombrada. Tinha
contado aos gêmeos a história de seu encontro com o fantasma de Kari Saipu.
Acontecera dois anos antes, dizia. Ele tinha atravessado o rio, procurando uma
árvore de noz-moscada para fazer uma pasta de noz-moscada e alho fresco para
Chella, a mulher dele, que estava morrendo de tuberculose. De repente, sentiu
cheiro de fumaça de charuto (que ele reconheceu na mesma hora, porque
Pappachi fumava a mesma marca). Vellya Paapen virou e golpeou o cheiro com
sua foice. E pregou o fantasma no tronco de uma seringueira, onde, segundo
Vellya Paapen, estava até hoje. Um cheiro cortado por foice, que sangrava sangue
transparente, âmbar, e implorava um charuto.
Vellya Paapen nunca encontrou a árvore de noz-moscada, e precisou comprar
uma foice nova. Mas teve a satisfação de saber que, com seus reflexos rápidos
como um raio (apesar do olho hipotecado) e com sua presença de espírito, tinha
dado fim ao vagar sanguinário de um fantasma pedófilo.
Contanto que ninguém sucumbisse às suas artimanhas e o soltasse da foice com
um charuto.
O que Vellya Paapen (que sabia uma porção de coisas) não sabia é que a casa
de Kari Saipu era a Casa da História (cujas portas eram trancadas e as janelas
abertas). E que lá dentro ancestrais com hálito de mapa e unhas dos pés duras
sussurravam para os lagartos nas paredes. Que a História usava a varanda dos
fundos para negociar seus termos e cobrar o que lhe era devido. Que a
inadimplência levava a funestas conseqüências. Que no dia que a História
escolhesse acertar seus livros, Estha guardaria os recibos por tudo o que Velutha
pagou.
Vellya Paapen não fazia idéia que era Kari Saipu quem capturava sonhos e os
ressonhava. Que ele os arrancava das almas dos passantes da mesma maneira que
as crianças catam as passas de um bolo. Que aqueles de que mais gostavam, os
sonhos que adorava ressonhar, eram os sonhos brandos de gêmeos bivitelinos.
O pobre velho Vellya Paapen, se ele soubesse então que a História tinha
escolhido a ele como seu deputado, que seriam as lágrimas dele que colocariam o
Terror em movimento, talvez ele não tivesse passeado, empinado como um
frango, pelo mercado de Ayemenem, gabando-se de ter atravessado a nado o rio
com a foice na boca (acre o gosto do ferro na língua). De ter largado a foice
por um momento apenas, quando se ajoelhou para lavar a sujeira do rio do olho
hipotecado (havia sujeira no rio, às vezes, principalmente nos meses chuvosos), e
sentido o cheiro da fumaça de charuto. De ter pegado a foice e girado no ar,
cortando o cheiro e prendendo o fantasma para sempre. Tudo num único
movimento fluido, atlético.
Quando ele afinal compreendeu seu papel nos Planos da História, já era tarde
demais para voltar sobre os próprios passos. Ele tinha varrido suas pegadas.
Rastejando para trás com uma vassoura.
Na fábrica, o silêncio atacou mais uma vez e cerrou-se em torno dos gêmeos.
Mas dessa vez era um tipo diferente de silêncio. Um velho silêncio de rio. O
silêncio de Gente Pescadora e de pálidas sereias.
“Mas os comunistas não acreditam em fantasmas”, Estha disse, como se
estivessem continuando uma conversa para investigar soluções para o problema do
fantasma. As conversas deles emergiam e submergiam como riachos de montanha.
Às vezes audíveis para os outros. Às vezes não.
“Nós vamos virar comunistas?”, Rahel perguntou.
“Talvez a gente tenha de virar.”
Estha, o Prático.
Vozes distantes com farelos de bolo e passos do Exército Azul se aproximando
fizeram os camaradas selarem o segredo.
Ele foi colocado em conserva, selado e guardado. Um segredo vermelho, em
forma de manga mole num barril. Dominado por uma coruja.
A Agenda Vermelha estava pronta e assentada:
A Camarada Rahel iria Dormir de Tarde, mas ficaria na cama acordada até
Ammu dormir.
O Camarada Estha ia encontrar a bandeira (que Baby Ko-chamma tinha sido
forçada a sacudir) e esperar por Rahel perto do rio, e os dois iam:
(b) Se preparar para estar preparados.
Um vestido de fada criança (em semipicles) ficou duro, de pé sozinho no meio
do quarto escuro de Ammu.
Lá fora, o Ar estava Alerta e Brilhante e Quente. Rahel ficou deitada ao lado
de Ammu, bem acordada com suas calcinhas de aeroporto combinando. Dava
para ver o padrão de flores de ponto de cruz da colcha azul de ponto de cruz
impressos no rosto de Ammu. Dava para ouvir a tarde azul de ponto de cruz.
O lento ventilador de teto. O sol detrás das cortinas.
A vespa amarela vespando contra o vidro da janela num bzzzz arriscado.
Uma piscada de lagarto cético.
Galinhas marchando no quintal.
O som do sol ressecando a roupa lavada. Branqueando os lençóis de cama.
Endurecendo os sáris engomados. Branco-cru e ouro.
Formigas vermelhas em pedras amarelas.
Uma vaca quente sentindo calor. Muuuuu. Ao longe.
E o cheiro de um ardiloso fantasma inglês, preso por uma foice numa
seringueira, pedindo gentilmente um charuto.
“Mmm... com licença? Você por acaso não teria um mmm... charuto, teria?”
Numa voz suave de professor.
Ah, puxa!
E Estha esperando por ela. Perto do rio. Debaixo do pé de mangostão que o
reverendo E. John Ipe tinha trazido de sua visita a Mandalay.
Em cima de que Estha estava sentado?
Em cima daquilo em que eles sempre se sentavam quando estavam debaixo do
pé de mangostão. Algo cinzento e arrepiado. Coberto de musgo e liquens, oculto
por samambaias. Algo que a terra tinha reclamado. Não um tronco. Nem uma
pedra...
Antes de completar o pensamento, Rahel já estava de pé e correndo.
Passou pela cozinha, por Kochu Maria dormindo profundamente. Com rugas
pesadas como um súbito rinoceronte com avental de babados.
Pela fábrica.
Tropeçando descalça pelo calorverde, seguida de uma vespa amarela.
Lá estava o Camarada Estha. Debaixo do pé de mangostão. Com a bandeira
vermelha plantada na terra a seu lado. Uma República Móvel. Uma Revolução
Gêmea com um Topete.
E no que ele estava sentado?
Em algo coberto de musgo, oculto pelas samambaias.
Batendo com os dedos, fazia um som surdo de batida.
O silêncio baixou e subiu e atacou e traçou figuras em forma de oito.
Libélulas como jóias voejavam como vozes agudas de crianças ao sol.
Dedos cor de dedos lutaram com as samambaias, removeram as pedras, abriram
caminho. Houve um esforço suado de achar uma beirada para segurar. E Um
Dois e.
As coisas podem mudar em um dia.
Era um barco. Um minúsculo vallom de madeira.
O barco que Ammu iria usar para atravessar o rio. Para amar de noite o
homem que seus filhos amavam de dia.
Um barco tão velho que tinha criado raízes. Quase.
Um velho pé de barco cinzento com barcoflores e barcofrutas. E por baixo,
um pedaço de grama seca em forma de barco. Um barcomundo rápido,
passageiro.
Escuro e seco e fresco. Sem teto agora. E cego.
Brancos cupins a caminho do trabalho.
Brancas joaninhas a caminho de casa.
Brancos besouros fugindo da luz.
Brancos gafanhotos com violinos de madeira branca.
Branca música triste.
Uma branca vespa. Morta.
Uma branca pele de cobra ressecada, preservada no escuro, desfez-se no sol.
Mas serviria, aquele pequeno vallom? Seria velho demais? Morto demais? Akkara
seria longe demais para ele?
Dois gêmeos bivitelinos olharam do outro lado do rio.
O Meenachal.
Verdecinzento. Com peixes lá dentro. O céu e as árvores lá dentro. E, de
noite, uma lua amarela partida lá dentro.
Quando Pappachi era menino, um velho pé de tamarindo caiu durante uma
tempestade. Ainda estava lá. A árvore lisa, sem casca, escurecida pelo excesso de
água verde. Madeira flutuante não flutuante.
O primeiro terço do rio era amigo deles. Antes de começar o Fundo Mesmo.
Eles conheciam os degraus de pedra escorregadios (treze) antes que começasse a
lama viscosa. Eles conheciam as ervas que retornavam à tarde da laguna de
Komarakom. Conheciam os peixes menores. O pallathi achatado e bobo, o paral
prateado, o esperto koori de bigodes, o karimeen ocasional.
Ali, Chacko tinha ensinado os dois a nadar (espadanando, sem ajuda, na água
em torno da ampla barriga do tio). Ali, tinham descoberto sozinhos a boba
delícia de peidar debaixo da água.
Ali, tinham aprendido a pescar. A enfiar minhocas roxas que se reviravam em
anzóis na ponta das linhas das varas que Velutha lhes fizera de finas hastes de
bambu amarelo.
Ali, eles estudaram Silêncio (como os filhos de Gente Pescadora) e aprenderam
a linguagem brilhante das libélulas.
Ali, tinham aprendido a Esperar. A Observar. A pensar pensamentos e não
enunciá-los. A agir como um raio quando o bambu amarelo se curvava para
baixo.
Portanto, esse primeiro terço do rio eles conheciam bem. Os outros dois terços
menos.
No segundo terço é que o Fundo Mesmo começava. Onde a corrente era uma
certeza rápida (rio abaixo na maré vazante, subindo da laguna na maré alta).
O terceiro terço era de novo raso. A água marrom e turva. Cheia de matos e
enguias rápidas, e lama lenta que esguichava entre os dedos dos pés como pasta
de dentes.
Os gêmeos nadavam como duas focas e, supervisionados por Chacko, tinham
atravessado o rio várias vezes, voltando ofegantes e vesgos de tanto esforço, com
uma pedrinha, um ramo ou uma folha do Outro Lado para comprovar seu feito.
Mas o meio de um rio respeitável, ou o Outro Lado, não era lugar para uma
criança Entrar, Estar ou Estudar Coisas. Estha e Rahel atribuíam ao segundo e
terceiro terços do Meenachal a deferência que mereciam. Mesmo assim, atravessar
nadando não era problema. O problema era levar o barco com as Coisas dentro
(para que pudessem (b) Se preparar para estar preparados).
Os dois olharam o rio com olhos de Barco Velho. De onde estavam, não dava
para ver a Casa da História. Era apenas um escuro além do pântano, no coração
da plantação de seringueiras abandonada, de onde se expandia o som de grilos.
Estha e Rahel levantaram o pequeno barco e o levaram para a água. Ele
pareceu surpreso, como um peixe grisalho que aflorasse do fundo. Com urgente
necessidade de luz solar. Precisava de uma raspada, uma limpeza talvez, mas nada
mais.
Dois corações felizes subiram como pipas coloridas para o céu azul-celeste. Mas
então, com um lento sussurro verde, o rio (com peixes lá dentro, com o céu e
árvores lá dentro) borbulhou para dentro do barco.
Lentamente o velho barco afundou, e pousou no sexto degrau.
E os corações de um par de gêmeos bivitelinos afundaram e pousaram no
degrau acima do sexto.
Os peixes do fundo cobriram as bocas com as barbatanas e riram do
espetáculo.
Uma branca aranha do barco flutuou com o rio dentro do barco, esperneou
brevemente e afogou-se. Sua branca bolsa de ovos se rompeu prematuramente, e
uma centena de bebês-aranha (leves demais para afundar, pequenos demais para
nadar) pintou a superfície lisa da água verde, antes de ser arrastada para o mar.
Para Madagascar, para dar início a um novo filo de Aranhas Nadadoras Malayali.
Pouco depois, como se tivessem combinado (embora não tivessem), os gêmeos
começaram a lavar o barco no rio. As teias de aranha, a lama, o limo, o líquen
flutuaram para longe. Quando estava limpo, eles o viraram de ponta-cabeça e o
levantaram sobre as cabeças. Como um chapéu conjunto e gotejante. Estha pegou
a bandeira vermelha.
Uma pequena procissão (uma bandeira, uma vespa e um barco com pernas)
seguiu o caminhozinho bem conhecido pelo mato. Evitando os tufos de urtiga, e
os buracos e formigueiros conhecidos. Ladeou o precipício do poço profundo de
uma antiga mina de laterita, que era agora um lago calmo com margens
íngremes, cor de laranja, a água grossa, viscosa, coberta com uma película
luminosa de espuma verde: um gramado verdejante, traiçoeiro, onde os mosquitos
se reproduziam e os peixes eram gordos, mas inacessíveis.
O caminho, que seguia paralelo ao rio, levava a uma pequena clareira de
grama escondida entre árvores densas: coqueiros, cajueiros, mangueira, bilimbis. À
margem da clareira, de fundos para o rio, uma pequena cabana com paredes de
laterita cor de laranja, rebocada de barro, teto de sapé, aninhada rente ao chão,
como se estivesse ouvindo o murmúrio de um segredo subterrâneo. As paredes
baixas da cabana eram da mesma cor que a terra em que estava construída, e ela
parecia ter germinado de uma semente de casa plantada na terra, da qual costelas
de terra em ângulo reto haviam nascido, cerrando um espaço. Três bananeiras
descabeladas cresciam no jardinzinho cercado com painéis de folhas de palmeira
trançadas.
O barco com pernas aproximou-se da cabana. Havia um lampião de óleo
apagado ao lado da porta, a parede em torno manchada de fuligem negra. A
porta estava meio aberta. Lá dentro, escuro. Uma galinha preta apareceu na
porta. E voltou para dentro, inteiramente indiferente a visitas de barcos.
Velutha não estava em casa. Nem Vellya Paapen. Mas alguém estava.
Uma voz de homem flutuava lá de dentro e ecoava pela clareira, fazendo o
homem soar solitário.
A voz gritava a mesma coisa, insistentemente, e a cada repetição subia para um
registro mais alto, mais histérico. Era um apelo a uma goiaba madura demais
que ameaçava cair da árvore e fazer uma sujeira no chão.
Pa pera-pera-pera-perakka
[Dona goiagoia-go-go-goiaba]
Ende parambil thooralley.
[Não cague aqui na minha casa.]
Chetende parambil thoorikko
[Pode ir cagar no vizinho, na casa do meu irmão]
Pa pera-pera-pera-perakka.
[Dona goiagoia-go-go-goiaba.]
Quem gritava era Kuttappen, o irmão mais velho de Velutha. Ele era paralítico
do peito para baixo. Dia após dia, mês após mês, enquanto o irmão não estava e
o pai saía para trabalhar, Kuttappen ficava deitado de costas olhando sua
juventude passar sem parar nem para dizer olá. O dia inteiro ele ficava ali
ouvindo o silêncio de árvores densas com a única companhia de uma galinha
preta mandona. Sentia falta da mãe, Chella, que tinha morrido no mesmo canto
do quarto onde agora ficava deitado. Ela havia morrido de uma morte tossida,
cuspida, dolorida, escarrada. Kuttappen lembrava-se de ter percebido que os pés
dela morreram muito antes dela. A pele foi ficando cinzenta e sem vida.
Lembrava-se do medo que sentiu ao ver a morte subindo por ela desde baixo.
Kuttappen vigiava os próprios pés amortecidos com um medo sempre crescente.
De vez em quando, cutucava esperançoso os próprios pés, usando uma vara que
deixava pronta num canto para se defender da visita de cobras. Ele não tinha
nenhuma sensibilidade nos pés, e só a evidência visual garantia-lhe que ainda
estavam ligados a seu corpo e que eram seus de fato.
Depois que Chella morreu, ele foi transferido para o canto dela, o canto que
Kuttappen imaginava ter sido reservado pela Morte para administrar seus
negócios mortais na casa dele. Um canto para cozinhar, um para roupas, um
para os colchonetes, um para morrer.
Ele imaginava quanto tempo a sua morte demoraria, e o que as pessoas que
tinham mais de quatro cantos em suas casas faziam com o resto dos cantos. Será
que tinham mais escolhas de cantos para morrer?
E concluiu, não sem razão, que seria o primeiro da família a seguir a trilha da
mãe. Ele logo descobriria que não. Em breve. Muito em breve.
Às vezes (por hábito, por saudades dela), Kuttappen tossia igual à mãe, e a
parte superior de seu corpo se sacudia como um peixe recém-pescado. A parte de
baixo continuava imóvel feito chumbo, como se pertencesse a outra pessoa.
Alguém que morreu e cujo espírito ficou aprisionado e não conseguia escapar.
Ao contrário de Velutha, Kuttappen era um bom paravan, integrado. Não sabia
nem ler nem escrever. Enquanto ali ficava em sua cama dura, pedaços de sapé e
sujeira caíam do teto em cima dele e misturavam-se ao seu suor. Às vezes, caíam
também formigas e outros insetos. Em dias ruins, as paredes cor de laranja
estendiam mãos e curvavam-se em cima dele, examinando-o como médicos
malévolos, lenta, deliberadamente, apertando para fora o seu alento e fazendo-o
gritar. Às vezes, elas recuavam sozinhas, e o quarto ficava impossível de grande,
aterrorizando-o com o espectro de sua própria insignificância. E isso também o
fazia gritar.
A insanidade pairava sempre à mão, como um garçom dedicado em um
restaurante caro (acendendo cigarros, enchendo copos). Kuttappen pensava cheio
de inveja nos loucos que podiam andar. Ele não tinha dúvidas quanto à justiça
do trato: sua sanidade em troca de pernas utilizáveis.
Os gêmeos depositaram o barco no chão, e o ruído provocou um súbito
silêncio lá dentro.
Kuttappen não estava esperando ninguém.
Estha e Rahel empurraram a porta e entraram. Pequenos como eram, tinham
de baixar a cabeça para entrar. A vespa ficou esperando no lampião do lado de
fora.
“É a gente.”
O quarto estava escuro e limpo. Cheirava a peixe com curry e fumaça de
lenha. O calor se colava às coisas como uma febre baixa. Mas o chão de terra
era fresco sob os pés descalços de Rahel. Os colchonetes de Velutha e de Vellya
Paapen estavam enrolados, encostados à parede. As roupas dependuradas de uma
corda. Havia uma prateleira baixa de madeira na cozinha onde estavam arrumadas
tigelas de terracota, conchas feitas de casca de coco e três pratos de ágate
lascados com debrum azul-escuro. Um homem adulto podia ficar de pé no
centro da sala, mas não nos lados. Outra porta baixa levava ao quintal, onde
havia mais bananeiras, além das quais o rio cintilava entre a folhagem. A bancada
de carpinteiro tinha sido montada no quintal.
Não havia chaves, nem armários para trancar.
A galinha preta saiu pela porta dos fundos e ciscou distraída o chão do
quintal, onde rolavam raspas de madeira como cachos loiros. A julgar pela
personalidade dela, parecia ter sido criada numa dieta pesada: grampos e ganchos
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