Eu sei o que você estava fazendo na primeira aula, Violet Markey. Seus pais
estão vindo pra cá. Médicos estão de prontidão para levá-la ao instituto psiquiátrico mais
próximo.
Mas começamos como sempre.
— Como você está, Violet?
— Estou bem, e você? — Sento sobre as mãos.
— Também. Mas vamos falar de você. Quero saber como está se sentindo.
— Tudo bem. — Só porque ela não tocou no assunto, não quer dizer que não saiba. Ela
quase nunca pergunta as coisas diretamente.
— Como tem dormido?
Os pesadelos começaram um mês depois do acidente. Ela pergunta sobre isso sempre que
nos vemos, porque cometi o erro de contar pra minha mãe, que contou pra ela. Esse é um dos
principais motivos pelos quais estou aqui e a razão pela qual parei de falar as coisas pra
minha mãe.
— Tenho dormido bem.
A sra. Kresney sempre sorri, não importa o que aconteça. Gosto disso nela.
— Algum sonho ruim?
— Não.
Eu costumava escrever sobre meus pesadelos, mas não escrevo mais. Lembro cada detalhe.
Como o que tive há quatro semanas, em que eu estava literalmente derretendo. No sonho, meu
pai me disse: “Você chegou ao fim, Violet. Chegou ao limite. Todos temos um limite, e o seu é
este”. Mas eu não quero que seja. Vi meus pés virarem poças e desaparecerem. Depois foram
as mãos. Não doía, e me lembro de pensar: Eu não deveria me importar, porque não dói. Só
estou desaparecendo. Mas eu me importei quando, membro a membro, o resto de mim sumiu
antes que eu acordasse.
A sra. Kresney se mexe na cadeira, com o sorriso fixo no rosto. Me pergunto se ela sorri
enquanto dorme.
— Vamos conversar sobre a faculdade.
Durante essa mesma época, no ano passado, eu adoraria conversar sobre a faculdade.
Eleanor e eu costumávamos fazer isso de vez em quando, depois que nossos pais iam dormir.
Se a temperatura estivesse agradável, sentávamos do lado de fora; quando fazia frio,
ficávamos dentro de casa mesmo. Imaginávamos os lugares para onde iríamos e as pessoas
que conheceríamos, bem longe de Bartlett, Indiana, população de 14983 habitantes, onde nos
sentíamos extraterrestres de algum planeta distante.
— Você se inscreveu na
UCLA
, Stanford, Berkeley, Universidade da Flórida, Universidade
de Buenos Aires, Universidade do Norte Caribenho e Universidade Nacional de Cingapura. É
uma lista bem abrangente, mas e a
NYU
?
Desde as férias de verão antes do sétimo ano, o curso de escrita criativa da
NYU
era meu
sonho. Isso porque visitei Nova York com a minha mãe, que é professora universitária e
escritora. Ela fez pós-graduação na
NYU
e durante três semanas nós quatro visitamos a cidade
e conhecemos seus antigos professores e colegas — romancistas, dramaturgos, roteiristas,
poetas. Meu plano era me inscrever para a admissão antecipada, em outubro. Então o acidente
aconteceu e mudei de ideia.
— Perdi a inscrição. — O prazo para admissão regular foi há uma semana. Preenchi tudo,
até escrevi a dissertação, mas não enviei.
— Vamos conversar sobre sua escrita. Vamos conversar sobre o site.
Ela está falando do eleanoreviolet.com. Eleanor e eu começamos o site quando viemos
morar em Indiana. Queríamos criar uma revista on-line que oferecesse duas visões (muito)
diferentes sobre moda, beleza, garotos, livros, a vida em geral. Ano passado, Gemma Sterling
(estrela da websérie Rant), amiga de Eleanor, mencionou nosso site em uma entrevista, e o
número de seguidores triplicou. Mas eu não encostei mais nele desde que Eleanor morreu.
Afinal, qual seria o objetivo? Era um site sobre irmãs. Além do mais, naquele instante em que
atravessamos a barra de proteção, minhas palavras também morreram.
— Não quero falar sobre o site.
— Soube que sua mãe é escritora. Ela deve dar várias dicas.
— Jessamyn West disse: “Escrever é tão difícil que os autores, tendo passado o inferno na
Terra, escaparão de qualquer punição depois”.
Ela fica instigada com a citação.
— Você acha que está sendo punida?
Ela está falando do acidente. Ou talvez esteja se referindo a estar aqui nesta sala, neste
colégio, nesta cidade.
— Não.
Se eu sinto que deveria ser punida? Sim. Por que mais eu teria cortado a franja?
— Você acha que é responsável pelo que aconteceu?
Arrumo a franja. Está torta.
— Não.
Ela recosta na cadeira. O sorriso desliza uma fração de centímetro. Nós duas sabemos que
estou mentindo. Me pergunto o que ela diria se eu contasse que há uma hora estavam me
convencendo a sair do parapeito da torre do sino. Agora, tenho quase certeza de que ela não
sabe.
— Você já voltou a dirigir?
— Não.
— Já andou de carro com seus pais?
— Não.
— Mas eles querem que você ande. — Isso não é uma pergunta. Ela fala como se tivesse
conversado com um deles, ou com os dois, o que provavelmente aconteceu.
— Não estou pronta. — Essas são as três palavras mágicas. Descobri que podem me livrar
de praticamente qualquer coisa.
Ela se inclina para a frente.
— Já pensou em voltar para a equipe de torcida?
— Não.
— Grêmio estudantil?
— Não.
— Ainda toca flauta na orquestra?
— Sou a última cadeira. — Essa é uma coisa que não mudou desde o acidente. Sempre fui a
última cadeira porque não sou muito boa na flauta.
Ela se encosta de novo. Por um momento penso que está desistindo. Então, diz:
— Estou preocupada, Violet. Sinceramente, você já deveria ter melhorado um pouco mais.
Você não pode evitar carros pra sempre, principalmente agora no inverno. Não pode parar no
tempo. Precisa lembrar que é uma sobrevivente, e isso quer dizer que…
Nunca vou saber o que isso quer dizer porque, assim que ouço a palavra “sobrevivente”,
levanto e saio.
A caminho da quarta aula. Corredor da escola.
Pelo menos quinze pessoas — algumas eu conheço, outras não, outras não conversam
comigo há meses — me param no caminho até a sala para me dizer como fui corajosa de
evitar que Theodore Finch se matasse. Uma das garotas do jornal do colégio quer fazer uma
entrevista.
De todas as pessoas que eu poderia ter “salvado”, Theodore Finch é a pior escolha, porque
é uma lenda do Bartlett. Não o conheço muito bem, mas já ouvi falar dele. Todo mundo já
ouviu falar dele. Algumas pessoas o odeiam porque acham que ele é esquisito e se mete em
brigas e toma suspensão e faz o que quer. Algumas pessoas o idolatram porque acham que ele
é esquisito e se mete em brigas e toma suspensão e faz o que quer. Ele toca guitarra em cinco
ou seis bandas diferentes e, no ano passado, gravou uma música. Ele é meio… radical. Tipo,
um dia veio pra aula pintado de vermelho da cabeça aos pés, e nem era dia de jogo. Falou pra
algumas pessoas que estava protestando contra o racismo e pra outras que estava protestando
contra o consumo de carne. No primeiro ano, apareceu de capa durante um mês inteiro,
quebrou uma lousa no meio com uma mesa e roubou os sapos do laboratório de biologia e fez
um funeral para eles antes de enterrá-los no campo de beisebol. A grande Anna Faris uma vez
disse que o segredo para sobreviver ao ensino médio é “ficar de boa”. Finch faz o contrário
disso.
Chego cinco minutos atrasada para a aula de literatura russa, na qual a sra. Mahone está
passando um trabalho de dez páginas sobre Os irmãos Karamazov. Todos reclamam, menos
eu, porque apesar do que a sra. Kresney parece pensar, tenho minhas circunstâncias
atenuantes.
Nem escuto quando a sra. Mahone explica o que devemos fazer. Em vez disso, arranco um
fio solto da saia. Estou com dor de cabeça. Provavelmente por causa dos óculos. A miopia de
Eleanor era mais alta que a minha. Tiro os óculos e os apoio na mesa. Ficavam estilosos nela.
Ficam feios em mim. Principalmente agora que tenho franja. Talvez, se usá-los o bastante, eu
consiga ser como ela. Consiga ver o que ela via. Talvez eu seja nós duas ao mesmo tempo, e
ninguém vai sentir falta dela, nem mesmo eu.
Tenho dias bons e dias ruins. Quase me sinto culpada por dizer que não são todos ruins.
Alguma coisa me pega desprevenida — um programa na
TV
, uma piada do meu pai, um
comentário na aula — e rio como se nada tivesse acontecido. Volto ao normal, o que quer que
“normal” signifique. Algumas manhãs acordo e me pego cantarolando enquanto me arrumo. Ou
aumento o volume do rádio e danço. Na maior parte dos dias, vou andando pra aula. Em
outros, pego a bicicleta, e às vezes minha cabeça me engana e penso que sou só uma garota
comum dando uma volta à toa.
Emily Ward cutuca minhas costas e me passa um bilhete. Como a sra. Mahone recolhe os
celulares no início das aulas, temos que conversar à moda antiga, arrancando folhas do
caderno.
É verdade que você impediu que Finch se suicidasse? Bj. Ryan.
Só tem um Ryan na sala — alguns diriam
que só existe um Ryan no colégio inteiro, talvez até no mundo —, e é Ryan Cross.
Levanto a cabeça e vejo que ele está olhando pra mim, duas fileiras adiante. Ele é lindo.
Ombros largos, cabelo castanho-dourado, olhos verdes e sardas suficientes para que pareça
acessível. Até dezembro, ele era meu namorado, mas agora estamos dando um tempo.
Deixo o bilhete em cima da mesa por cinco minutos antes de responder. Finalmente,
escrevo:
Só calhou de eu estar lá. Bj. V.
Menos de um minuto depois, o bilhete volta pra mim, mas
desta vez não abro. Penso em quantas garotas adorariam receber um bilhete de Ryan Cross. A
Violet Markey da última primavera teria sido uma delas.
Quando o sinal toca, fico pra trás. Ryan demora um pouco pra sair, esperando pra ver o que
vou fazer, mas quando vê que fiquei sentada, pega o celular e vai embora.
A sra. Mahone diz:
— Pois não, Violet?
Antes, dez páginas não eram nada de mais. O professor pedia dez e eu escrevia vinte. Se
pedisse vinte, eu entregava trinta. Escrever era o que eu fazia de melhor, melhor até do que ser
filha ou namorada ou irmã. Escrever fazia parte de mim. Mas agora escrever é só mais uma
das coisas que não consigo fazer.
Não preciso dizer quase nada, nem mesmo “Não estou pronta”. Está no livro não escrito de
regras da vida, no capítulo “Como reagir quando um aluno perde um ente querido e, nove
meses depois, ainda está passando por um momento difícil”.
A sra. Mahone suspira e devolve meu celular.
— Entregue uma página ou um parágrafo, Violet. Ao menos tente.
Minhas circunstâncias atenuantes salvam o dia.
Do lado de fora da sala, Ryan me espera. Vejo na cara dele que está tentando resolver o
enigma e me transformar na namorada divertida que eu costumava ser. Ele diz:
— Você está linda hoje.
Ele é gentil e não repara no meu cabelo.
— Obrigada.
Por sobre o ombro de Ryan, vejo Theodore Finch passar como um pavão. Acena com a
cabeça, como se soubesse de algo que não sei, e segue em frente.
DIA 6 DESPERTO (AINDA)
No almoço, toda a escola já sabe que Violet Markey salvou Theodore Finch na torre do sino.
No corredor, a caminho da aula de geografia, ando atrás de um grupo de garotas que não
param de falar disso, sem imaginar que sou o próprio Theodore Finch.
Elas falam todas ao mesmo tempo, num tom de voz agudo que parece sempre terminar em
interrogação, tipo: Ouvi dizer que ele estava armado? E que ela teve que arrancar a arma
da mão dele? Minha prima Stacey, que estuda no New Castle, disse que ela e uma amiga
estavam em Chicago e ele estava tocando em um bar e, tipo, ficou com as duas? Bom, meu
irmão estava lá quando ele acendeu os fogos de artifício e contou que antes de a polícia
aparecer, ele disse: “A não ser que vocês me reembolsem pelos fogos, vou ficar para o grand
finale”?
Aparentemente, sou trágico e perigoso. É isso aí, penso. Isso mesmo. Estou aqui, agora,
não só acordado, mas desperto, e todos vão ter que aprender a lidar com isso. Chego mais
perto e digo:
— Ouvi dizer que ele fez isso por causa de uma garota — e sigo com passos firmes para a
aula.
Já na sala, sento no meu lugar, me sentindo infame e invencível e inquieto e estranhamente
animado, como se tivesse acabado de escapar… da morte. Olho ao redor, mas ninguém está
prestando atenção em mim ou no sr. Black, nosso professor, que é literalmente o maior homem
que já vi. Ele tem a cara vermelha, bem vermelha, então sempre parece que está com
insolação ou à beira de um ataque cardíaco, e fica sem fôlego quando fala.
Durante todo esse tempo que vivi em Indiana, ou seja, minha vida inteira — os anos de
purgatório, como sempre digo —, aparentemente estivemos a apenas dezessete quilômetros do
ponto mais alto do estado. Ninguém nunca me disse isso, nem meus pais nem minhas irmãs
nem meus professores, até agora, neste exato minuto, na seção “Sobre Indiana” da aula de
geografia — instituída pela diretoria este ano como uma tentativa de “ensinar aos alunos a
riqueza histórica do próprio estado e inspirar o orgulho de nascer em Indiana”.
É sério.
O sr. Black se acomoda na cadeira e limpa a garganta.
— Será que existe… um jeito melhor e mais… apropriado de iniciar… o semestre do que
começando… pelo ponto mais alto?
É difícil dizer se o sr. Black está mesmo impressionado com a informação que transmite ou
se está apenas com falta de ar.
— O monte Hoosier está… 383 metros acima do nível do mar… e fica no quintal… de uma
casa de família… Em 2005, um escoteiro de Kentucky… obteve permissão para… abrir uma
trilha e montar… uma área para piquenique… e colocou uma placa…
Levanto a mão, mas sou ignorado pelo sr. Black.
Enquanto ele continua falando, deixo a mão levantada e penso: E se eu fosse até lá e ficasse
em pé no ponto mais alto? As coisas pareceriam diferentes a 383 metros de altura? Não
deve ser tão alto assim, mas as pessoas têm orgulho disso, e quem sou eu para dizer que
383 metros não são suficientes para impressionar alguém?
Finalmente, ele acena com a cabeça pra mim, com os lábios tão cerrados que parece que os
engoliu.
— Sim, sr. Finch? — Ele solta um suspiro que parece ter saído de um homem de cem anos e
lança um olhar apreensivo e desconfiado.
— Sugiro uma excursão. Precisamos ver os lugares maravilhosos de Indiana enquanto
podemos, porque pelo menos alguns dos que estão nesta sala vão se formar e ir embora deste
grandioso estado no fim do ano, e como poderemos divulgá-lo se só tivermos a formação
básica oferecida por um dos piores sistemas educacionais do país? Além do mais, é difícil
compreender a grandeza de um lugar sem vê-lo. É como o Grand Canyon ou o Parque
Yosemite: é preciso estar lá para apreciar de verdade seu esplendor.
— Obrigado, sr. Finch — diz o sr. Black em um tom que indica exatamente o oposto de
agradecimento, apesar de eu estar sendo apenas vinte por cento sarcástico. Começo a desenhar
montanhas no caderno em homenagem ao ponto mais alto do estado, mas elas parecem bolotas
disformes ou cobras voadoras, sei lá.
— Theodore tem razão… Alguns de vocês… vão embora daqui… no fim do ano… para
estudar. Deixarão nosso… grande estado e… antes de ir embora… vocês deveriam…
conhecê-lo. Deveriam… andar por aí…
Um barulho vindo do outro lado da sala o distrai. Alguém chegou atrasado e derrubou um
livro e, na hora de apanhá-lo, derrubou todos os outros. O que segue são risadas, porque
estamos no ensino médio, o que significa que somos previsíveis e quase qualquer coisa é
engraçada, principalmente se causar a humilhação pública de alguém. Quem derrubou o
material foi Violet Markey, a garota da torre do sino. Ela fica roxa de vergonha e parece que
quer morrer. Não uma morte do tipo pulando de uma torre, mas sim do tipo Por favor, Terra,
abra um buraco e me engula.
Conheço essa sensação melhor do que conheço minha mãe ou minhas irmãs ou Charlie
Donahue. Andamos juntos a vida inteira. Como a vez em que bati a cabeça e tive uma
concussão na frente da Suze Haines na aula de educação física; ou a vez em que ri tanto que
uma coisa saiu voando do meu nariz e aterrissou em Gabe Romero; ou o oitavo ano inteiro.
Então, como estou acostumado com isso e essa tal de Violet vai chorar se derrubar mais um
lápis que seja, jogo um livro no chão. Todos os olhos se voltam pra mim. Me inclino para
recolher e jogo todos os outros de propósito — eles batem na parede, na janela, na cabeça dos
outros — e, só pra garantir, inclino a cadeira e me jogo no chão. A cena é acompanhada de
risadinhas e aplausos e alguns gritos de “aberração”, e o sr. Black diz, ofegante:
— Se já terminou… Theodore… eu gostaria de continuar.
Levanto, arrumo a cadeira, faço uma reverência, junto os livros, faço outra reverência, sento
e sorrio para Violet, que me olha de um jeito que só pode ser descrito como surpresa e alívio
e alguma outra coisa — preocupação, talvez. Eu gostaria de acreditar que tem um pouco de
desejo ali também, mas seria só ilusão. Abro o melhor sorriso que posso, aquele que faz com
que minha mãe me perdoe por chegar muito tarde ou por ser estranho. (Às vezes, pego minha
mãe me olhando — quando me olha — como se pensasse: De onde é que você surgiu? Com
certeza puxou isso do seu pai.)
Violet sorri de volta. Imediatamente me sinto melhor, porque ela se sente melhor e por causa
do jeito que olha pra mim, como se não precisasse me evitar. Essa é a segunda vez, em um dia,
que a salvo. Todo generoso, esse Theodore, minha mãe sempre diz. Generoso demais para o
seu próprio bem. Ela diz isso em tom de crítica e é assim que eu encaro.
O sr. Black fixa os olhos em Violet e depois em mim.
— Como eu ia dizendo… o projeto para esta… aula é escrever sobre… pelo menos duas,
preferencialmente três… maravilhas de Indiana.
Quero perguntar “E a excursão?”, mas estou muito ocupado olhando para Violet enquanto
ela se concentra na lousa, com o canto da boca ainda denunciando um sorriso.
O sr. Black continua falando sobre como quer que a gente fique à vontade para escolher
lugares que agucem a imaginação, mesmo que sejam obscuros ou distantes. Nossa missão é
visitar cada um, tirar fotos, filmar, pesquisar sua história a fundo e contar exatamente o que
nesses lugares nos deixou orgulhosos por ser de Indiana. Se for possível relacioná-los de
algum jeito, melhor. Temos o resto do semestre pra terminar o projeto e precisamos levar a
sério.
— Vocês vão trabalhar… em duplas. O trabalho vale… trinta e cinco por cento… da nota
final…
Levanto a mão de novo.
— Podemos escolher as duplas?
— Sim.
— Escolho Violet Markey.
— Você pode combinar… com ela depois da aula.
Me viro para ela, cotovelo apoiado nas costas da cadeira.
— Violet Markey, queria ser sua dupla.
Seu rosto fica vermelho quando todos olham pra ela.
— Sr. Black, eu pensei em talvez fazer outra coisa, quem sabe pesquisar e escrever uma
breve dissertação — ela fala baixo, mas parece um pouco irritada —, pois não estou pronta
pra…
Ele a interrompe:
— Srta. Markey, vou lhe fazer… o maior favor… possível e… vou dizer… não.
— Não?
— Não. Começamos um novo ano… é hora de retomar as rédeas… do seu burrico…
Algumas pessoas riem. Violet olha pra mim e percebo que, sim, ela está irritada, e é aí que
me lembro do acidente. Violet e a irmã, na última primavera. Violet sobreviveu, mas a irmã
morreu. É por isso que ela está assim.
O sr. Black passa o restante da aula falando sobre lugares de que podemos gostar e que,
independente de qualquer coisa, precisamos visitar antes da formatura — pontos turísticos,
como o Parque Histórico Conner Prairie, a casa de Levi Coffin, o Museu Lincoln e a casa
onde James Whitcomb Riley passou a infância —, mas sei que a maioria de nós ficará aqui
nesta cidade até morrer.
Tento chamar a atenção de Violet de novo, mas ela não levanta mais o rosto. Em vez disso,
se encolhe na cadeira e olha fixo pra frente.
Fora da sala, Gabe Romero bloqueia minha passagem. Como sempre, não está sozinho.
Amanda Monk espera logo atrás, jogando o quadril pro lado, entre Joe Wyatt e Ryan Cross.
Ryan é tranquilo, decente, do bem, atleta, aluno exemplar, representante da turma. Seu maior
defeito é que, desde o jardim de infância, ele sabe exatamente quem é.
— É bom eu não pegar você olhando pra mim de novo — diz Roamer.
— Eu não estava olhando pra você. Pode acreditar que tem uma centena de coisas naquela
sala que chamariam minha atenção antes de você, incluindo o bundão do sr. Black.
— Bicha.
Como Roamer e eu somos inimigos declarados desde o fundamental, ele derruba os livros
que estou segurando e, apesar de isso ser bullying digno do sexto ano, sinto uma chama de
raiva familiar — como uma velha amiga — se acender em meu estômago, a fumaça espessa e
tóxica subindo e se espalhando pelo meu peito. A mesma sensação que tive no ano passado um
instante antes de pegar uma mesa e arremessá-la — não no Roamer, como ele quer que todos
acreditem, mas na lousa da sala do sr. Geary.
— Cata aí, bichinha — Roamer passa por mim e, com o ombro, bate forte no meu peito.
Quero bater a cabeça dele em um armário e enfiar a mão em sua garganta e puxar seu coração
pela boca, porque estar desperto faz com que tudo na gente esteja vivo e pulsante e compense
pelo tempo perdido.
Em vez disso, conto até sessenta, com um sorriso idiota estampado na minha cara idiota.
Não vou tomar advertência. Não vou ser expulso. Vou ficar na boa. Vou ficar calmo. Vou
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