A primeira vez que ele me beijou foi na neve. Neve em abril. Bem-vindo ao Meio-Oeste.
Eleanor estava de branco, eu estava de preto, uma coisa meio Sexta-feira muito louca que a
gente fazia de vez em quando, irmã boa e irmã má com papéis invertidos. O irmão mais
velho de Ryan, Eli, estava dando uma festa. Eleanor subiu com Eli e eu fiquei dançando.
Amanda, Suze, Shelby, Ashley e eu. Ryan estava na janela. Foi ele que avisou:
— Está nevando!
Dancei até lá, passando pela multidão, e ele olhou pra mim.
— Vamos.
Simples assim.
Pegou minha mão e corremos pra fora. Os flocos eram pesados como a chuva, grandes,
brancos e brilhantes. Tentamos pegar alguns com a língua, e a língua dele encontrou minha
boca. Fechei os olhos enquanto os flocos pousavam em minhas bochechas.
Lá dentro, barulho de gritaria e coisas quebrando. Sons de uma festa. As mãos de Ryan
embaixo da minha camiseta. Lembro que estavam quentes, e no meio do beijo eu estava
pensando: Estou beijando Ryan Cross. Coisas assim não aconteciam comigo antes de a
gente se mudar para Indiana. Coloquei as mãos embaixo do moletom dele também e senti a
pele quente e macia. Era exatamente como eu imaginava.
Mais gritos, mais coisas quebrando. Ryan se afastou e eu olhei pra ele, pra mancha de
batom em sua boca. Eu só conseguia pensar: É o meu batom nos lábios de Ryan Cross. Ai-
meu-Deus.
Queria ter uma foto minha daquele instante exato pra lembrar como eu era. Aquele foi o
último momento bom antes de tudo ficar ruim e mudar pra sempre.
Agora Ryan me abraça e me levanta do chão.
— Você está indo pro lado errado, V. — Começa a me levar em direção à casa de Amanda.
— Já passei lá. Tenho que ir pra casa. Estou enjoada. Me põe no chão. — Dou soquinhos
nele e ele me põe no chão, porque Ryan é um bom garoto, que faz o que mandam.
— O que aconteceu?
— Estou enjoada. Acabei de vomitar. Tenho que ir. — Dou tapinhas no braço dele como se
fosse um cachorro. Viro e corro pelo gramado, desço a rua, dobro a esquina e vou pra casa.
Escuto Ryan gritar meu nome, mas não olho pra trás.
— Você voltou cedo. — Minha mãe está no sofá com o nariz enfiado num livro. Meu pai
está jogado do outro lado, olhos fechados, fones de ouvido.
— Nem tanto. — Paro no início da escada. — Só pra você saber, foi uma má ideia. Eu
sabia que era uma má ideia e fui mesmo assim pra você ver como estou tentando. Mas não era
uma festa do pijama. Era uma festa mesmo. Do tipo “vamos ficar bêbados e fazer uma orgia”
— digo tudo isso como se a culpa fosse deles.
Minha mãe cutuca meu pai, que tira os fones. Eles sentam.
— Você quer conversar? Sei que deve ter sido difícil, um susto. Por que não fica um pouco
aqui com a gente?
Como Ryan, meus pais são perfeitos. Fortes, corajosos e carinhosos e, embora eu saiba que
eles choram, ficam com raiva e talvez até atirem coisas quando estão sozinhos, raramente
presencio cenas assim. Pelo contrário: eles me encorajam a sair de casa e entrar no carro e
voltar pra estrada. Eles ouvem e perguntam e se preocupam, e estão do meu lado. Aliás, estão
do meu lado até demais agora. Precisam saber onde vou, o que faço, quem vou encontrar e a
que horas pretendo voltar. Mande mensagem quando estiver indo, mande mensagem quando
estiver voltando.
Cogito sentar um pouco com eles, só pra concordar com alguma coisa, depois de tudo que
passaram, depois do que quase fiz passarem ontem. Mas não sento.
— Estou cansada. Acho que vou deitar.
Dez e meia da noite. Meu quarto. Estou com a pantufa do Freud, uma felpuda com a cara
dele estampada, e meu pijama tem uns macacos roxos desenhados. É o que visto quando quero
ficar feliz. Risco o dia com um “X” preto no calendário que fica na porta do guarda-roupa e
me acomodo na cama, encostada nos travesseiros, livros espalhados pelo edredom. Desde que
parei de escrever, leio mais do que nunca. Palavras de outras pessoas, não as minhas —
minhas palavras se foram. Neste momento, estou curtindo muito as irmãs Brontë.
Amo meu quarto. O mundo é melhor aqui do que lá fora, porque aqui sou o que eu quiser.
Sou uma autora brilhante. Posso escrever cinquenta páginas por dia e nunca fico sem palavras.
Sou uma futura aluna de escrita criativa na
NYU
. Sou a criadora de uma revista on-line popular
— não a que fiz com a Eleanor, uma revista nova. Sou destemida. Sou livre. Estou segura.
Não consigo decidir de qual das irmãs Brontë gosto mais. De Charlotte não, porque ela
parece minha professora do sexto ano. Emily é feroz e despreocupada, e Anne é a ignorada.
Torço por Anne. Leio e depois fico deitada em cima do edredom olhando pro teto. Desde abril
tenho a sensação de que estou à espera de alguma coisa. Mas não faço ideia do quê.
Depois de um tempo, levanto. Há pouco mais de duas horas, às 19h58, Theodore Finch
postou um vídeo no Facebook. Ele tocando guitarra, sentado onde imagino que seja seu quarto.
A voz é boa, mas rouca, como se tivesse fumado muito. Está inclinado na guitarra, o cabelo
preto caindo nos olhos. A imagem está embaçada, como se tivesse filmado com o celular. A
letra da música é sobre um cara que pula do telhado da escola.
No fim da música, ele fala pra câmera:
— Violet Markey, se você vir isso, ainda deve estar viva. Por favor, confirme.
Fecho o vídeo como se ele pudesse me enxergar. Quero que o dia de ontem, Theodore Finch
e a torre do sino sumam. Pra mim, aquilo tudo foi um pesadelo. O pior deles. O
PIOR
que já
tive.
Escrevo uma mensagem privada:
Por favor, apague o vídeo ou edite o que falou no fim pra ninguém mais ler/
ouvir.
Ele responde imediatamente:
Parabéns! Imagino, pela mensagem, que está viva! Agora que sei disso, acho que
devemos conversar sobre o que aconteceu, já que você é minha dupla no projeto. (E ninguém além de nós vai ver o vídeo.)
Eu:
Estou bem. Quero muito parar de falar disso e esquecer que aconteceu. (Como você sabe?)
Finch:
(Porque só entrei no Facebook pra falar com você. Além do mais, agora que você já viu, o vídeo se autodestruirá
em cinco segundos. Cinco, quatro, três, dois…)
Finch:
Por favor, atualize a página.
O vídeo some.
Finch:
Se você não quiser conversar pelo Facebook, posso ir aí.
Eu:
Agora?
Finch:
Bom, teoricamente, em cinco ou dez minutos. Tenho que me vestir primeiro, a não ser que você prefira que eu vá
pelado, além do tempo que vou gastar no caminho.
Eu:
Está tarde.
Finch:
Isso é relativo. Olha só, eu não acho que está tarde. Eu acho que está cedo. É o início das nossas vidas. O início da
noite. O início do ano. Se você parar pra pensar, vai ver que está mais cedo que tarde. A gente só vai conversar. Nada mais
que isso. Não estou dando em cima de você.
Finch:
A não ser que você queira. Que eu dê em cima de você.
Eu:
Não.
Finch:
“Não”, você não quer que eu vá, ou “não”, você não quer que eu dê em cima de você?
Eu:
Os dois. Todas as anteriores.
Finch:
Tá bom. A gente pode conversar na escola. Talvez na aula de geografia, ou posso procurar você no almoço. Você
em geral está com Amanda e Roamer, né?
Ai, meu Deus. Faz isso parar. Faz ele desistir.
Eu:
Se você vier aqui hoje, promete parar com isso de uma vez por todas?
Finch:
Palavra de escoteiro.
Eu:
Só pra conversar. Nada além disso. E tem que ser rápido.
Assim que escrevo, me arrependo. Amanda e a festa estão ali, a poucas quadras. Qualquer
um pode passar por aqui e ver Finch.
Eu:
Você ainda está aí?
Ele não responde.
Eu:
Finch?
DIA 7 DESPERTO
Entro no velho
SUV
compacto da minha mãe, mais conhecido como Tranqueira, e vou pra casa
de Violet Markey pela estrada que corre paralela à Nacional, principal via que corta a cidade.
Piso no acelerador e o velocímetro sobe rápido, noventa, cem, cento e dez, cento e vinte, o
ponteiro tremendo e o Tranqueira fazendo o melhor que pode pra ser um carro esportivo, não
uma minivan de cinco anos de idade.
No dia 23 de março de 1950, o poeta italiano Cesare Pavese escreveu: O amor é o grande
manifesto; a urgência de ser, de ter alguma importância e, se a morte vier, morrer com
valentia, com clamor — em suma, permanecer na memória. Cinco meses mais tarde, entrou
no escritório de um jornal e escolheu a foto de seu obituário no arquivo. Deu entrada em um
hotel e, dias depois, foi encontrado esticado na cama, morto. Ele estava completamente
vestido, com exceção dos sapatos. Na mesa de cabeceira havia dezesseis caixas de remédio
pra dormir vazias e um bilhete: A todos perdoo e a todos peço perdão. Tudo bem? Não façam
muita fofoca, por favor.
Cesare Pavese não tem nada a ver com dirigir rápido em uma estrada de Indiana, mas
entendo a urgência de ser e de ter alguma importância. Apesar de achar que tirar o sapato em
um quarto de hotel e engolir um monte de remédio pra dormir não seja uma forma de morrer
com valentia e com clamor, o que importa é a intenção.
Faço o Tranqueira alcançar os cento e trinta. Vou aliviar quando chegar nos cento e
quarenta. Nem cento e trinta e sete. Nem cento e trinta e oito. É cento e quarenta ou nada.
Me inclino para a frente, como se fosse um foguete, como se
EU
fosse o carro. E começo a
gritar, porque a cada segundo fico mais desperto. Sinto a adrenalina — mais do que isso, sinto
tudo à minha volta e dentro de mim, a estrada, meu sangue e meu coração batendo na garganta,
e eu poderia acabar com tudo em um clamor valente de metal amassado e fogo explosivo. Piso
mais fundo no acelerador e agora não posso parar porque estou mais rápido que tudo. A única
coisa que importa é o impulso e como me sinto na colisão com o Grande Manifesto.
Então, no momento exato antes de meu coração ou o motor explodir, tiro o pé do acelerador
e deslizo pela estrada irregular, o Tranqueira me levando sozinho quando saímos do chão e
aterrissamos com tudo, a alguns metros de distância, metade dentro e metade fora da vala,
onde recupero o fôlego. Levanto as mãos e elas não tremem nem um pouco. Estão mais firmes
do que nunca, olho em volta, pro céu estrelado e pro campo e pras casas escuras e
adormecidas, e estou aqui, filhos da p… Estou aqui.
Violet mora a uma rua de Suze Haines, em um casarão branco com chaminé vermelha em um
bairro do outro lado da cidade. Quando chego ela está sentada na escada da frente, com um
casaco gigante, parecendo pequena e sozinha. Levanta rápido e me encontra na metade da
calçada, então olha atrás de mim como se estivesse procurando alguém ou alguma coisa.
— Você não precisava vir até aqui.
Está sussurrando, como se a gente fosse acordar a vizinhança.
Sussurro de volta.
— A gente não mora em Los Angeles nem em Cincinnati. Levei, tipo, cinco minutos pra
chegar. Bela casa, aliás.
— Olha, obrigada por vir, mas não preciso conversar. — O cabelo está preso em um rabo
de cavalo, e umas mechas estão caindo no rosto. Ela coloca uma atrás da orelha. — Eu estou
bem.
— Nunca minta para um mentiroso. Sei reconhecer muito bem um pedido de ajuda, e acho
que quase pular de um parapeito com certeza se classifica como um. Seus pais estão em casa?
— Estão.
— Que pena. Quer dar uma volta? — Começo a andar.
— Não pra lá. — Ela puxa meu braço e me leva para o outro lado.
— Estamos evitando alguma coisa?
— Não. É só… hum… mais agradável pra cá.
Faço minha melhor imitação do Embrião:
— Então, há quanto tempo você tem esses impulsos suicidas?
— Meu Deus! Fala baixo. E eu não sou… não sou…
— Suicida. Pode dizer.
— Bom, tanto faz, eu não sou.
— Ao contrário de mim.
— Não é isso que quero dizer.
— Você estava naquele parapeito porque não sabia mais pra onde ir nem o que fazer. Você
tinha perdido a esperança. Então, como um cavaleiro valente, eu salvei sua vida. Aliás, você
fica totalmente diferente sem maquiagem. Isso não é ruim, só diferente. Talvez até melhor. E
qual é a desse seu site? Você sempre quis escrever? Me fale de você, Violet Markey.
Ela responde como se fosse um robô.
— Acho que não tem muito o que falar. Não tenho nada pra contar.
— Então, Califórnia. Deve ter sido uma mudança e tanto. Você gosta?
— Do quê?
— Bartlett.
— É legal.
— E este bairro?
— É legal também.
— Não são as palavras de alguém que acabou de ter sua vida de volta. Você deveria estar
no topo da p… do mundo agora. Eu estou aqui. Você está aqui. Não só isso: você está aqui
comigo. Consigo pensar em pelo menos uma garota que gostaria de estar no seu lugar.
Ela solta um grunhido de frustração (estranhamente atraente) e diz:
— O que você quer?
Paro embaixo de um poste. Deixo de lado as tentativas de persuasão e o charme.
— Quero saber por que você estava lá. E se está bem.
— Se eu contar, você vai embora?
— Sim.
— E nunca mais fala disso?
— Depende das respostas.
Ela suspira e começa a andar. Por um tempo, não fala nada, então fico quieto, esperando. Os
únicos sons vêm da
TV
de alguém e de uma festa por perto.
Depois de algumas quadras, digo:
— Qualquer coisa que você disser fica entre a gente. Você pode não ter notado, mas não
tenho muitos amigos. E mesmo que tivesse, não faria diferença. Aqueles imbecis já têm
assunto suficiente.
Ela respira fundo.
— Quando fui até a torre, não estava pensando. Foi como se minhas pernas subissem a
escada e eu só fosse guiada. Nunca fiz nada desse tipo antes. Quer dizer, aquela não sou eu.
Depois, foi como se eu tivesse acordado naquele parapeito. Eu não sabia o que fazer, então
comecei a me desesperar.
— Você contou pra alguém o que aconteceu?
— Não. — Ela para de andar e resisto à vontade de tocar seu cabelo, que sopra no rosto.
Ela arruma.
— Nem pros seus pais?
— Muito menos pra eles.
— Você ainda não me falou o que estava fazendo lá em cima.
Eu não espero que ela responda, mas…
— Era aniversário da minha irmã. Ela faria dezenove anos.
— Merda. Sinto muito.
— Mas esse não é o motivo. O motivo é que nada disso importa. O colégio, a equipe de
torcida, os namorados, os amigos, as festas, os cursos de escrita criativa… — Ela gesticula
com os braços. — Tudo isso é só pra passar o tempo até a gente morrer.
— Talvez. Talvez não. De qualquer maneira, estou muito feliz por estar aqui. — Se tem uma
coisa que aprendi, é que a gente precisa aproveitar ao máximo. — Foi o suficiente pra você
não pular.
— Posso perguntar uma coisa? — Ela mantém o olhar no chão.
— Claro.
— Por que chamam você de Theodore Aberração?
Agora eu é que encaro o chão como se fosse a coisa mais interessante que já vi. Demoro um
tempo pra responder, tentando decidir o que dizer. Sinceramente, Violet, não sei por que a
galera não gosta de mim. Mentira. Quer dizer, eu sei e não sei. Sempre fui diferente, mas pra
mim diferente é normal. Decido por uma versão da verdade.
— No oitavo ano, eu era muito menor do que sou agora. Isso foi antes de você vir pra cá. —
Levanto o olhar o suficiente pra ver que ela faz que sim com a cabeça. — Minhas orelhas
eram enormes. Meus cotovelos também. Minha voz só ficou normal um verão antes do ensino
médio, quando dei uma esticada de uns trinta e cinco centímetros.
— Só por isso?
— Por isso e porque às vezes eu digo e faço coisas sem pensar. As pessoas não aceitam
muito bem.
Ela fica quieta enquanto viramos uma esquina, e enxergo sua casa ao longe. Caminho
devagar pra gente ter mais tempo.
— Conheço a banda que está tocando no Quarry. A gente podia ir lá, esquentar um pouco,
ouvir música, esquecer tudo. Também conheço um lugar que tem uma vista bem bacana da
cidade. — Abro um dos meus melhores sorrisos.
— Vou entrar e dormir.
Sempre fico impressionado com o sono das pessoas. Eu nunca dormiria se não precisasse.
— Ou a gente pode dar uns amassos.
— Acho que não.
Mais ou menos um minuto depois, chegamos até meu carro.
— E como você subiu lá, afinal? A porta estava aberta quando cheguei, mas geralmente está
trancada.
Ela sorri pela primeira vez.
— Talvez eu tenha arrombado a fechadura.
Solto um assobio.
— Violet Markey. Quem diria?
Em um piscar de olhos, ela atravessa a calçada e entra em casa. Fico ali olhando até a luz
acender em uma janela no andar de cima. Uma sombra se mexe e vejo a silhueta de Violet,
como se ela estivesse olhando através da cortina. Me encosto no carro, esperando pra ver
quem desiste primeiro. Fico ali até a sombra sumir e a luz se apagar.
Em casa, estaciono o Tranqueira na garagem e vou pra minha corrida noturna. Corrida no
inverno, natação no resto do ano. Meu trajeto de sempre é descer a estrada Nacional, passar
pelo hospital e pela área de camping até uma ponte velha de metal que parece ter sido
esquecida por todo mundo, menos por mim. Acelero sobre os muros que servem de barra de
proteção e, ao passar sem cair, sei que estou vivo.
Inútil. Burro. Essas foram as palavras que cresci ouvindo. São palavras das quais tento
fugir, porque, se deixá-las entrar, elas podem ficar e crescer e me preencher até que a única
coisa restante dentro de mim seja inútil burro inútil burro inútil burro aberração. E não
posso fazer nada além de correr mais rápido e me preencher com outras palavras: Desta vez
vai ser diferente. Desta vez vou ficar desperto.
Corro quilômetros, não conto quantos, passando casas e mais casas com as luzes apagadas.
Sinto pena de todos que estão dormindo.
Pego um caminho diferente pra casa, pela ponte da rua A. Essa ponte é mais movimentada
porque liga o centro ao lado oeste de Bartlett, onde ficam o colégio, a faculdade e todos os
bairros crescendo entre eles.
Corro pelo que restou da barra de proteção de concreto. Ainda tem um buraco no meio, e
alguém colocou uma cruz perto. A cruz está tombada, a tinta branca desbotada em cinza por
causa do clima de Indiana, e me pergunto quem a colocou ali — Violet? Seus pais? Alguém do
colégio? Corro até o fim da ponte e corto caminho pela grama, até a ribanceira embaixo, que é
um antigo leito de rio seco cheio de pontas de cigarro e garrafas de cerveja.
Chuto o lixo e as pedras e a sujeira. Alguma coisa brilha prateada no escuro, e então vejo
outras coisas reluzindo — pedaços de vidro e metal. O plástico vermelho de uma lanterna
traseira. Um espelho retrovisor quebrado. Uma placa amassada e quase dobrada ao meio.
Tudo isso de repente faz parecer real. Eu poderia afundar na terra como uma pedra e ser
engolido inteiro com o peso do que aconteceu aqui.
Deixo tudo como estava, a não ser pela placa, que levo comigo. Deixá-la ali parece errado,
como se fosse uma coisa muito pessoal pra ficar ao relento, onde alguém que não conhece
Violet nem sua irmã pode pegar e achar bacana ou guardar como se fosse uma lembrancinha.
Corro pra casa, me sentido pesado e vazio. Desta vez vai ser diferente. Desta vez vou ficar
desperto.
Corro até o tempo parar. Até minha cabeça parar. Até que a única coisa que sinto é o metal
gelado nas mãos e o sangue pulsando.
152 DIAS PARA A FORMATURA
Domingo de manhã. Meu quarto.
O domínio eleanoreviolet.com está expirando. Sei disso porque a empresa que hospeda o
site me mandou um e-mail avisando que devo renovar agora ou desistir dele. No laptop, abro
nossas pastas de anotações e dou uma olhada nas ideias em que estávamos trabalhando antes
de abril. Mas, sem Eleanor pra me ajudar a decifrar as abreviações, são só fragmentos sem
sentido.
Nós tínhamos opiniões diferentes sobre a revista. Eleanor era mais velha (e mandona), o
que significava que geralmente ficava no comando e conseguia fazer as coisas do jeito que
queria. Posso tentar salvar o site, talvez reformular e transformar em algo novo — um lugar
onde escritores possam compartilhar seus textos. Um site que não seja só sobre esmalte e
garotos e música, mas outras coisas também, tipo como trocar um pneu, falar francês ou o que
esperar quando saímos pro mundo.
Anoto essas ideias. Então entro no site e leio a última postagem, escrita um dia antes da
festa — duas interpretações do livro Julie Plum, garota exorcista. Nada de A redoma de
vidro ou O apanhador no campo de centeio. Nada importante nem surpreendente. Nada que
diga: Essa é a última coisa que você vai escrever antes que o mundo mude.
Apago nossas anotações. Apago o e-mail da empresa que hospeda o site. Então esvazio a
lixeira pra que o aviso fique tão morto e enterrado quanto Eleanor.
DIA 8 DESPERTO
Domingo à noite, Kate, Decca e eu vamos até a casa nova do meu pai, na parte mais rica da
cidade, para o Jantar em Família Semanal Obrigatório. Visto a mesma combinação de camisa
azul-marinho e calça cáqui que sempre uso para visitar meu pai.
No caminho, permanecemos em silêncio, cada um olhando por uma janela. Nem ligamos o
rádio.
— Divirtam-se — minha mãe disse antes de irmos, tentando parecer alegre, mas sei que,
assim que o carro saiu da garagem, ela ligou para uma amiga e abriu uma garrafa de vinho.
Vai ser a primeira vez que vejo meu pai desde o Dia de Ação de Graças e a primeira vez
que vou à casa onde ele mora com a Rosemarie e o filho dela.
É uma dessas casas enormes e novinhas que se parecem com todas as outras da rua. Quando
estacionamos na frente, Kate diz:
— Imagina tentar encontrar a casa certa depois de beber…
Marchamos pela calçada branca e limpa. Dois
SUV
s iguais estão estacionados na frente da
garagem, brilhando como se sua pretensiosa vida mecânica dependesse disso.
Rosemarie abre a porta. Talvez tenha trinta anos, o cabelo é loiro avermelhado e o sorriso,
preocupado. Segundo minha mãe, ela é o que se chamaria de “cuidadora”, o que — também
segundo minha mãe — é exatamente do que meu pai precisa. Ela veio com um acordo de
duzentos mil dólares do ex-marido e um menino banguela de sete anos chamado Josh
Raymond, que pode ou não ser meu irmão de verdade.
Meu pai vem em nossa direção lá do quintal, onde está assando quinze quilos de carne,
apesar de estarmos no inverno. Sua camiseta diz Compartilhe com seus amigos: |