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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a
um novo nível."
Para Mary Roy, que me fez crescer.
Que me ensinou a dizer “com licença”
antes de interrompê-la em público.
Que me amou a ponto de me deixar ir embora.
Para LKC, que, como eu, sobreviveu.
Nunca mais uma única história será contada como se fosse a única.
JOHN BERGER
SUMÁRIO
1. Paraíso, Picles & Polpas
2. A Mariposa de Pappachi
3. Homem Grande, Laltain; Homem Pequeno, Mombatti
4. Cine Abhilash
5. A Terra de Deus
6. Cangurus de Cochin
7. Cadernos de Exercícios de Sabedoria
8. Bem-vinda ao Lar, Sophie Mol
9. Mrs. Pillai, Mrs. Eapen, Mrs. Rajagopalan
10. O Rio dentro do Barco
11. O Deus das Pequenas Coisas
12. Kochu Thomban
13. O Pessimista e o Otimista
14. Trabalho é Luta
15. A Travessia
16. Poucas Horas Depois
17. A Estação de Trens de Cochin
18. A Casa da História
19. Salvar Ammu
20. O Correio Madras
21. O Custo de Vida
Glossário
Agradecimentos
Sobre a autora
1.
PARAÍSO, PICLES & POLPAS
M
AIO EM AYEMENEM
é um mês quente, parado. Os dias são longos e úmidos.
O rio encolhe, e corvos pretos se banqueteiam com belas mangas em árvores
imóveis, verde-empoeiradas. Bananas vermelhas amadurecem. Jacas explodem.
Varejeiras dissolutas zunem vagabundas no ar perfumado. Depois se estatelam
contra vidraças transparentes e morrem, totalmente enganadas, ao sol.
As noites são claras, impregnadas de preguiça e de calma expectativa.
Mas no começo de junho irrompe a monção sudoeste, e vêm três meses de
vento e água com curtos intervalos de sol duro e brilhante em que crianças
excitadas aproveitam para brincar. O campo fica de um verde vaidoso. Divisas se
dissolvem quando as cercas de mandioca se enraízam e brotam. Paredes de tijolo
ficam verde-musgo. Pimenteiras se enroscam nos postes elétricos. Trepadeiras
silvestres brotam dos barrancos de laterita e espalham-se pelas estradas inundadas.
Barcos se amontoam nos bazares. E aparecem peixinhos nas poças que se formam
nos buracos do Departamento de Obras Públicas nas rodovias.
Estava chovendo quando Rahel voltou para Ayemenem. Cordas de prata
perpendiculares picavam a terra solta, pipocando como tiros. A velha casa no
morro usava o seu telhado íngreme, com mansardas, como um chapéu enfiado
em cima das orelhas. As paredes, riscadas de musgo, estavam moles e um pouco
inchadas com a umidade que se infiltrava do chão. O jardim silvestre,
descuidado, cheio dos sussurros e passinhos de pequenas vidas. No mato uma
cobra se esfregava numa pedra brilhante. Esperançosos sapos-boi amarelos
buscavam companheiras no tanque espumoso. Um mangusto ensopado atravessou
correndo o caminho coberto de folhas.
A casa em si parecia vazia. Portas e janelas trancadas. A varanda da frente nua.
Sem móveis. Mas o Plymouth azul-celeste com rabo-de-peixe cromado ainda
estava parado ali fora e, lá dentro, Baby Kochamma ainda vivia.
Ela era tia-avó de Rahel, irmã mais nova de seu avô. Seu nome verdadeiro era
Navomi, Navomi Ipe, mas todo mundo a chamava de Baby. Tinha virado Baby
Kochamma quando chegou à idade de ser tia. Rahel não tinha vindo para vê-la,
porém. Nem sobrinha nem tia-avó tinham qualquer ilusão a respeito. Rahel tinha
vindo ver seu irmão, Estha. Eram gêmeos bivitelinos. “Dizigóticos”, diziam os
médicos. Nascidos de óvulos diferentes, mas fecundados ao mesmo tempo. Estha,
Esthappen, era dezoito minutos mais velho.
Nunca se pareceram muito um com o outro, Estha e Rahel, e mesmo quando
ainda eram crianças de braços finos, peito chato, cheios de vermes e com topete
de Elvis Presley, não ocorriam nunca os costumeiros “Quem é quem?” e “Qual é
qual?” da parte dos parentes sorridentes ou dos bispos sírio-ortodoxos que
visitavam com freqüência a Casa Ayemenem em busca de donativos.
A confusão ficava num lugar mais profundo, mais secreto.
Naqueles primeiros anos amorfos, em que a memória tinha apenas começado,
em que a vida era cheia de Começos e sem Fins, e Tudo era Para Sempre,
Esthappen e Rahel pensavam em si mesmos juntos como Eu, e separadamente,
individualmente, como Nós. Como se fossem uma rara espécie de gêmeos
siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntas.
Hoje, tantos anos depois, Rahel tem lembrança de acordar uma noite rindo do
sonho engraçado de Estha.
Também tem outras lembranças que não tem o direito de ter.
Lembra-se, por exemplo (apesar de não ter estado lá), do que o Homem do
Refrescodelaranja Refrescodelimão fez com Estha no Cine Abhilash. Lembra-se do
gosto dos sanduíches de tomate, os sanduíches de Estha, que Estha comeu, no
Correio Madras a caminho de Madras.
E isso são só as pequenas coisas.
* * *
Seja como for, ela agora pensa em Estha e Rahel como Eles, porque,
separadamente, ambos não são mais o que Eles eram ou jamais pensaram que Eles
seriam.
Jamais.
Suas vidas agora têm uma forma e uma dimensão. Estha tem a dele, e Rahel a
dela.
Bordas, Fronteiras, Divisas, Margens e Limites apareceram como um bando de
gnomos em seus horizontes individuais. Criaturas baixas com sombras longas,
patrulhando o Final Fora de Foco. Suaves meias-luas formaram-se debaixo dos
olhos deles e têm a idade de Ammu quando morreu. Trinta e um.
Nem velhos.
Nem moços.
Mas uma idade morrível viável.
Os dois quase nasceram num ônibus, Estha e Rahel. O carro em que Baba, pai
deles, estava levando Ammu, a mãe deles, para o parto no hospital em Shillong
quebrou na estrada sinuosa das fazendas de chá em Assam. Eles abandonaram o
carro e deram sinal para um ônibus lotado do Transporte Público. Com aquela
estranha compaixão que têm os muito pobres com os que são, comparativamente,
ricos, ou talvez simplesmente por terem visto como Ammu estava gigantescamente
grávida, os passageiros sentados abriram espaço para o casal e durante o resto da
viagem o pai de Estha e Rahel teve de segurar a barriga da mãe deles (com os
dois dentro) para que não balançasse. Isso foi antes de se divorciarem e Ammu
voltar a viver em Kerala.
Segundo Estha, se eles tivessem nascido no ônibus, teriam direito a viajar de
ônibus de graça pelo resto da vida. Não dava para saber de onde ele tinha tirado
essa informação ou como descobria essas coisas, mas durante anos os gêmeos
guardaram um vago ressentimento contra os pais por terem sido privados de uma
vida inteira de viagens de ônibus gratuitas.
Eles acreditavam também que se fossem mortos em cima das listas brancas de
um cruzamento o governo teria de pagar por seus funerais. Tinham a nítida
impressão de que os cruzamentos listados serviam para isso. Funerais grátis. Claro
que não havia cruzamento com listas em Ayemenem, e nem mesmo em
Kottayam, que era a cidade mais próxima, mas tinham visto alguns pela janela
do carro quando foram para Cochin, que ficava a duas horas de carro.
O governo nunca pagou pelo funeral de Sophie Mol, porque ela não foi morta
nas listas de um cruzamento. O funeral dela foi na igreja velha de pintura nova
em Ayemenem. Era prima de Estha e Rahel, filha do tio Chacko. Estava de
visita, vinda da Inglaterra. Estha e Rahel tinham sete anos quando ela morreu.
Sophie Mol tinha quase nove. Ganhou um caixão especial, tamanho infantil.
Forrado de cetim.
Com alças de latão brilhantes.
Ali, deitada, com a calça boca-de-sino amarela de Crimplene, com uma fita no
cabelo e a bolsa go-go Made in England que adorava. O rosto pálido e mais
enrugado que um dedão de dhobi por ter ficado muito tempo dentro da água.
Os fiéis reuniram-se em volta do caixão, e a igreja amarela inchou como uma
garganta com o som de cantos tristes. Os padres de barbas crespas balançaram
frascos de incenso dependurados de correntes e não sorriram para os bebês como
sempre sorriam aos domingos.
As velas grandes do altar estavam tortas. As pequenas não estavam.
Uma velha fingindo ser uma parente distante (que ninguém conhecia), mas que
surgia sempre ao lado dos corpos em funerais (uma viciada em funerais? uma
necrófila latente?), pôs água-de-colônia num chumaço de algodão e, com um
suave ar de desafio, esfregou a testa de Sophie Mol. Sophie Mol cheirava a água-
de-colônia e madeira de caixão.
Margaret Kochamma, a mãe inglesa de Sophie Mol, não deixou Chacko, o pai
biológico de Sophie Mol, pôr o braço em volta dos seus ombros para consolá-la.
A família ficou agrupada. Margaret Kochamma, Chacko, Baby Kochamma e, ao
lado dela, sua cunhada, Mammachi, avó de Estha e Rahel (e de Sophie Mol).
Mammachi era quase cega e usava sempre óculos escuros quando saía de casa. As
lágrimas corriam por trás dos óculos e tremulavam em seu queixo como gotas de
chuva na beirada de um telhado. Ela parecia pequena e doente em seu sári
branco-cru engomado. Chacko era o único filho de Mammachi. A dor dela
própria a entristecia. A dele a devastava.
Embora permitissem que Ammu, Estha e Rahel comparecessem ao funeral,
fizeram com que ficassem separados, não junto com o resto da família. Ninguém
olhava para eles.
Estava quente na igreja, e as bordas brancas dos copos-de-leite secavam e
enrolavam. Uma abelha morreu numa flor do caixão. As mãos de Ammu
tremiam e o livro de hinos tremia junto. Sua pele estava fria. Estha ficou a seu
lado, quase dormindo, os olhos doloridos brilhando como vidro, o rosto fervendo
contra a pele nua do trêmulo braço de Ammu segurando o hinário.
Rahel, por outro lado, estava bem acordada, ferozmente vigilante e alerta de
exaustão, em sua batalha contra a Vida Real.
Ela notou que Sophie Mol estava acordada para o próprio funeral. Ela
mostrou Duas Coisas para Rahel.
A Coisa Um era a alta abóbada recém-pintada da igreja amarela que Rahel
nunca tinha visto por dentro. Estava pintada de azul como o céu, com nuvens
flutuantes e minúsculos aviões a jato chiantes com rastros brancos que
ziguezagueavam pelas nuvens. É verdade (e é preciso dizer) que era mais fácil
notar essas coisas deitada num caixão de cara para cima do que de pé junto aos
bancos, cercada de quadris tristes e hinários.
Rahel imaginou alguém se dando ao trabalho de subir lá em cima com latas
de tinta, branca para as nuvens, azul para o céu, prata para os jatos, e pincéis e
solvente. Imaginou-o lá em cima, alguém como Velutha, de corpo nu e brilhante,
sentado numa prancha, balançando do andaime na alta abóbada, pintando jatos
prateados num céu azul de igreja.
Imaginou o que aconteceria se a corda rebentasse. Imaginou-o caindo como
uma estrela escura do céu que tinha feito. Ali, quebrado, no chão quente da
igreja, sangue escuro escorrendo-lhe do crânio como um segredo.
Já então Esthappen e Rahel tinham aprendido que o mundo tem outras formas
de quebrar homens. Já conheciam o cheiro. Docenjoativo. Como rosas velhas
numa brisa.
A Coisa Dois que Sophie Mol mostrou a Rahel foi o bebê morcego.
Durante a cerimônia funerária, Rahel viu um morceguinho preto subir,
dependurado em suaves garras recurvadas, pelo sári caríssimo que Baby
Kochamma usava em funerais. Quando ele chegou ao ponto entre o sári e a
blusa, aquele rolo de tristeza da cintura nua, Baby Kochamma deu um grito e
golpeou o ar com o hinário. O canto foi interrompido para um “Quefoisso?
Oqueaconteceu?” e agitação e sári sacudindo.
Os tristes padres espanaram as barbas crespas com dedos cheios de anéis, como
se aranhas ocultas tivessem tecido súbitas teias dentro delas.
O bebê morcego voou para o céu e transformou-se num avião a jato sem a
trilha em ziguezague.
Só Rahel percebeu o salto secreto que Sophie Mol deu em seu caixão.
O canto triste recomeçou e cantaram duas vezes o mesmo verso triste. E mais
uma vez a igreja amarela inchou como uma garganta com vozes.
Quando baixaram o caixão para a terra, no pequeno cemitério atrás da igreja,
Rahel sabia que Sophie Mol ainda não estava morta. Ela ouviu (em nome de
Sophie Mol) os sons macios da lama vermelha e os sons duros da laterita laranja
que estragavam o verniz brilhante. Ouviu os sons surdos através da madeira
polida, através do forro de cetim. As vozes dos padres tristes abafadas por lama e
madeira.
A ti confiamos, Pai misericordioso,
A alma desta nossa filha que se foi,
E devolvemos seu corpo à terra.
Das cinzas às cinzas, do pó ao pó.
Debaixo da terra, Sophie Mol gritava e rasgava o cetim com os dentes. Mas
não se podem ouvir gritos através de terra e pedra.
Sophie Mol morreu porque não podia respirar.
O funeral a matou. Do pó ao pó ao pó ao pó ao pó. Em seu túmulo se lia Um
Raio de Sol Que Brilhou Entre Nós Mui Brevemente.
Ammu explicou depois que Mui Brevemente queria dizer Por Muito Pouco
Tempo.
Depois do funeral, Ammu levou os gêmeos de volta à delegacia de polícia de
Kottayam. Eles conheciam aquele lugar. Tinham passado ali boa parte do dia
anterior. Prevendo o fedor duro e exalante de urina velha que permeava as
paredes e os móveis, apertaram bem as narinas com os dedos antes de o cheiro
começar.
Ammu pediu para ver o Delegado e, quando entrou em sua sala, disse que
tinha havido um erro terrível e que queria fazer uma declaração. Pediu para ver
Velutha.
O bigode do inspetor Thomas Mathew tremia igual ao do simpático Marajá da
Air India, mas seus olhos eram dissimulados e vorazes.
“É um pouco tarde para tudo isso, não acha?”, ele disse. Falava o áspero
dialeto malayalam de Kottayam. Olhava fixamente os seios de Ammu enquanto
falava. Disse que a polícia já sabia tudo o que tinha de saber e que a Polícia de
Kottayam não aceitava depoimentos de veshyas nem de seus filhos ilegítimos.
Ammu disse que ia cuidar desse assunto. O inspetor Thomas Mathew deu a volta
na mesa e aproximou-se de Ammu com seu cassetete.
“Se eu fosse você”, disse, “voltava para casa quietinha.” E tocou os seios dela
com o cassetete. Delicadamente. Tap, tap. Como se estivesse escolhendo mangas
numa cesta. Apontando as que queria que fossem embrulhadas e entregues. O
inspetor Thomas Mathew parecia saber quem podia destratar e quem não podia.
Policiais têm esse instinto.
Atrás dele uma placa vermelha e azul dizia:
P
olidez
O
bediência
L
ealdade
I
nteligência
C
ortesia
E
ficiência
Quando saíram da delegacia, Ammu estava chorando, por isso Estha e Rahel
não lhe perguntaram o que queria dizer veshya. Nem tampouco ilegítimo. Era a
primeira vez que viam a mãe chorar. Ela não soluçava. Seu rosto estava duro
como pedra, mas as lágrimas brotavam de seus olhos e escorriam pelas faces
rígidas. O que deixou os gêmeos doentes de medo. As lágrimas de Ammu
tornavam real tudo o que até agora parecera irreal. Voltaram de ônibus para
Ayemenem. O cobrador, um homem esguio, vestido de cáqui, deslizou na direção
deles pelos canos do ônibus. Equilibrou o quadril ossudo nas costas de um banco
e clicou o picotador de bilhetes para Ammu. Para onde?, era o que o clique
queria dizer. Rahel sentiu o cheiro da pilha de bilhetes e o cheiro acre dos
canos de aço do ônibus nas mãos do cobrador.
“Ele está morto”, Ammu sussurrou para ele. “Eu matei.”
“Ayemenem”, Estha disse depressa, antes que o cobrador perdesse a paciência.
Ele tirou o dinheiro de dentro da bolsa de Ammu. O cobrador lhe deu os
bilhetes. Estha dobrou-os cuidadosamente e guardou no bolso. Depois passou os
bracinhos em torno da mãe rígida, que chorava.
Duas semanas depois, Estha foi Devolvido. Ammu foi forçada a mandá-lo de
volta para o pai deles, que já então tinha pedido demissão de seu emprego
solitário na fazenda de chá em Assam e se mudado para Calcutá, para trabalhar
numa companhia que fabricava pigmentos preto-de-carbono. Tinha casado de
novo, parado de beber (mais ou menos) e sofria só recaídas ocasionais.
Estha e Rahel não se viam desde então.
E agora, vinte e três anos depois, o pai deles tinha des-Devolvido Estha. Ele o
tinha enviado de volta a Ayemenem com uma mala e uma carta. A mala estava
cheia de roupas novas e modernas. Baby Kochamma mostrou a carta a Rahel. A
caligrafia era inclinada, feminina, de colégio de freiras, mas a assinatura embaixo
era do pai deles. Ou pelo menos o nome era. Rahel não teria reconhecido a
assinatura. A carta dizia que ele, pai deles, tinha se aposentado do emprego de
pigmentos preto-de-carbono e estava emigrando para a Austrália, onde conseguira
emprego como Chefe de Segurança de uma fábrica de cerâmica, e que não podia
levar Estha com ele. Enviava seus melhores votos a todos de Ayemenem e
afirmava que visitaria Estha se um dia retornasse à Índia, o que, dizia, era um
tanto improvável.
Baby Kochamma disse a Rahel que podia ficar com a carta, se quisesse. Rahel
a colocou de volta dentro do envelope. O papel tinha ficado mole e dobrava
feito tecido.
Ela havia esquecido como podia ser úmido o ar de monção em Ayemenem.
Armários inchados rangiam. Janelas trancadas se abriam. Livros ficavam moles e
ondulados entre as capas. Estranhos insetos apareciam como idéias nas noites e se
queimavam nas fracas lâmpadas de quarenta watts de Baby Kochamma. Durante
o dia, seus corpos incinerados, retorcidos, enchiam o chão e os batentes das
janelas, e enquanto Kochu Maria não os varria para dentro de sua pá de lixo
plástica, o ar cheirava a Algo Queimando.
Não tinha mudado nada, a Chuva de Junho.
O céu se abria e a água despencava, despertando o velho poço relutante,
esverdeando de musgo a pocilga sem porcos, bombardeando poças imóveis, cor
de chá, do mesmo jeito que a memória bombardeia mentes imóveis, cor de chá.
A grama parecia verdemolhada e satisfeita. Alegres minhocas saracoteavam roxas
na lama. Urtigas verdes oscilavam. Árvores curvavam-se.
Não muito longe, no vento e na chuva, nas margens do rio, no súbito
escurotrovejante do dia, Estha caminhava. Vestia uma camiseta cor de morangos
amassados, agora encharcada e mais escura, e soube que Rahel tinha chegado.
Estha sempre fora uma criança calada, de modo que ninguém conseguia definir
com algum grau de precisão quando exatamente (o ano, senão o mês e o dia) ele
tinha parado de falar. Quer dizer, parado de falar de uma vez. O fato é que não
havia um “exatamente quando”. Tinha sido como uma loja que gradualmente vai
desativando os negócios até fechar as portas. Um aquietamento quase
imperceptível. Como se ele tivesse simplesmente esgotado a conversação e não
tivesse mais nada a dizer. O silêncio de Estha, porém, nunca era canhestro.
Nunca invasivo. Nunca ruidoso. Não era um silêncio acusador, que protesta, era
mais uma espécie de estio, de dormência, de equivalente psicológico àquilo que
os peixes pulmonados fazem para atravessar a estação seca, só que no caso de
Estha a estação seca parecia durar para sempre.
Ao longo do tempo, ele tinha adquirido a capacidade de dissolver-se na
paisagem onde quer que estivesse, em estantes de livros, jardins, cortinas, portais,
ruas, de parecer inanimado, quase invisível ao olho destreinado. Estranhos
geralmente levavam algum tempo para perceber sua presença mesmo quando
estavam na mesma sala que ele. E levavam ainda mais tempo para notar que ele
nunca falava. Alguns nunca notavam.
Estha ocupava muito pouco espaço no mundo.
* * *
Depois do funeral de Sophie Mol, quando Estha foi Devolvido, o pai deles o
mandou para uma escola de meninos em Calcutá. Ele não era um aluno
excepcional, mas também não era atrasado, nem particularmente mau em nada.
Estudante mediano ou Trabalho satisfatório eram os comentários usuais que os
professores escreviam em seu Boletim Anual de Desenvolvimento. Não participa de
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