ficado acordada a noite toda.
Kate esperou que ela desaparecesse na escada, então se dirigiu à porta do escritório de
Anthony. Pôs a mão na maçaneta e sussurrou para si mesma:
– Por favor, não esteja trancada.
Para seu alívio, a porta se abriu assim que ela girou a maçaneta.
– Anthony? – chamou.
Sua voz era baixa e hesitante, e ela descobriu que não gostava daquele tom. Não estava
acostumada a falar baixo e com hesitação.
Não houve resposta, então Kate entrou no aposento. As cortinas estavam bem fechadas e
apenas uma luz suave passava pelo veludo pesado. Ela examinou o cômodo até seus olhos
pousarem sobre o vulto do marido, debruçado na escrivaninha, entregue a um sono
profundo.
Cruzou o escritório em silêncio em direção à janela e abriu as cortinas parcialmente. Não
queria cegar Anthony quando ele acordasse, mas, ao mesmo tempo, não gostaria de ter uma
conversa tão importante no escuro. Foi até a escrivaninha e tocou seu ombro com delicadeza.
– Anthony? – murmurou. – Anthony?
A resposta foi mais próxima de um ronco que de qualquer outra coisa.
Kate franziu a testa com impaciência e o balançou com um pouco mais de força.
– Anthony? – chamou gentilmente. – Anthon...
Ele acordou com um movimento brusco, despejando uma série de palavras incoerentes ao
empertigar o tronco.
Kate observou-o piscar para clarear a visão e ele enfim focou nela.
– Kate – falou, com a voz rouca de sono e de mais alguma coisa... álcool, talvez. – O que
você está fazendo aqui?
– O que você está fazendo aqui? – retrucou ela. – Da última vez que verifiquei, você morava
a quase um quilômetro daqui.
– Eu não queria incomodar você – resmungou ele.
Ela não acreditou nisso nem por um segundo, mas decidiu que não queria discutir. Então,
optou pela abordagem direta e perguntou:
– Por que você saiu ontem à noite?
Um longo silêncio pairou no cômodo, seguido de um suspiro desanimado e cansado.
Depois, enfim, Anthony respondeu:
– É complicado.
Kate combateu a vontade de cruzar os braços.
– Sou uma mulher inteligente – disse ela resolutamente. – Em geral, sou capaz de
compreender conceitos complexos.
Anthony não pareceu satisfeito com a ironia.
– Não quero discutir isso agora.
– Quando você quer discutir isso?
– Vá para casa, Kate – retrucou ele, em voz baixa.
– Você está planejando ir comigo?
Anthony deu um suspiro e passou a mão pelos cabelos. Por Deus, ela era como um
cachorro que não largava o osso. A cabeça dele latejava, a boca tinha gosto de cabo de
guarda-chuva, tudo o que ele queria era jogar um pouco de água no rosto e escovar os
dentes e sua esposa não parava de interrogá-lo...
– Anthony? – insistiu ela.
Era o bastante. Ele se levantou de forma tão abrupta que a cadeira virou para trás e bateu
no chão com um estrondo.
– Você vai parar de fazer perguntas agora mesmo.
Kate contraiu os lábios em uma expressão furiosa. Mas seus olhos...
Anthony engoliu mais uma vez o gosto amargo da culpa.
Porque os olhos dela estavam cheios de dor.
E a angústia do próprio coração aumentou dez vezes.
Ele não estava pronto. Não ainda. Não sabia o que fazer com ela. Não tinha ideia nem do
que fazer consigo mesmo. Durante toda a sua vida – ou, pelo menos, desde que o pai
falecera –, ele soubera que certas coisas eram verdade, que certas coisas tinham que ser
verdade. E agora Kate virara seu mundo de cabeça para baixo.
Ele não queria amá-la. Droga, não queria amar ninguém. Isso era a única coisa que tinha o
poder de fazê-lo temer a própria mortalidade. E quanto a Kate? Ele prometera amá-la e
protegê-la. Como conseguiria fazer isso sabendo, durante todo o tempo, que a abandonaria?
Com certeza, não poderia contar-lhe sobre suas estranhas convicções. Ela o consideraria
louco, e além disso só ficaria sujeita à mesma dor e ao mesmo medo que o estavam
destruindo. Seria melhor deixá-la viver numa ignorância feliz.
Ou seria melhor que ela simplesmente não o amasse?
Anthony não sabia a resposta. Precisava de mais tempo. Não conseguia pensar com Kate
diante de si, com os olhos cheios de dor sondando seu rosto. E...
– Vá embora – falou com a voz abafada. – Só vá embora.
– Não – disse ela com uma determinação tranquila que o fez amá-la ainda mais. – Não até
você me dizer o que o está incomodando.
Ele saiu de trás da escrivaninha e pegou o braço dela.
– Não posso ficar com você agora – falou com a voz rouca, evitando encará-la. – Amanhã.
Vejo você amanhã. Ou depois de amanhã.
– Anthony...
– Preciso de tempo para pensar.
– Sobre o quê? – gritou ela.
– Não torne as coisas mais difíceis do que...
– Como poderiam ficar mais difíceis? – indagou ela. – Nem mesmo sei sobre o que você
está falando!
– Só preciso de alguns dias – disse ele.
Tinha que pensar para descobrir o que faria, como viveria sua vida.
Mas ela se aproximou dele, encarou-o e tocou seu rosto com tanta ternura que seu coração
doeu.
– Anthony – murmurou ela –, por favor...
Ele não conseguia dizer uma palavra nem emitir qualquer som.
Kate deslizou a mão para a nuca dele, puxou-o para mais perto e... ele não conseguiu se
controlar. Desejava-a tanto, queria tanto sentir o corpo dela contra o seu, encostar a boca em
sua pele salgada... Queria sentir seu cheiro, tocá-la, ouvir o som de sua respiração perto de
seu ouvido.
Ela encostou os lábios nos dele, macios e carentes, e sua língua tocou o canto da boca. Seria
tão fácil perder-se nela, deitar no tapete e...
– Não! – gritou Anthony.
A palavra saiu do fundo de sua garganta e, por Deus, ele não tinha ideia de que ela estava
ali até irromper de sua boca.
– Não! – disse mais uma vez, afastando-a. – Não agora.
– Mas...
Ele não a merecia. Não naquele momento. Não ainda. Não até compreender como viveria
o restante de sua vida. E, se isso significava que teria que negar a si mesmo a única coisa que
poderia salvá-lo, que fosse.
– Vá embora! – ordenou, e sua voz soou mais ríspida do que ele pretendia. – Vá! Falo com
você depois.
E, desta vez, ela foi.
Saiu sem olhar para trás.
Anthony, que acabara de descobrir o que era amar, aprendeu o que era morrer por dentro.
Na manhã seguinte, Anthony estava bêbado. À tarde, estava de ressaca.
Sua cabeça latejava, os ouvidos zumbiam e seus irmãos, surpresos ao encontrá-lo naquele
estado no clube, falavam alto demais.
Anthony tapou os ouvidos e gemeu. Todos falavam alto demais.
– Kate o expulsou de casa? – indagou Colin, pegando uma noz de um grande prato de
estanho no centro da mesa e partindo-a com um som terrível.
Anthony ergueu a cabeça apenas o suficiente para fitá-lo com ar severo.
Benedict observava o irmão mais velho com as sobrancelhas franzidas e um leve sorriso.
– Com certeza ela o expulsou de casa – disse a Colin. – E me passe uma dessas nozes, sim?
Colin jogou uma para ele e perguntou:
– Quer o quebra-nozes também?
Benedict balançou a cabeça e sorriu ao erguer um livro grosso, com capa de couro.
– É muito mais satisfatório esmagá-las assim.
– Nem pense nisso – ameaçou Anthony, esticando o braço para agarrar o livro.
– Pelo jeito seus ouvidos estão sensíveis hoje, não é?
Se Anthony tivesse uma pistola, teria atirado nos dois para silenciá-los.
– Posso lhe dar um conselho? – falou Colin, mastigando a noz.
– Não – retrucou Anthony. Ergueu os olhos e viu Colin mastigando de boca aberta. Como
esse era um hábito estritamente proibido na casa dos Bridgertons, Anthony imaginou que o
irmão só estava fazendo isso para produzir mais barulho. – Feche sua maldita boca –
resmungou ele.
Colin engoliu, estalou os lábios e tomou um gole de chá.
– O que quer que tenha feito, peça desculpas. Eu conheço você, e estou começando a
conhecer Kate, e sabendo o que sei...
– De que diabo você está falando? – resmungou Anthony.
– Creio – disse Benedict, recostando-se à cadeira – que ele está dizendo que você é um
imbecil.
– Exatamente! – exclamou Colin.
Anthony balançou a cabeça, com um ar cansado.
– É mais complicado do que vocês pensam.
– Sempre é – atalhou Benedict, com uma sinceridade fingida.
– Quando os dois idiotas encontrarem mulheres estúpidas o bastante para se casarem com
vocês – interrompeu Anthony –, então vão poder me oferecer algum conselho. Mas até lá...
calem a boca.
Colin olhou para Benedict.
– Você acha que ele está irritado?
Benedict ergueu uma sobrancelha.
– Ou talvez esteja bêbado.
Colin balançou a cabeça.
– Não, bêbado, não. Não mais, ao menos. Pelo jeito, está de ressaca.
– O que explicaria por que está com tanta raiva – raciocinou Benedict, assentindo com um
ar filosófico.
Anthony pressionou as têmporas com o polegar e o dedo do meio.
– Meu Deus – murmurou. – O que posso fazer para vocês dois me deixarem em paz?
– Vá para casa, Anthony – disse Benedict com a voz surpreendemente gentil.
Anthony fechou os olhos e deu um longo suspiro. Não havia nada que ele quisesse mais,
mas não sabia o que dizer a Kate e, mais importante, não fazia ideia de como se sentiria ao
chegar lá.
– Isso mesmo – concordou Colin. – Vá para casa e diga a ela que você a ama. O que
poderia ser mais simples?
E, de repente, era simples. Ele precisava dizer a Kate que a amava. Naquele instante. Tinha
que se certificar de que ela soubesse, e jurou passar o resto de sua vida miseravelmente curta
demonstrando isso.
Era tarde demais para mudar o destino de seu coração. Tinha tentado não se apaixonar, e
fracassara. Como não era provável que deixasse de amar, poderia muito bem aproveitar a
situação ao máximo. Quer Kate soubesse ou não de seu amor por ela, Anthony seria
assombrado pela premonição da própria morte. Será que ele não seria mais feliz durante seus
últimos anos de vida se a amasse com sinceridade?
Estava certo de que ela se apaixonara por ele também. Sem dúvida, ficaria feliz em ouvir
que ele se sentia da mesma maneira. Quando um homem amava uma mulher de verdade,
com todas as fibras do ser, não era um dever divino tentar fazê-la feliz?
No entanto, ele não lhe contaria sobre suas premonições. Qual seria o sentido disso? Ele
poderia sofrer pela consciência de que seu tempo juntos seria interrompido, mas por que ela
deveria? Melhor sentir o golpe da dor súbita com sua morte que sofrer com a expectativa.
Ele morreria. Todas as pessoas, lembrou a si mesmo. Só que ele morreria cedo, em vez de
tarde. Mas, por Deus, desfrutaria de seus últimos anos com a máxima intensidade. Teria sido
mais conveniente não se apaixonar, mas, agora que acontecera, ele não se esconderia.
Era simples: Kate era tudo para ele. Se negasse isso, poderia muito bem parar de respirar
imediatamente.
– Tenho que ir – disse ele, levantando-se tão de repente que suas coxas bateram na beirada
da mesa e espalharam cascas de nozes por todos os lados.
– Acho que você deve – murmurou Colin.
Benedict apenas sorriu e falou:
– Vá.
Seus irmãos, Anthony percebeu, eram um pouco mais espertos do que demonstravam.
– Falamos com você daqui a mais ou menos uma semana, certo? – perguntou Colin.
Anthony teve que sorrir. Ele e seus irmãos haviam se encontrado todos os dias no clube
durante as últimas duas semanas. A pergunta “inocente” de Colin só podia significar uma
coisa: que era óbvio que Anthony entregaria seu coração por completo à esposa e planejava
passar pelo menos os sete dias seguintes demonstrando isso a ela. E que a família que ele
estava criando tornara-se tão importante quanto aquela na qual nascera.
– Duas semanas – retrucou ele, pegando seu casaco. – Talvez três.
Os irmãos apenas riram.
Contudo, quando Anthony atravessou a porta de casa, quase sem fôlego depois de subir os
degraus de três em três, descobriu que Kate havia saído.
– Aonde ela foi? – perguntou ao mordomo.
Tolamente, ele nem pensara na possibilidade de ela não estar em casa.
– Foi dar um passeio no parque com a irmã e um tal Sr. Bagwell – retrucou o homem.
– O admirador de Edwina – murmurou Anthony para si mesmo.
Droga. Imaginou que devia ficar feliz pela cunhada, porém o momento não podia ser mais
inadequado. Ele tomara uma decisão que mudaria sua vida e a da esposa. Seria bom se ela
estivesse em casa.
– Aquela criatura dela também foi – completou o mordomo, estremecendo.
Ele nunca conseguira tolerar o que considerava a invasão do Corgi a sua casa.
– Quer dizer que ela levou Newton, hã? – murmurou Anthony.
– Imagino que voltarão em uma ou duas horas.
Anthony bateu a ponta da bota no chão de mármore. Não queria esperar tanto tempo.
Droga, não queria esperar nem um minuto.
– Vou atrás deles – disse com impaciência. – Não deve ser difícil encontrá-los.
O mordomo aprovou, passou pela porta aberta e se dirigiu à pequena carruagem na qual
Anthony chegara em casa.
– O senhor vai precisar de outra carruagem?
Anthony balançou a cabeça.
– Não, vou cavalgando. Será mais rápido.
– Muito bem. – O criado fez uma pequena mesura. – Vou lhe trazer a montaria.
Anthony o observou seguir devagar, com toda a tranquilidade, até os fundos da casa, então
a impaciência o dominou.
– Pode deixar que eu cuido disso sozinho – rosnou.
Em seguida, saiu correndo para pegar o cavalo.
Anthony estava confiante ao chegar ao Hyde Park. Mal podia esperar para encontrar a
esposa, segurá-la nos braços e ver sua expressão quando lhe contasse que a amava. Rezou
para que ela dissesse algo que retribuísse o sentimento. Achava que ela faria isso – vira o
amor em seus olhos em mais de uma ocasião. Talvez ela estivesse apenas esperando que ele
se declarasse primeiro. Se fosse o caso, não podia culpá-la depois do alarde que ele fizera
sobre o fato de não ser um casamento por amor, dois dias antes da cerimônia.
Ele agira como um idiota.
Ao entrar no parque, decidiu virar a montaria e seguir em direção a Rotten Row. A agitada
trilha parecia o destino mais provável do trio. Kate com certeza não teria razão para encorajar
um caminho mais deserto.
Fez o cavalo diminuir a velocidade a fim de que pudesse conduzi-lo com segurança dentro
dos limites do parque, tentando ignorar os cumprimentos e acenos de outros cavaleiros e
pedestres.
Então, justo quando acreditou que logo encontraria Kate, ouviu uma voz feminina, idosa e
muito imperiosa chamá-lo:
– Bridgerton! Bridgerton! Pare agora mesmo! Estou falando com você!
Ele deu meia-volta resmungando. Lady Danbury, o dragão da alta sociedade. Não havia
meio de ignorá-la. Ele não fazia ideia de quantos anos ela tinha. Sessenta? Setenta? Não
importava a idade, ela era uma força da natureza e ninguém a ignorava.
– Lady Danbury – falou, tentando não parecer resignado ao controlar seu cavalo –, que
bom vê-la.
– Meu Deus, rapaz – gritou ela –, você fala como se tivesse acabado de vir de um enterro.
Anime-se!
Anthony deu um sorriso sem graça.
– Onde está sua esposa?
– Estou procurando-a neste momento – retrucou ele. – Ou, pelo menos, estava.
Lady Danbury era muito inteligente para não ter entendido a indireta, portanto, ele só
podia imaginar que o ignorara de propósito ao dizer:
– Gosto de sua esposa.
– Eu também.
– Nunca consegui entender por que você quis cortejar a irmã dela. Mocinha bonita, mas
não era para você. – Ela revirou os olhos e deu um suspiro indignado. – O mundo seria um
lugar muito melhor se as pessoas simplesmente me ouvissem antes de se casar – acrescentou.
– Eu poderia encontrar os pares de todos os que querem se casar em uma semana.
– Tenho certeza de que sim.
Ela estreitou os olhos.
– Você está sendo condescendente?
– Eu nem sonharia com isso – respondeu ele com total sinceridade.
– Ótimo. Você sempre pareceu um rapaz ajuizado. Eu... – Ela ficou boquiaberta. – Que
diabo é aquilo?
Anthony seguiu o olhar horrorizado de Lady Danbury até que deparou com uma
carruagem saindo de controle enquanto fazia a curva em duas rodas. Estava muito distante
para que se visse o rosto dos ocupantes, mas então ele ouviu um grito e o latido assustado de
um cachorro.
Seu sangue gelou nas veias.
Sua esposa estava naquela carruagem.
Sem dizer nem sequer uma palavra a Lady Danbury, ele esporeou o cavalo e galopou a toda
a velocidade. Não tinha certeza do que faria ao se aproximar do veículo. Talvez tomasse as
rédeas das mãos do infeliz condutor. Talvez conseguisse retirar alguém em segurança. A
única coisa que sabia era que não podia ficar parado assistindo à colisão do veículo.
Ainda assim, foi exatamente o que aconteceu.
Anthony estava na metade do caminho até a carruagem desgovernada quando ela mudou
de direção, passou por cima de uma imensa rocha, desequilibrou-se e caiu de lado.
Anthony só pôde observar, horrorizado, enquanto a esposa morria diante de seus olhos.
CAPÍTULO 22
Ao contrário da opinião popular, esta autora sabe muito bem que é considerada cínica.
Mas isso, querida leitora, não poderia estar mais longe da verdade. Esta autora não deseja
mais nada além de um final feliz. E, se isso a torna uma tola romântica, que seja.
C
15
N
o momento em que Anthony alcançou a carruagem tombada, viu que Edwina conseguira
engatinhar para fora dos escombros e usava um pedaço de madeira partido para tentar abrir
um buraco do outro lado do veículo. A manga de seu vestido estava rasgada e a bainha,
esfarrapada e suja, mas ela parecia não perceber, puxando a porta de forma frenética.
Newton pulava e se contorcia a seus pés, e seus latidos eram agudos e nervosos.
– O que aconteceu? – perguntou Anthony, apavorado, enquanto descia do cavalo.
– Não sei – arfou Edwina, secando as lágrimas. – O Sr. Bagwell não é um condutor
experiente, acho, e então Newton se soltou, e depois não sei o que aconteceu. Em um
minuto nós estávamos passeando e, no seguinte...
– Onde está Bagwell?
Ela apontou para o outro lado da carruagem.
– Foi lançado para fora. Bateu a cabeça, mas vai ficar bem. Só que Kate...
– O que aconteceu com Kate? – Anthony ajoelhou-se e tentou olhar para dentro dos
destroços. A carruagem tinha rolado, amassando todo o lado direito. – Onde ela está?
Edwina engoliu em seco várias vezes e sua voz era pouco mais que um sussurro quando
falou:
– Acho que está presa embaixo da carruagem.
Nesse momento, Anthony sentiu o gosto da morte. Era amargo, metálico e áspero. Rasgava-
o por dentro como uma faca, sufocando-o e oprimindo-o, expulsando todo o ar de seus
pulmões.
Puxou os destroços com toda a força, tentando abrir um buraco maior. A situação não era
tão grave quanto parecera durante a batida, mas isso não ajudou a acalmar seu coração
acelerado.
– Kate! – chamou, tentando parecer calmo. – Kate, está me ouvindo?
O único som que obteve em resposta, porém, foi o relinchar agitado dos cavalos. Droga. Ele
teria que desatrelá-los e soltá-los antes que entrassem em pânico e começassem a tentar
arrastar os destroços.
– Edwina? – disse Anthony com a voz severa, olhando para ela por cima do ombro.
– Sim?
– Você sabe desatrelar os cavalos?
Ela assentiu.
– Não sou muito rápida, mas sei.
Anthony virou a cabeça na direção das pessoas que vinham correndo para ver o que
acontecera.
– Veja se alguém pode ajudá-la.
Ela anuiu mais uma vez e começou a seguir suas orientações depressa.
– Kate? – chamou Anthony de novo. Ele não conseguia vê-la porque um banco estava
bloqueando a abertura. – Você consegue me ouvir?
Nenhuma resposta.
– Tente do outro lado – sugeriu Edwina, assustada. – A abertura não está tão amassada.
Anthony se pôs de pé com um pulo e correu por trás da carruagem até o outro lado. A
porta já saíra das dobradiças, deixando um buraco grande o suficiente para que ele
introduzisse o tronco.
– Kate? – gritou, tentando ignorar o som agudo de pânico na própria voz.
Cada expiração que saía de seus lábios parecia muito alta e reverberava no espaço apertado,
lembrando-o de que Kate continuava em silêncio.
Então, ao mover com todo o cuidado a almofada do banco que virara de lado, Anthony a
viu. Ela estava assustadoramente imóvel, mas o pescoço não parecia quebrado e ele não viu
sangue.
Isso só podia ser um bom sinal. Não sabia muito sobre medicina, mas agarrou-se a esse
pensamento como a um milagre.
– Você não pode morrer, Kate – disse ele, puxando os destroços, apavorado, desesperado
para abrir o buraco o suficiente para puxá-la por ele. – Você está me ouvindo? Não pode
morrer!
Cortou as costas da mão em um pedaço de madeira irregular, mas nem percebeu o sangue
escorrer enquanto retirava outro pedaço quebrado.
– É bom que você esteja respirando – advertiu ele com a voz trêmula e entrecortada por
soluços. – Isso não deveria estar acontecendo com você. Nunca deveria acontecer com você.
Não é sua hora, entendeu?
Arrancou outro pedaço quebrado de madeira e esticou o braço pelo buraco que acabara de
abrir para agarrar a mão dela. Conseguiu encontrar seu pulso e sentir seus batimentos, que
pareciam estáveis, mas ainda era impossível dizer se ela estava sangrando, se tinha quebrado
a coluna, se tinha batido a cabeça ou...
Ele estremeceu. Havia tantos modos de perecer... Se uma abelha podia derrubar um
homem no auge da vida, com certeza um acidente de carruagem seria capaz de matar uma
mulher frágil.
Anthony agarrou o último pedaço de madeira que se encontrava em seu caminho e
ergueu-o, mas ele não cedeu.
– Não faça isso comigo! – murmurou. – Não agora. Não é sua hora. Está me ouvindo? Não
é sua hora! – Ele sentiu as faces úmidas e percebeu que eram lágrimas. – Era para ser eu –
disse, engasgando com as palavras. – Deveria ser eu no seu lugar.
Quando Anthony se preparava para dar outro puxão no último pedaço de madeira, os
dedos de Kate apertaram seu pulso feito garras. Ele fitou seu rosto e viu os olhos dela se
abrirem e clarearem, sem nem piscar.
– De que diabo você está falando? – perguntou ela, parecendo bastante lúcida e totalmente
desperta.
O alívio inundou o peito de Anthony tão rápido que foi quase doloroso.
– Você está bem? – indagou, com a voz trêmula.
Kate fez uma careta e retrucou:
– Vou ficar.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos, refletindo sobre a resposta dela.
– Mas o que você está sentindo?
Ela tossiu baixinho e se contraiu de dor.
– Aconteceu alguma coisa com minha perna. Mas não acho que esteja sangrando.
– Você vai desmaiar? Está tonta? Fraca?
Ela balançou a cabeça.
– Só estou sentindo dor. O que você está fazendo aqui?
Ele sorriu em meio às lágrimas.
– Vim atrás de você.
– Veio? – murmurou ela.
Ele assentiu.
– Vim para... isto é, eu percebi... – Ele engoliu em seco várias vezes. Nunca sonhara que
chegaria o dia em que diria estas palavras a uma mulher e que elas tomariam seu coração de
tal forma que ele mal conseguiria pronunciá-las. – Eu amo você, Kate – disse, com a voz
embargada. – Levei muito tempo para perceber, mas eu a amo e precisava lhe contar isso
hoje.
Ela deu um sorriso nervoso e fez um gesto com o queixo indicando o restante do corpo.
– Não podia ter aparecido em hora melhor.
Anthony sorriu de volta para ela.
– Quase valeu a pena o fato de eu ter esperado tanto, não é? Se eu tivesse me declarado na
semana passada, hoje não teria vindo atrás de você no parque.
Ela lhe deu a língua, o que, considerando as circunstâncias, fez com que a amasse ainda
mais.
– Apenas me tire daqui.
– Aí você vai dizer que me ama? – provocou ele.
Kate ofereceu-lhe um sorriso caloroso e cheio de desejo e concordou.
Com certeza, aquilo era tão bom quanto uma declaração, e, embora ele estivesse se
arrastando em meio aos destroços de uma carruagem e Kate estivesse presa no maldito
veículo, talvez com uma perna quebrada, de repente Anthony foi tomado por uma enorme
sensação de alegria e paz.
Então percebeu que não se sentira assim por quase doze anos, desde a tarde fatídica em
que entrara no quarto dos pais e vira Edmund deitado na cama, gelado e imóvel.
– Vou puxar você agora – falou, deslizando os braços por trás de suas costas. – Acho que
sua perna vai doer, mas não posso evitar.
– Já está doendo – retrucou ela com um sorriso corajoso. – Só quero sair daqui.
Anthony assentiu com seriedade, depois apoiou as mãos nas laterais do corpo dela e
começou a puxar.
– Como estão as coisas aí? – perguntou, com um aperto no coração cada vez que a via se
encolher de dor.
– Bem – disse ela com um ofego, mas podia perceber que só estava fingindo ser corajosa.
– Vou ter que virá-la – observou Anthony.
Seria difícil tirá-la dali. Não estava preocupado em rasgar sua roupa – diabos, ele lhe
compraria uma centena de vestidos novos se ela lhe prometesse nunca mais entrar numa
carruagem conduzida por outra pessoa que não ele. Mas não suportava a ideia de machucá-
la ainda mais. Ela já sofrera o suficiente.
– Você vai precisar ficar de bruços para que eu a puxe – falou. – Você acha que consegue se
virar para que eu possa segurá-la por baixo dos braços?
Ela consentiu, trincando os dentes e girando os quadris da esquerda para a direita.
– Ótimo – disse Anthony com a voz encorajadora. – Agora vou...
– Só faça de uma vez! – berrou Kate. – Não precisa explicar.
– Muito bem – retrucou ele, recuando até que os joelhos estivessem apoiados na grama.
Depois de contar mentalmente até três, cerrou os dentes e começou a puxá-la para fora.
Parou um segundo depois, quando Kate soltou um grito ensurdecedor. Se ele não estivesse
tão convencido de que morreria nos próximos nove anos, poderia jurar que ela o fizera
perder dez anos de vida.
– Você está bem? – indagou, preocupado.
– Estou – garantiu ela.
Mas respirava com dificuldade e todo o seu rosto estava tenso de dor.
– O que aconteceu? – perguntou uma voz do lado de fora da carruagem. Era Edwina, que
terminara de desatrelar os cavalos e parecia muito agitada. – Ouvi Kate gritar.
– Edwina? – chamou Kate, esticando o pescoço para tentar ver do lado de fora. – Você está
bem? – Ela puxou a manga de Anthony. – Minha irmã está bem? Está ferida? Precisa de um
médico?
– Ela está bem – respondeu ele. – É você quem precisa de um médico.
– E o Sr. Bagwell?
– Como está o Sr. Bagwell? – indagou Anthony a Edwina com a voz ríspida enquanto se
concentrava em tirar Kate dos destroços.
– Levou uma pancada na cabeça, mas já está de pé de novo.
– Não foi nada. Posso fazer algo para ajudar? – disse uma voz masculina preocupada.
Anthony tinha a sensação de que o acidente fora muito mais culpa de Newton que do Sr.
Bagwell, mas, ainda assim, o jovem estava na direção na hora do acidente e Anthony não se
sentia muito inclinado a ser bondoso com ele agora.
– Eu aviso se precisar – falou simplesmente, antes de se virar de novo para Kate e observar:
– Bagwell está bem.
– Não acredito que me esqueci de perguntar por eles – comentou Kate.
– Estou certo de que seu lapso será perdoado, considerando as circunstâncias – garantiu
Anthony, afastando-se ainda mais, até ficar com o corpo quase todo do lado de fora da
carruagem. Agora Kate estava posicionada na abertura, e bastaria apenas mais um puxão –
muito longo e doloroso – para tirá-la dali.
– Edwina? Edwina? – chamou ela. – Você tem certeza de que não se machucou?
A jovem enfiou o rosto pela abertura.
– Estou bem – afirmou com a voz tranquilizadora. – O Sr. Bagwell foi jogado para fora, e eu
consegui...
Anthony cutucou-a com o cotovelo para que saísse do caminho.
– Trinque os dentes, Kate – ordenou ele.
– O quê? Eu... Aaaaaaaai!
Com um único puxão, ele a livrou por completo dos destroços e ambos aterrissaram no
gramado, ofegantes. Porém, se Anthony estava tendo dificuldade para respirar pelo cansaço
extremo, não restava dúvida de que Kate sofria com uma dor intensa.
– Meu Deus! – exclamou Edwina quase gritando. – Veja a perna dela!
Anthony olhou para Kate e sentiu um embrulho no estômago. A perna dela estava torta e
curvada, evidentemente quebrada. Ele engoliu em seco várias vezes, tentando não
demonstrar preocupação. Pernas fraturadas podiam ser curadas, mas ele também ouvira falar
de homens que perderam os membros por causa de infecções e de um péssimo atendimento
médico.
– Qual é o problema com minha perna? – indagou Kate. – Está doendo, mas... Ah, meu
Deus!
– É melhor você não olhar – disse Anthony, tentando virar a cabeça dela para o outro lado.
A respiração dela, já acelerada pela tentativa de controlar a dor, tornou-se errática e
assustada.
– Ah, meu Deus – ofegou. – Dói muito. Não percebi quanto doía até ver...
– Não olhe! – interrompeu Anthony.
– Ah, meu Deus. Ah, meu Deus.
– Kate? – chamou Edwina com a voz preocupada. – Você está bem?
– Olhe para minha perna! – respondeu Kate quase gritando. – Ela parece bem para você?
– Na verdade, eu me referia a seu rosto. Você está meio verde...
Mas Kate não conseguiu responder. Sua respiração tinha se acelerado demais. Então, com
Anthony, Edwina, o Sr. Bagwell e Newton fitando-a, ela revirou os olhos e desmaiou.
Três horas depois, Kate estava deitada em sua cama, sem dúvida não muito confortável, mas
com um pouco menos de dor graças ao láudano que Anthony a forçara a tomar assim que
chegaram em casa. Sua perna tinha sido posta no lugar pelos três cirurgiões que Anthony
chamou (todos eles afirmaram não ser necessário mais do que um cirurgião para pôr um osso
no lugar, mas Anthony cruzou os braços de modo implacável e os encarou até que se
calassem), e um clínico geral apareceu para deixar várias receitas que jurou terem a
capacidade de acelerar o processo de junção do osso.
Anthony não saíra de perto dela, contestando cada movimento dos médicos, até que um
deles teve a audácia de perguntar-lhe quando ele recebera o diploma da Faculdade Real de
Medicina.
Anthony não gostara nem um pouco.
Contudo, depois de toda a confusão, a perna de Kate foi posta no lugar e imobilizada.
Agora ela precisaria ficar, na melhor das hipóteses, um mês na cama.
– Na melhor das hipóteses? – resmungou para Anthony quando o último dos cirurgiões se
foi. – Como essa pode ser a melhor das hipóteses?
– Você vai pôr a leitura em dia – sugeriu ele.
Ela deixou escapar um suspiro impaciente pelo nariz – era difícil respirar pela boca
enquanto trincava os dentes.
– Não sabia que minha leitura estava atrasada.
Se ele sentiu vontade de rir, conseguiu disfarçar muito bem.
– Talvez você possa costurar um pouco.
Ela apenas o olhou de cara feia. Como se a perspectiva de costurar fosse fazê-la sentir-se
melhor.
Anthony sentou-se cautelosamente na beirada da cama e afagou a mão dela.
– Vou lhe fazer companhia – prometeu com um sorriso encorajador. – Já decidi reduzir
meu tempo no clube.
Kate suspirou. Estava exausta, com raiva e com dor, e não parava de descontar no marido,
o que não era nada justo. Virou a mão para cima e entrelaçou os dedos nos dele.
– Eu amo você, sabia? – falou baixinho.
Ele apertou a mão dela, assentindo, e o calor de seus olhos, fixos nos dela, era mais
significativo do que qualquer palavra.
– Você me disse para não amá-lo – comentou Kate.
– Eu fui um idiota.
Ela não negou, e o sorriso dele deixou claro que isso não lhe passou despercebido. Depois
de um instante de silêncio, Kate continuou:
– Você não estava falando coisa com coisa no parque.
Anthony continuou com a mão entrelaçada na dela, mas se afastou um pouco.
– Não sei sobre o que você está falando – retrucou.
– Acho que sabe, sim – disse ela em voz baixa.
Anthony fechou os olhos por um momento, então se levantou, os dedos se afastando aos
poucos da mão dela, até que enfim não se tocavam mais. Por tantos anos ele tivera o cuidado
de manter suas estranhas convicções para si mesmo... Sempre lhe parecera a melhor atitude,
porque as pessoas poderiam acreditar nele e ficar preocupadas ou então o considerariam um
louco.
Nenhuma das opções era muito interessante.
Porém, no calor daquele terrível momento, ele revelou tudo à esposa. Não se lembrava
exatamente do que dissera no parque, mas fora o suficiente para despertar a curiosidade
dela, e Kate não era do tipo que deixasse para lá. Ele poderia evitar quanto quisesse, no
entanto uma hora ela conseguiria fazê-lo falar. Ainda não nascera mulher mais teimosa.
Ele caminhou até a janela e inclinou-se no peitoril, olhando à frente com o rosto
inexpressivo, como se pudesse de fato ver os arredores através das pesadas cortinas cor de
vinho que estavam fechadas havia bastante tempo.
– Há algo a meu respeito que você deveria saber – murmurou.
Ela não disse nada, mas ele soube que o ouvira. Talvez tivesse sido o som que Kate fez ao
mudar de posição na cama, ou talvez a atmosfera no quarto. De alguma maneira, ele soube.
Deu meia-volta. Seria mais fácil falar para as cortinas, mas ela merecia mais do que isso.
Kate estava sentada na cama, com a perna machucada sobre alguns travesseiros, os olhos
arregalados e o coração cheio de uma mistura dolorosa de curiosidade e preocupação.
– Não sei como lhe contar isso sem parecer ridículo – disse ele.
– Às vezes, a maneira mais fácil é apenas dizer – retrucou ela baixinho, dando tapinhas a
seu lado na cama. – Quer sentar perto de mim?
Ele balançou a cabeça. A proximidade só tornaria tudo mais difícil.
– Quando meu pai morreu, aconteceu uma coisa comigo – começou.
– Vocês eram muito próximos, não eram?
Ele assentiu.
– Mais do que eu já fui de qualquer outra pessoa, até conhecer você.
Os olhos de Kate brilharam.
– O que aconteceu?
– Foi muito inesperado – respondeu ele. Sua voz era baixa, como se estivesse contando uma
notícia ruim, e não falando sobre o acontecimento mais perturbador de sua vida. – Foi uma
abelha, como eu já lhe disse.
Ela aquiesceu.
– Quem pensaria que uma abelha seria capaz de matar um homem? – perguntou Anthony
com uma risada sarcástica. – Seria engraçado se não fosse tão trágico.
Kate ficou em silêncio. Apenas olhou para o marido com uma compaixão que lhe partiu o
coração.
– Fiquei com ele a noite toda – prosseguiu ele, virando-se ligeiramente para não ter que
encará-la. – Ele estava morto, claro, mas eu precisava de um pouco mais de tempo. Fiquei
apenas sentado ao lado dele, observando-o. – Deu uma risada raivosa. – Meu Deus, como
fui tolo... Acho que esperava que fosse abrir os olhos a qualquer momento.
– Não acho que tenha sido tolice – retrucou Kate em voz baixa. – Já vi a morte de perto
também. É difícil acreditar que alguém se foi quando parece tão normal e tranquilo.
– Não sei quando aconteceu – continuou Anthony –, mas pela manhã eu tinha certeza.
– De que ele estava morto? – quis saber ela.
– Não – disse ele com a voz rouca. – De que eu morreria também.
Ele esperou que ela respondesse algo, que chorasse, que fizesse alguma coisa, porém Kate
só ficou sentada ali, fitando-o sem nenhuma mudança perceptível na expressão, até que ele
enfim teve que falar:
– Não sou um homem tão bom quanto meu pai foi.
– Talvez ele discordasse disso – sugeriu ela em voz baixa.
– Bem, ele não está aqui para fazer isso, não é? – observou Anthony.
Mais uma vez, Kate ficou em silêncio. E de novo ele se sentiu insignificante.
Praguejou em voz baixa e pressionou as têmporas com os dedos. Sua cabeça começava a
latejar. Sentia-se tonto e percebeu que não lembrava a última vez que comera.
– Cabe a mim julgar isso – disse ele baixinho. – Você não o conheceu.
Ele se apoiou na parede com um suspiro longo e cansado, e prosseguiu:
– Apenas deixe-me falar tudo. Não me interrompa nem dê opiniões. Já é difícil o bastante
sem isso. Você pode fazer isso por mim?
Ela concordou.
Anthony inspirou, trêmulo.
– Meu pai foi o melhor homem que conheci. Não há um só dia em que eu não chegue à
conclusão de que não vivo de acordo com os padrões dele. Eu sempre soube que ele era tudo
a que eu poderia almejar. Posso nunca chegar a seus pés, mas, se conseguisse me aproximar
ao menos um pouco de sua grandeza, ficaria satisfeito. Isso é tudo o que eu sempre quis.
Sem saber muito bem por quê, ele olhou para Kate. Talvez quisesse se tranquilizar, ou
então buscar sua compreensão. Talvez desejasse apenas ver seu rosto.
– Se há uma coisa que eu sempre soube – murmurou ele, conseguindo encontrar, de
alguma maneira, coragem para encará-la –, era que jamais o superaria. Nem mesmo em
idade.
– O que você está tentando me dizer? – disse ela baixinho.
Ele deu de ombros, impotente.
– Sei que não faz sentido e que não posso oferecer nenhuma explicação racional, mas a
questão é que, desde a noite em que me sentei com o cadáver de meu pai, soube que não
poderia viver mais que ele.
– Entendo – retrucou ela, tranquila.
– Entende?
E então, como se uma represa tivesse se rompido, as palavras jorraram dele. Anthony falou
sobre tudo: por que era tão contrário ao casamento por amor, a inveja que sentira ao ver que
ela conseguira enfrentar seus demônios e vencer.
Observou Kate levar uma das mãos à boca e morder a ponta do polegar. Já a vira fazer isso,
lembrou, sempre que estava perturbada ou muito concentrada nos próprios pensamentos.
– Quantos anos seu pai tinha quando morreu? – perguntou ela.
– Trinta e oito.
– Quantos anos você tem agora?
Ele a olhou com curiosidade. Kate sabia sua idade. Mas, de qualquer maneira, ele disse:
– Vinte e nove.
– Então, pelos seus cálculos, ainda temos nove anos.
– No máximo.
– E você acredita mesmo nisso?
Anthony assentiu.
Ela cerrou os lábios e respirou profundamente. Por fim, depois do que pareceu um silêncio
infinito, voltou a fitá-lo.
– Bem, você está errado.
Curiosamente, o tom objetivo dela era tranquilizador. Anthony sentiu um dos cantos de
sua boca se erguer em um sorriso fraco.
– Você acha que não sei como isso é ridículo?
– Em minha opinião, não é ridículo. Na verdade, parece uma reação bastante normal,
sobretudo considerando que você adorava seu pai. – Ela deu de ombros e inclinou a cabeça
ligeiramente para o lado. – Ainda assim, está errado.
Anthony não disse nada.
– A morte de seu pai foi um acidente – prosseguiu Kate. – Um acidente. Um acaso terrível
do destino, que ninguém poderia prever.
Ele deu de ombros com um ar fatalista.
– É provável que a mesma coisa aconteça comigo.
– Ora, mas que... – Kate conseguiu morder a língua uma fração de segundo antes de
blasfemar. – Anthony, eu também posso morrer amanhã. Poderia ter morrido hoje, no
acidente com a carruagem.
Ele empalideceu.
– Nem me lembre disso.
– Minha mãe morreu quando eu tinha 3 anos – recordou Kate com rispidez. – Já pensou
nisso? De acordo com seu raciocínio, eu já deveria estar morta.
– Não seja...
– Tola? – completou ela.
O silêncio durou um minuto inteiro.
Finalmente, Anthony disse, pouco mais alto que um sussurro:
– Não sei se posso superar isso.
– Você não precisa superar – retrucou Kate. Ela mordeu o lábio inferior, que começara a
tremer, então pôs a mão a seu lado na cama. – Você poderia vir até aqui para que eu possa
segurar sua mão?
Anthony obedeceu de imediato, então o calor do toque dela o invadiu, penetrando seu
corpo até tocar sua alma. Naquele momento, ele percebeu que aquilo era muito mais que
amor. Aquela mulher fizera dele uma pessoa melhor. Ele era bom, forte e generoso antes,
mas, com Kate a seu lado, era algo mais.
Juntos, eles conseguiriam fazer qualquer coisa.
Isso quase o fez pensar que chegar aos 40 anos poderia não ser um sonho impossível de
realizar.
– Você não precisa superar – repetiu ela, as palavras pairando com suavidade entre eles. –
Para ser sincera, não vejo como poderia deixar esse medo para trás até completar 39 anos. No
entanto, o que pode fazer – completou, apertando sua mão, e Anthony, por alguma razão,
sentiu-se mais forte que alguns instantes atrás – é não permitir que isso domine sua vida.
– Cheguei a essa conclusão hoje de manhã – sussurrou ele –, quando soube que tinha que
lhe dizer que a amava. Mas, de algum modo, agora eu tenho certeza.
Kate assentiu e Anthony viu seus olhos se encherem de lágrimas.
– Precisamos viver cada momento como se fosse o último, como se fôssemos imortais –
afirmou ela. – Quando meu pai adoeceu, tinha tantos arrependimentos... Ele me disse que
havia tantas coisas que queria ter feito... Sempre imaginara que teria mais tempo. Nunca me
esqueci disso. Por que você acha que resolvi aprender a tocar flauta numa idade tão
avançada? Todos disseram que eu era velha demais, que para ser realmente boa eu deveria
ter começado quando criança. Mas a questão é que não preciso ser boa. Só tenho que me
divertir com isso. E saber que tentei.
Anthony sorriu. Ela era uma flautista horrível. Nem Newton suportava ouvi-la.
– Mas o contrário também é verdade – acrescentou Kate em voz baixa. – Você não pode
evitar novos desafios ou esconder-se do amor porque talvez não esteja aqui para realizar seus
sonhos. No fim, terá tantos arrependimentos quanto meu pai.
– Eu não queria amá-la – murmurou Anthony. – Era o que eu mais temia. Já estava
bastante acostumado a meu curioso modo de ver a vida. Era muito conveniente, para ser
sincero. Mas o amor...
Ele se interrompeu, e o som abafado que produziu parecia pouco viril, deixando evidente
sua vulnerabilidade. Mas Anthony não se importava, porque era Kate ali com ele.
Não importava que ela visse suas lágrimas mais profundas, porque Anthony sabia que
continuaria amando-o. Era um sentimento sublime de libertação.
– Eu conheci o amor verdadeiro – continuou ele. – Eu não era o sujeito cínico que a
sociedade me fazia parecer. Sabia que esse sentimento existia. Minha mãe... meu pai...
Parou mais uma vez e inspirou com dificuldade. Era a coisa mais difícil que já tinha feito. E,
ainda assim, sabia que precisava dizer aquilo. Tinha consciência de que, por mais difícil que
fosse, no fim, seu coração estaria livre.
– Eu tinha tanta certeza de que o amor era a única coisa que poderia fazer isso... isso... essa
consciência de mortalidade...– prosseguiu. Passou a mão pelos cabelos, procurando as
palavras. – O amor era a única coisa que tornaria essa consciência insuportável. Como eu
poderia amar alguém de maneira profunda e verdadeira sabendo que estou condenado?
– Mas você não está condenado – garantiu Kate, apertando sua mão.
– Eu sei. Quando me apaixonei por você, eu soube. Mesmo que eu esteja certo, ainda que
esteja destinado a morrer com a mesma idade de meu pai, sei que não estou condenado. –
Ele se inclinou e deu um beijo de leve nos lábios dela. – Eu tenho você – murmurou –, e não
vou desperdiçar nem um segundo que temos juntos.
Os lábios de Kate se abriram num sorriso.
– O que isso significa?
– Significa que o amor não tem nada a ver com o medo de que tudo acabe, mas com
encontrar alguém que o complete, que faça de você um ser humano melhor do que jamais
sonhou ser. É olhar nos olhos de sua esposa e ter a certeza de que ela é a melhor pessoa que
você já conheceu.
– Ah, Anthony – sussurrou Kate, com lágrimas escorrendo pelo rosto. – É assim que me
sinto em relação a você.
– Quando achei que você tinha morrido...
– Não diga isso – pediu ela com a voz abafada. – Você não precisa lembrar isso mais uma
vez.
– Não – retrucou ele. – Preciso, sim. Tenho que lhe dizer. Foi a primeira vez, mesmo depois
de todos esses anos esperando minha morte, que eu realmente soube o que significava
morrer. Porque, se você não tivesse sobrevivido... eu não veria mais motivo para viver. Não
sei como minha mãe aguentou.
– Ela tinha os filhos – recordou Kate. – Não podia abandonar vocês.
– Eu sei – falou Anthony em voz baixa. – Mas a dor que ela deve ter sentido...
– Acho que o coração humano é mais forte do que nós imaginamos.
Anthony encarou-a por um longo tempo, os olhos fixos nos dela, até sentir que eles só
podiam ser uma única pessoa. Então, com a mão trêmula, segurou-a pela nuca e inclinou-se
para beijá-la. Adorava os lábios dela, e ofereceu-lhe todo o amor, a devoção, a reverência e a
oração que sentia em sua alma.
– Eu amo você, Kate – murmurou ele, com os lábios roçando sua boca. – Amo demais.
Ela assentiu, incapaz de dizer qualquer coisa.
– E, neste momento, eu queria... queria...
E então a coisa mais estranha aconteceu. Uma gargalhada jorrou de dentro de Anthony.
Ele foi tomado pela felicidade do instante e rir foi tudo o que pôde fazer para não tomá-la
nos braços e girá-la no ar.
– Anthony? – chamou Kate, parecendo ao mesmo tempo confusa e divertida.
– Você sabe o que mais significa amar? – perguntou ele baixinho, apoiando as mãos nas
laterais de seu corpo e encostando o nariz no dela.
Kate balançou a cabeça.
– Não poderia nem arriscar uma resposta.
– Significa que acho essa sua perna quebrada um grande aborrecimento – resmungou ele.
– Não tanto quanto eu, milorde – retrucou ela, lançando um olhar triste ao membro
engessado.
Anthony franziu a testa.
– Nenhum exercício vigoroso pelos próximos dois meses, hein?
– No mínimo.
Ele sorriu e, naquele momento, parecia o libertino que ela certa vez o acusara de ser.
– Com certeza, vou ter que ser muito, muito delicado – murmurou.
– Hoje à noite?
Ele balançou a cabeça.
– Nem eu tenho o talento necessário para me expressar com essa delicadeza.
Kate deu uma risadinha. Não pôde evitar. Ela amava aquele homem e ele a amava, e,
mesmo que Anthony duvidasse disso, os dois envelheceriam juntos. Era o suficiente para
deixar uma garota – apesar da perna quebrada – muito risonha.
– Você está rindo de mim? – indagou ele, arqueando a sobrancelha de modo arrogante ao
se aproximar ainda mais dela.
– Nem sonharia em fazer isso.
– Ótimo. Porque tenho coisas importantes a lhe dizer.
– É mesmo?
Ele concordou com seriedade.
– Posso não poder demonstrar hoje à noite quanto a amo, mas posso lhe dizer isso.
– Nunca me cansarei de ouvir – sussurrou ela.
– Ótimo. Porque, depois que lhe disser, vou falar como gostaria de lhe mostrar isso.
– Anthony! – gritou ela com a voz aguda.
– Acho que começaria pelo lóbulo de sua orelha – refletiu ele. – Sim, com certeza pelo
lóbulo. Eu o beijaria, depois daria mordidinhas, então...
Kate arfou, em seguida contorceu-se na cama. E se apaixonou por ele mais uma vez.
Enquanto Anthony sussurrava doces bobagens em seu ouvido, ela teve a mais estranha das
sensações, quase como se pudesse ver todo o futuro diante de si. Cada dia seria mais rico e
pleno que o anterior, e em todos eles ela se apaixonaria...
Seria possível apaixonar-se pela mesma pessoa sempre, todos os dias?
Kate suspirou ao se acomodar nos travesseiros e deixou que aquelas palavras maliciosas
tomassem conta dela.
Por Deus, ela ia tentar.
EPÍLOGO
Lorde Bridgerton comemorou seu aniversário – acreditamos que tenha sido o 39º – em casa
com a família.
Esta autora não foi convidada.
De qualquer forma, detalhes da celebração chegaram aos nossos ouvidos atentos, e parece
ter sido uma festa muito divertida. O dia começou com um breve concerto: lorde Bridgerton
no trompete e Lady Bridgerton na flauta. A Sra. Bagwell (irmã de Lady Bridgerton)
aparentemente ofereceu-se para assumir o piano, mas a oferta foi recusada.
De acordo com a nobre viscondessa, nunca se realizou uma apresentação musical mais
desarmônica, e soubemos que a certa altura o jovem Miles Bridgerton subiu na cadeira e
implorou que seus pais parassem de tocar.
Também ouvimos dizer que ninguém censurou o garoto por sua falta de educação. Ao
contrário, todos deram suspiros de alívio quando seus progenitores puseram os instrumentos
de lado.
C
17
–
E
la só pode ter um espião na família – disse Anthony à esposa, balançando a cabeça.
Kate riu enquanto escovava os cabelos, preparando-se para deitar-se.
– Ela não percebeu que seu aniversário é hoje, não ontem.
– Apenas um detalhe – resmungou ele. – Ela deve ter um espião. Não há outra explicação.
– Todo o resto está correto – observou Kate. – Vou lhe contar uma coisa: sempre admirei
essa mulher.
– Não tocamos tão mal assim – protestou Anthony.
– Foi horrível. – Ela colocou a escova de lado e foi até ele. – Nunca tocamos bem. Mas, pelo
menos, tentamos.
Anthony pôs os braços ao redor da cintura da esposa e apoiou o queixo no alto de sua
cabeça. Poucas coisas lhe deixavam mais em paz que segurá-la nos braços. Ele não sabia
como um homem conseguia sobreviver sem amar uma mulher.
– Já é quase meia-noite – murmurou Kate. – Seu aniversário está quase acabando.
Anthony assentiu. Trinta e nove anos. Nunca pensara que veria esse dia.
Não. Isso não era verdade. Desde o momento em que deixara Kate entrar em seu coração,
seus temores foram desaparecendo aos poucos. Ainda assim, era bom fazer 39 anos.
Tranquilizador. Ele passara boa parte do dia no escritório, fitando o retrato do pai. E então
falara com ele. Durante incontáveis horas, conversara com Edmund. Contara-lhe sobre os
três filhos, o casamento dos irmãos e os filhos deles. Falara sobre a mãe e contara que ela
recentemente começara a pintar com tinta a óleo – e que, na verdade, era bastante talentosa.
E falara sobre Kate – sobre como ela libertara sua alma e como ele a amava.
Isso sempre fora, Anthony percebeu, o que o pai desejara para ele.
O relógio na lareira começou a tocar, mas nem Anthony nem Kate falaram até a 12ª
badalada.
– Então é isso – murmurou ela.
Ele aquiesceu.
– Vamos para a cama.
Kate se afastou e ele pôde ver que sorria.
– É assim que você quer comemorar? – disse ela.
Ele segurou sua mão e levou-a aos lábios.
– Não consigo imaginar modo melhor. E você?
Kate balançou a cabeça, então deu uma risadinha ao correr para a cama.
– Você leu o que mais ela escreveu na coluna?
– A tal Whistledown?
Ela concordou.
Anthony pôs as mãos nas laterais do corpo da esposa e a fitou de esguelha.
– Era sobre nós?
Kate negou com a cabeça.
– Então não me interessa – retrucou ele.
– Era sobre Colin.
Anthony soltou um suspiro.
– Ela parece escrever um bocado sobre Colin.
– Talvez goste dele – sugeriu Kate.
– Lady Whistledown? – Ele revirou os olhos. – Aquela velhota tagarela?
– Talvez não seja velha.
Anthony deu uma risada irônica.
– Ela é uma velhota encarquilhada e você sabe disso.
– Não sei, não – disse Kate, soltando-se das mãos dele e indo para debaixo das cobertas. –
Eu acho que ela pode ser jovem.
– E eu acho – anunciou Anthony – que não quero falar sobre Lady Whistledown.
Kate sorriu.
– Não?
Ele deslizou na cama para o lado dela e pousou os dedos na curva de seu quadril.
– Tenho coisas melhores para fazer.
– Ah, é?
– Muito melhores. – Seus lábios encontraram a orelha dela. – Infinitamente melhores.
Em um quarto pequeno e decorado com elegância, não muito distante da Casa Bridgerton,
uma mulher – não mais nos primeiros anos da juventude, mas com certeza nem um pouco
enrugada e velha – sentava-se à escrivaninha com uma pena e um vidrinho de tinta e pegava
uma folha de papel.
Alongando o pescoço para um lado e para o outro, pousou a pena sobre o papel e escreveu:
Crônicas da sociedade de Lady Whistledown, 19 de setembro de 1823
Ah, querida leitora, chegou aos ouvidos desta autora...
CARTA DA AUTORA
P
rezado leitor,
Vamos encarar os fatos: lemos romances para nos apaixonar. Sobretudo pelo herói. Sem
dúvida, as heroínas são importantes – na verdade, em minha opinião, se a mocinha não for
alguém que poderia ser minha melhor amiga, o livro não faz sentido.
No entanto, com os heróis, a história é outra. Espero que fique bem claro que amo meu
marido (apesar do tempo que ele levou para “consertar” meu computador), mas lamento:
dê-me Orgulho e preconceito e vou me apaixonar sempre pelo Sr. Darcy.
Foi por isso que, quando me sentei para escrever O visconde que me amava, estava
radiante. Passaria os seis meses seguintes com Anthony Bridgerton, um personagem que já
conhecia e por quem me apaixonei em O duque e eu. Ele era lindo, inteligente, e sempre
conseguia tudo o que queria. Em outras palavras: o perfeito herói romântico.
Mas não gosto de personagens perfeitos. A perfeição leva ao tédio e, em minha opinião,
não constrói grandes romances. Por isso, tomei uma decisão. Anthony ainda seria lindo e
inteligente, porém não mais perfeito. E, desta vez, definitivamente não conseguiria tudo o
que queria.
A reação dele à morte do pai é muito comum, sobretudo entre o sexo masculino. (Em um
grau muito inferior, mulheres que perderam a mãe cedo respondem de maneira
semelhante.) Homens na situação de Anthony costumam sentir-se dominados pela certeza
de que terão o mesmo destino. Muitas vezes, sabem que seus medos são irracionais, mas é
quase impossível conseguirem superá-lo até que cheguem à idade da morte do pai – ou a
ultrapassem.
Como a maioria de meus leitores é do sexo feminino, e como o problema de Anthony é –
para usar uma expressão moderna – “coisa de homem”, tive medo de que as mulheres não se
solidarizassem com a situação dele. Como autora de romances, vejo-me com frequência
cruzando um limite tênue entre criar heróis totalmente heroicos e fazê-los reais. Com
Anthony, espero ter chegado a um equilíbrio. É fácil olhar de cara feia para um livro e
resmungar: “Supere isso!”, mas a verdade é que, para grande parte dos homens, não é fácil
“resolver” a morte súbita e prematura de um pai amado.
As leitoras mais atentas perceberão que a picada de abelha que matou Edmund Bridgerton
foi, na verdade, a segunda que ele levou na vida. O que aconteceu é verossímil do ponto de
vista médico – alergias a picadas de abelha não se manifestam, em geral, até a segunda
ocorrência. Como Anthony só foi picado uma vez na vida, é impossível saber se ele é alérgico
ou não. Como autora deste livro, porém, gostaria de acreditar que tenho certo controle
criativo sobre o quadro de saúde de meus personagens, por isso decidi que Anthony não tem
alergia alguma e que, além disso, viverá até os 92 anos.
Com amor,
CONHEÇA O PRÓXIMO LIVRO DA SÉRIE
Um perfeito cavalheiro
A temporada de 1815 já começou e, embora se pudesse crer que todas as conversas seriam
em torno de Wellington e Waterloo, na verdade houve poucas mudanças em relação às
conversas do ano anterior, que giravam em torno do eterno tema da sociedade...
Como sempre, as esperanças matrimoniais das debutantes estão centradas na família
Bridgerton, mais especificamente no mais velho dos irmãos solteiros, Benedict. Ele pode não
possuir um título, mas o rosto bonito, a forma agradável e o bolso cheio parecem compensar
tranquilamente essa falha. Na verdade, em mais de uma ocasião esta autora ouviu uma
mamãe ambiciosa dizendo sobre a filha: “Ela vai se casar com um duque... ou um
Bridgerton.”
De sua parte, o Sr. Bridgerton parece bastante desinteressado das jovens frequentadoras
dos eventos sociais. Ele comparece a quase todas as festas e, no entanto, tudo que faz é olhar
para as portas, provavelmente esperando alguém especial.
Quem sabe...
Uma noiva potencial.
C
12
PRÓLOGO
T
odo mundo sabia que Sophie Beckett era uma bastarda.
Todos os criados sabiam. Mas amavam a pequena Sophie. Eles a amaram desde que ela
chegou a Penwood Park aos 3 anos de idade, uma trouxinha enrolada num casaco enorme,
deixada nos degraus de entrada da casa numa noite chuvosa de julho. E, como a amavam,
fingiam que ela era exatamente o que o sexto conde de Penwood dizia que ela era – a filha
órfã de um velho amigo. Não importava que os olhos verde-musgo e os cabelos louro-
escuros de Sophie fossem incrivelmente parecidos com o da recém-falecida mãe do conde ou
que seu sorriso fosse uma réplica precisa do da irmã dele. Ninguém queria magoar Sophie –
ou arriscar o emprego – fazendo esse tipo de observação.
O conde, um certo Richard Gunningworth, nunca falava sobre Sophie ou suas origens, mas
ele devia saber que ela era sua bastarda. Ninguém tinha conhecimento do que estava escrito
na carta que a governanta encontrara no bolso da menina quando ela foi descoberta naquela
noite chuvosa. O conde queimara a missiva segundos depois de ler. Ficou observando o
papel desaparecer nas chamas e então ordenou que um quarto fosse preparado para Sophie
perto da ala infantil. Foi onde ela permaneceu desde então. Ele a chamava de Sophia e ela o
chamava de “milorde”, e eles se viam algumas vezes por ano, sempre que o conde voltava de
Londres, o que não era muito frequente.
Mas talvez o mais importante fosse que Sophie sabia que era uma bastarda. Não tinha
muita certeza como, mas sabia, e provavelmente soubera durante toda a vida. Ela tinha
poucas lembranças da vida antes de sua chegada a Penwood Park, mas se lembrava de uma
longa viagem de carruagem pela Inglaterra e se lembrava da avó, tossindo e arfando,
terrivelmente magra, dizendo que ela ia viver com seu pai. Mais do que tudo, ela se
lembrava de ficar parada nos degraus de entrada sob a chuva, sabendo que a avó estava
escondida nos arbustos esperando para ver se Sophie era levada para dentro da casa.
O conde tocou o queixo da menininha, virou seu rosto para a luz e naquele momento os
dois souberam a verdade.
Todo mundo sabia que Sophie era uma bastarda, ninguém falava sobre isso, e todos
estavam satisfeitos com esse esquema.
Até que o conde decidiu se casar.
Sophie ficou muito alegre quando soube da novidade. A governanta contou que o
mordomo dissera que a secretária do conde disera que o conde estava planejando passar
mais tempo em Penwood Park, agora que se tornaria um homem de família. E embora
Sophie não sentisse exatamente falta do conde quando ele não estava em casa – era difícil
sentir saudade de alguém que não prestava muita atenção a ela mesmo quando estava
presente –, ela achava que poderia sentir sua falta se tivesse a oportunidade de conhecê-lo
melhor e que, se isso acontecesse, talvez ele não viajasse tanto. Além disso, a arrumadeira do
andar de cima dissera que a governanta comentara que o mordomo dos vizinhos dissera que
a pretendente do conde já tinha duas filhas e que elas tinham mais ou menos a mesma idade
de Sophie.
Depois de sete anos sozinha na ala infantil, Sophie estava encantada. Ao contrário das
outras crianças do distrito, ela nunca era convidada para festas e eventos locais. Ninguém
chegava a chamá-la de bastarda – já que fazer isso seria o equivalente a chamar o conde, que
fizera a declaração de que a menina era sua tutelada e depois nunca mais tocara no assunto
novamente, de mentiroso.
Mas, ao mesmo tempo, o conde nunca fez qualquer grande tentativa de forçar a aceitação
de Sophie. Assim, aos 10 anos, os melhores amigos da menina eram lacaios e criadas, e seus
pais poderiam muito bem ser a governanta e o mordomo.
Mas agora ela iria ganhar irmãs de verdade.
Ah, ela sabia que não poderia chamá-las de irmãs. Sabia que seria apresentada como Sophia
Maria Beckett, a tutelada do conde, mas elas pareceriam irmãs. E isso era o que realmente
importava.
Assim, numa tarde de fevereiro, Sophie se viu esperando no grande hall junto com a
criadagem reunida, esperando pela janela que a carruagem do conde parasse na entrada da
casa trazendo a nova condessa e suas duas filhas. E, é claro, o conde.
– Você acha que ela vai gostar de mim? – sussurrou Sophie para a Sra. Gibbons, a
governanta. – A esposa do conde, quero dizer.
– É claro que ela vai gostar de você, querida – murmurou a Sra. Gibbons em resposta. Mas
seu olhar não tinha tanta certeza quanto seu tom de voz. A nova condessa poderia não
gostar da presença da filha ilegítima do marido.
– E eu vou ter aulas com as filhas dela?
– Não há por que vocês terem aulas separadas.
Sophie assentiu pensativamente, e então começou a se contorcer quando viu a carruagem
chegando.
– Eles chegaram! – sussurrou ela.
A Sra. Gibbons estendeu a mão para acariciar sua cabeça, mas Sophie já havia corrido até a
janela, praticamente colando o rosto ao vidro.
O conde desceu primeiro, estendeu a mão e então ajudou as duas menininhas a descerem.
As duas estavam vestindo casacos pretos iguais. Uma tinha um laço cor-de-rosa na cabeça, a
outra, um laço amarelo. Então, depois que as duas meninas se afastaram, o conde estendeu a
mão para ajudar uma última pessoa a descer da carruagem.
Sophie prendeu a respiração enquanto esperava que a nova condessa aparecesse. Cruzou os
dedinhos e sussurrou um único “Por favor”, bem baixinho.
“Por favor, faça com que ela me ame.”
Se a condessa a amasse, talvez o conde também pudesse amá-la. E, quem sabe, não a
chamaria de filha, tratando-a como tal, e eles formariam uma verdadeira família.
Com Sophie observando pela janela, a nova condessa desceu da carruagem. Seus
movimentos eram tão graciosos e sutis que a menina pensou na delicada cotovia que às vezes
ia se banhar na fonte de pássaros do jardim. O chapéu da recém-chegada inclusive era
enfeitado por uma longa pena, e sua pluma turquesa reluzia sob o débil sol de inverno.
– Ela é linda – sussurrou Sophie, que olhou rapidamente para a Sra. Gibbons, tentando
avaliar a reação dela, mas a governanta estava parada, muito atenta, com os olhos fixos à
frente, esperando que o conde levasse a nova família para dentro de casa e fizesse as
apresentações.
Sophie engoliu em seco, não exatamente certa sobre onde deveria ficar. Todos os demais
pareciam ter um lugar designado. Os criados estavam alinhados de acordo com a posição, do
mordomo até a mais rasa faxineira. Até mesmo os cães estavam obedientemente sentados no
canto, com as guias bem presas pelo cuidador.
Mas Sophie não tinha raízes. Se fosse verdadeiramente a filha da casa, estaria parada com
sua tutora, esperando pela nova condessa. Se fosse realmente a tutelada do conde, estaria no
mesmo lugar. Mas Srta. Timmons havia pegado um resfriado e se recusara a deixar a ala
infantil e descer. Nenhum dos criados acreditou por um instante que a tutora estivesse
realmente doente. Ela estava perfeitamente bem na noite anterior, mas ninguém a culpou
pelo fingimento. Sophie era, afinal, a bastarda do conde, e ninguém queria ser a pessoa a
fazer um insulto potencial à nova condessa apresentando-lhe a filha ilegítima do marido.
E a condessa teria de ser cega, burra ou as duas coisas para não se dar conta num instante
de que Sophie era algo mais do que a tutelada do conde.
Subitamente dominada pela timidez, Sophie se encolheu num canto quando dois lacaios
abriram as portas da frente com um floreio. As duas meninas entraram primeiro e então
foram para o lado, enquanto o conde convidava a condessa a entrar. Ele apresentou a esposa
e as filhas ao mordomo, e o mordomo as apresentou aos criados.
E Sophie ficou esperando.
O mordomo apresentou os lacaios, o chef, a governanta, os cavalariços.
E Sophie ficou esperando.
Ele apresentou as criadas da cozinha, as criadas do andar de cima, as arrumadeiras.
E Sophie ficou esperando.
E então, finalmente, o mordomo – que se chamava Rumsey – apresentou a criada de
menor posição, uma arrumadeira chamada Dulcie, que havia sido contratada apenas uma
semana antes. O conde fez um aceno de cabeça, murmurou um agradecimento, e Sophie
ainda estava esperando, absolutamente sem saber o que fazer.
Então ela limpou a garganta e deu um passo à frente com um sorriso nervoso nos lábios. Ela
não passava muito tempo com o conde, mas era levada para vê-lo sempre que ele visitava
Penwood Park, e ele sempre lhe dedicava alguns minutos de seu tempo, perguntando-lhe
sobre as lições antes de mandá-la de volta para a ala infantil.
Ele certamente ainda iria querer saber como estavam indo seus estudos, mesmo agora que
estava casado. Ele certamente iria querer saber que ela havia dominado a ciência da
multiplicação de frações e que a Srta. Timmons havia afirmado recentemente que seu
sotaque francês era “perfeito”.
Mas ele estava ocupado dizendo alguma coisa às filhas da condessa e não a escutou. Sophie
limpou a garganta novamente, desta vez mais alto, e disse:
– Milorde? – numa voz que saiu um pouco mais esganiçada do que ela pretendia.
O conde se virou.
– Ah, Sophia – murmurou ele. – Eu não vi que você estava aqui.
Sophie ficou radiante. Ele não a estava ignorando, afinal.
– E quem é essa? – perguntou a condessa, dando um passo à frente para olhar melhor.
– É a minha tutelada – respondeu o conde. – Srta. Sophia Beckett.
A condessa olhou para Sophie e a avaliou. Então seus olhos se estreitaram.
E se estreitaram.
E se estreitaram um pouco mais.
– Entendo – disse por fim.
E todo mundo que estava na sala soube imediatamente que ela entendia mesmo.
– Rosamund – disse a condessa, virando-se para suas duas meninas –, Posy, venham
comigo.
As meninas foram imediatamente para o lado da mãe. Sophie arriscou um sorriso para elas.
A menorzinha sorriu de volta, mas a mais velha, que tinha os cabelos cor de ouro, pegou a
deixa da mãe, empinou o nariz e olhou com firmeza para outro lado.
Sophie engoliu em seco e sorriu de novo para a menina amistosa, mas dessa vez a
menininha mordeu o lábio inferior com indecisão e então olhou para o chão.
A condessa se virou de costas para Sophie e disse ao conde:
– Imagino que tenha mandado preparar quartos para Rosamund e Posy.
Ele assentiu.
– Perto da ala infantil. Bem ao lado do de Sophie.
Houve um longo silêncio, e então a condessa deve ter decidido que algumas batalhas não
deveriam ser travadas na frente dos criados, porque tudo o que disse foi:
– Eu gostaria de subir agora.
E saiu, levando o conde e as filhas com ela.
Sophie observou a nova família subindo a escada e, então, quando eles desapareceram, ela
se virou para a Sra. Gibbons e perguntou:
– Você acha que eu devo subir para ajudar? Eu poderia mostrar a ala infantil para as
meninas.
A Sra. Gibbons balançou a cabeça.
– Elas parecem cansadas – mentiu. – Estou certa de que estão precisando de um cochilo.
Sophie franziu a testa. Disseram a ela que Rosamund tinha 11 anos, e Posy, 10. Elas
certamente estavam um pouco velhas para tirar cochilos durante o dia.
A Sra. Gibbons deu uns tapinhas em suas costas.
– Por que você não vem comigo? Seria bom ter um pouco de companhia, e a cozinheira me
contou que acabou de preparar uma fornada de amanteigados. Acho que ainda está quente.
Sophie assentiu e a seguiu. Teria bastante tempo para conhecer as duas meninas naquela
noite. Ela lhes mostraria a ala infantil, e então elas se tornariam amigas. E não demoraria
muito para que fossem como irmãs.
Sophie sorriu. Seria uma glória ter irmãs.
Acontece que Sophie não encontrou Rosamund e Posy – ou o conde e a condessa, inclusive
– até o dia seguinte. Quando entrou na ala infantil para jantar, percebeu que a mesa havia
sido posta para dois, não para quatro, e a Srta. Timmons (que milagrosamente se recuperara
do mal-estar) disse que a nova condessa havia lhe informado que Rosamund e Posy estavam
cansadas demais da viagem para comer naquela noite.
Mas as meninas precisavam ter aulas. Assim, na manhã seguinte, chegaram à ala infantil,
vindo logo atrás da condessa. Sophie já estava fazendo suas atividades havia uma hora e
levantou o olhar da lição de aritmética bastante interessada. Dessa vez, não sorriu para as
meninas.
De alguma maneira, parecia melhor não sorrir.
– Srta. Timmons – disse a condessa.
Srta. Timmons fez um aceno de cabeça e murmurou:
– Milady.
– O conde me disse que você ensinará as minhas filhas.
– Farei o melhor possível, milady.
A condessa fez um sinal para a menina mais velha, a que tinha cabelos dourados e olhos
azuis. Sophie pensou que ela era tão bonita quanto a boneca de porcelana que o conde havia
mandado de Londres para seu aniversário de 7 anos.
– Esta – informou – é Rosamund. Ela tem 11 anos. E esta – ela fez então um sinal para a
outra menina, que não havia tirado os olhos dos sapatos – é Posy. Ela tem 10.
Sophie olhou para Posy com muito interesse. Ao contrário da mãe e da irmã, ela tinha os
cabelos e os olhos muito escuros e o rosto um pouco rechonchudo.
– Sophie também tem 10 anos – respondeu a Srta. Timmons.
A condessa apertou os lábios.
– Eu gostaria que você mostrasse a casa e o jardim para as meninas.
A Srta. Timmons assentiu.
– Muito bem. Sophie, deixe sua lousa aí. Poderemos retornar à aritmética...
– Apenas as minhas meninas – interrompeu a condessa, com a voz de certa forma quente e
fria ao mesmo tempo. – Quero falar com Sophie a sós.
Sophie engoliu em seco e tentou fitar os olhos da condessa, mas não conseguiu passar do
queixo. Enquanto a Srta. Timmons levava Rosamund e Posy para fora da sala, ela se
levantou, aguardando novas orientações da nova esposa do pai.
– Eu sei quem você é – disse a condessa no instante em que a porta se fechou.
– M-milady?
– Você é a bastarda dele, e não tente negar.
Sophie não disse nada. Era a verdade, é claro, mas ninguém jamais havia falado em voz
alta. Pelo menos não diretamente a ela.
A condessa segurou o queixo de Sophie, apertou e puxou até que Sophie foi forçada a olhá-
la nos olhos.
– Ouça bem – disse ela, em tom ameaçador. – Você pode viver aqui em Penwood Park e
pode ter aulas com as minhas filhas, mas não passa de uma bastarda, e é tudo o que sempre
será. Nunca, jamais, cometa o erro de pensar que é tão boa quanto o restante de nós.
Sophie soltou um pequeno gemido. As unhas da condessa estavam machucando seu
queixo.
– O meu marido – continuou a condessa – tem uma espécie de dever equivocado em
relação a você. É admirável da parte dele assumir os próprios erros, mas para mim é um
insulto tê-la na minha casa alimentada, vestida e educada como se fosse sua filha de
verdade.
Mas ela era filha dele de verdade. E aquela casa era dela muito antes de ser da condessa.
Abruptamente, a condessa soltou o queixo de Sophie.
– Eu não quero ver você – sibilou ela. – Você nunca deve falar comigo e deve tratar de
nunca estar perto de mim. Além disso, não deve falar com Rosamund e Posy fora das aulas.
Elas são as filhas da casa agora, e não devem ter de se associar a gente da sua laia. Você tem
alguma pergunta?
Sophie negou com a cabeça.
– Ótimo.
Com isso, ela saiu da sala, deixando Sophie com as pernas bambas, os lábios trêmulos...
E um monte de lágrimas.
Com o tempo, Sophie aprendeu um pouco mais sobre sua posição precária na casa. Os
criados sempre sabiam de tudo, e tudo acabava chegando aos ouvidos dela.
A condessa, cujo nome de batismo era Araminta, insistira naquele primeiro dia que Sophie
fosse retirada da casa. O conde se recusara a obedecê-la. Araminta não precisava amar
Sophie, ele dissera friamente. Não precisava sequer gostar dela. Mas teria de suportá-la. Ele
havia reconhecido sua responsabilidade para com a menina durante sete anos e não iria
parar agora.
Rosamund e Posy obedeceram às ordens de Araminta e trataram Sophie com hostilidade e
desdém, embora o coração de Posy claramente não fosse afeito a tortura e crueldade como o
de Rosamund. Esta última adorava beliscar e torcer a pele da parte de cima da mão de
Sophie quando a Srta. Timmons não estava olhando. Sophie nunca dizia nada. Duvidava que
a tutora tivesse coragem de repreender Rosamund (que certamente iria correndo até
Araminta com alguma história falsa), e se alguém percebeu que as mãos de Sophie estavam
eternamente marcadas com manchas roxas e azuladas, ninguém jamais disse nada.
Posy às vezes demonstrava alguma bondade, ainda que com frequência apenas suspirasse e
dissesse:
– Minha mamãe me diz para não ser boa com você.
Quanto ao conde, ele nunca intervinha.
A vida de Sophie continuou dessa forma por quatro anos, até o conde surpreender a todos
e levar a mão ao peito enquanto tomava chá no jardim de rosas, arfar com força e cair de
rosto no piso de pedras.
Ele nunca mais recuperou a consciência.
Todo mundo ficou chocado. O conde tinha apenas 40 anos. Quem poderia saber que seu
coração pararia em tão tenra idade? Ninguém ficou mais perplexo que Araminta, que vinha
tentando desesperadamente, desde a noite de núpcias, conceber o indispensável herdeiro.
– Eu posso estar esperando um filho! – se apressou ela em dizer aos advogados do conde. –
Vocês não podem entregar o título a algum primo distante. Eu poderia muito bem estar
esperando um filho.
Mas ela não estava esperando um filho, e quando o testamento do conde foi lido no mês
seguinte (os advogados quiseram garantir à condessa tempo suficiente para saber ao certo se
estava grávida), Araminta foi forçada a se sentar ao lado do novo conde, um jovem bastante
desregrado que passava mais tempo bêbado do que sóbrio.
A maioria dos desejos do falecido conde eram justos e tradicionais. Ele deixou legados a
criados leais. Estabeleceu fundos para Rosamund, Posy e até mesmo para Sophie, garantindo
que todas as três tivessem dotes respeitáveis.
E então o advogado chegou ao nome de Araminta.
“À minha esposa, Araminta Gunningworth, Condessa de Penwood, deixo uma renda anual
de duas mil libras...”
– Só isso? – gritou Araminta.
“... a menos que ela concorde em abrigar e cuidar de minha tutelada, a Srta. Sophia Maria
Beckett, até que esta atinja os 20 anos. Neste caso, sua renda anual deverá ser triplicada para
seis mil libras.”
– Eu não a quero – sussurrou Araminta.
– A senhora não precisa aceitá-la – lembrou-lhe o advogado. – A senhora pode...
– Viver com miseráveis dois mil por ano? – disparou ela. – Acho que não.
O advogado, que vivia com uma renda consideravelmente menor do que dois mil por ano,
não disse nada.
O novo conde, que estava bebendo consistentemente ao longo da reunião, apenas encolheu
os ombros.
Araminta se levantou.
– Qual é a sua decisão? – perguntou-lhe o advogado.
– Eu fico com ela – disse em voz baixa.
– Devo procurar a menina e contar a ela?
Araminta sacudiu a cabeça.
– Eu mesma digo.
Mas quando Araminta encontrou Sophie, deixou de fora alguns fatos importantes...
CAPÍTULO 1
O convite mais procurado deste ano deve certamente ser o do baile de máscaras dos
Bridgertons, a ser realizado na próxima segunda-feira. De fato, não é possível dar dois
passos sem ser obrigado a ouvir alguma mamãe da sociedade especulando sobre quem irá
participar e, talvez ainda mais importante, quem vestirá o quê.
Nenhum dos assuntos mencionados acima, no entanto, é tão interessante como o dos dois
irmãos Bridgertons solteiros, Benedict e Colin. (Antes que alguém diga que há um terceiro
irmão Bridgerton solteiro, permitam que A Autora lhes assegure que tem plena consciência
da existência de Gregory Bridgertons. Ele, no entanto, tem 14 anos e, portanto, não é
pertinente a essa coluna em particular, que trata, como as colunas d’A Autora costumam
tratar, do mais sagrado dos esportes: caça a maridos.)
Embora os Senhores Bridgertons sejam apenas isso – apenas Senhores –, eles ainda são
considerados dois dos melhores partidos da temporada. Sabe-se bem que ambos possuem
respeitáveis fortunas, e não é necessária visão perfeita para saber que eles também possuem,
da mesma forma que todos os oito irmãos Bridgertons, a beleza da família.
Será que alguma jovem afortunada usará o mistério de uma noite de máscaras para fisgar
um dos cobiçados solteiros?
A Autora não tentará sequer especular.
D
31
–
S
ophie! Sophieeeeeeeeeeeeeee!
No que dizia respeito a guinchos, aquele seria suficiente para estilhaçar vidros. Ou pelo
menos um tímpano.
– Estou indo, Rosamund! Estou indo! – Sophie levantou as barras das saias de lã crua e
correu escada acima, escorregando no quarto degrau e mal conseguindo se segurar no
corrimão antes de cair sentada. Ela deveria ter se lembrado de que a escadaria estaria
escorregadia, já que havia ajudado a arrumadeira do andar de baixo a encerá-la naquela
manhã.
Parando diante da porta do quarto de Rosamund ainda tentando recuperar o fôlego,
Sophie disse:
– Sim?
– Meu chá está frio.
O que Sophie queria dizer era “Estava quente quando eu o trouxe para você há uma hora,
sua demônia preguiçosa”, mas o que disse foi:
– Trarei outro bule.
Rosamund bufou.
– É melhor mesmo.
Sophie esticou os lábios no que apenas algum cego poderia chamar de sorriso e recolheu o
serviço de chá.
– Deixo os biscoitos? – perguntou ela.
Rosamund sacudiu a bela cabeça.
– Quero biscoitos frescos.
Com os ombros ligeiramente arqueados por conta do peso do serviço de chá
sobrecarregado, Sophie saiu do quarto, cuidando para não começar a resmungar antes de
chegar ao corredor. Rosamund estava sempre pedindo chá, sem se preocupar em tomá-lo até
ter passado uma hora. Quando, é claro, ele estava frio, e então pedia mais um bule.
O que significava que Sophie estava sempre subindo e descendo a escada, para cima e para
baixo, para cima e para baixo. Às vezes, parecia que era tudo que ela fazia da vida.
Para cima e para baixo, para cima e para baixo.
E tinha, é claro, os remendos para fazer, as roupas para passar, os cabelos a pentear, os
sapatos para limpar, as costuras, as camas para arrumar...
– Sophie! – Sophie se virou e viu Posy vindo em sua direção. – Sophie, eu venho querendo
perguntar se você acha que esta cor me favorece.
Sophie avaliou a fantasia de sereia de Posy. O corte não estava muito bom para a moça, que
nunca perdera toda a sua gordurinha de infância, mas a cor realmente destacava muito bem
a sua pele.
– É um tom muito bonito de verde – respondeu Sophie com toda sinceridade. – Deixa as
suas bochechas bem rosadas.
– Ah, ótimo. Que bom que você gostou. Você tem um bom jeito para escolher minhas
roupas. – Posy sorriu ao estender o braço e pegar um biscoito açucarado na bandeja. – A
mamãe está perturbando a semana inteira com esse baile de máscaras, e sei que ela não vai
parar enquanto eu não estiver com a melhor aparência possível. Ou – o rosto de Posy se
contorceu numa careta – ela achar que eu estou com a melhor aparência possível. Ela está
decidida que uma de nós fisgue um dos últimos irmãos Bridgertons, sabia?
– Eu sei.
– E, para piorar as coisas, aquela tal Whistledown anda escrevendo sobre eles novamente. E
isso – Posy terminou de mastigar o biscoito e fez uma pausa para engolir – só aumenta o
apetite dela.
– A coluna desta manhã estava boa? – perguntou Sophie, apoiando a bandeja no quadril. –
Eu ainda não consegui ler.
– Ah, o de sempre – disse Posy com um aceno de mão. – Na verdade, ela às vezes pode ser
bastante maçante, sabe.
Sophie tentou sorrir, mas não conseguiu. Não haveria nada que ela gostaria mais do que
viver um dia da vida maçante de Posy. Bem, talvez ela não fosse querer Araminta como mãe,
mas não se importaria de levar uma vida de festas, jantares e saraus.
– Vamos ver – pensou Posy. – Havia uma resenha do recente baile de Lady Worth, um
pouco sobre o Visconde Guelph, que parece estar bastante impressionado com uma moça da
Escócia, e um texto mais longo sobre o próximo baile de máscaras dos Bridgertons.
Sophie suspirou. Ela vinha lendo sobre o próximo baile de máscaras havia semanas, e
embora não passasse de uma camareira (e às vezes arrumadeira também, sempre que
Araminta decidia que ela não estava trabalhando duro o bastante), ela não podia deixar de
desejar ir ao baile.
– Eu, por exemplo, vou adorar se aquele visconde Guelph ficar noivo – observou Posy,
pegando outro biscoito. – Será um solteiro a menos em que a mamãe vai ficar falando sem
parar como um marido potencial. Não que eu tenha qualquer esperança de atrair a atenção
dele, de qualquer maneira. – Ela deu uma mordida no biscoito, fazendo barulho com a boca.
– Espero que Lady Whistledown esteja certa a respeito dele.
– Ela provavelmente está – respondeu Sophie. Ela lia o Diário Social de Lady Whistledown
desde sua estreia em 1813, e a colunista de fofoca estava quase sempre correta quando se
tratava de questões do mercado de casamentos.
Não, é claro, que Sophie jamais tivera chance de ver o mercado de casamentos. Mas quem
lia Whistledown com frequência suficiente quase podia se sentir parte da Sociedade de
Londres sem de fato ir aos bailes. Na verdade, ler Whistledown era um dos passatempos
realmente divertidos de Sophie. Ela já havia lido todos os livros da biblioteca, e como nem
Araminta, Rosamund ou Posy gostavam muito de ler, não tinha como esperar que um novo
livro entrasse na casa.
Mas Whistledown era muito divertida. Ninguém conhecia a verdadeira identidade da
colunista. Quando o jornal de folha única estreou dois anos antes, as especulações
grassaram. Mesmo agora, sempre que Lady Whistledown publicava alguma fofoca
particularmente interessante, as pessoas começavam a falar e a fazer apostas de novo,
imaginando quem, afinal, era capaz de informar com tamanha velocidade e precisão.
E, para Sophie, Whistledown era um vislumbre irresistível do mundo que poderia ter sido
dela se seus pais tivessem legalizado sua união. Ela teria sido a filha de um conde, não sua
bastarda. Seu nome seria Gunningworth em vez de Beckett.
Apenas uma vez ela gostaria de ser ela a entrar numa carruagem para ir a um baile.
Em vez disso, ela era a que vestia outras para as noites na cidade, apertando o corpete de
Posy, arrumando os cabelos de Rosamund ou limpando os pares de sapatos de Araminta.
Mas ela não podia – ou pelo menos não devia – reclamar. Ela podia ter de ser criada de
Araminta e suas filhas, mas pelo menos tinha uma casa. Que era mais do que a maioria das
meninas em sua posição tinha.
Quando seu pai morreu não deixou nada para ela. Bem, nada além de um teto sobre sua
cabeça. Seu testamento garantira que ela não poderia ser mandada embora antes de
completar 20 anos. De forma alguma Araminta abriria mão de quatro mil libras por ano
expulsando Sophie.
Mas aquelas quatro mil libras eram de Araminta, não dela, e Sophie não havia visto sequer
um centavo delas. Não havia mais as boas roupas que ela costumava vestir, substituídas pela
lã crua dos criados. E ela comia o mesmo que as demais empregadas – o que quer que
Araminta, Rosamund e Posy decidissem deixar sobrar.
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SUMÁRIO
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
EPÍLOGO
CARTA DA AUTORA
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Document Outline - Créditos
- PRÓLOGO
- CAPÍTULO 1
- CAPÍTULO 2
- CAPÍTULO 3
- CAPÍTULO 4
- CAPÍTULO 5
- CAPÍTULO 6
- CAPÍTULO 7
- CAPÍTULO 8
- CAPÍTULO 9
- CAPÍTULO 10
- CAPÍTULO 11
- CAPÍTULO 12
- CAPÍTULO 13
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