com cada fibra de seu ser – que ele não se referira a coisas imateriais, mas a seus próprios
medos, algo muito específico que o assombrava a cada minuto de todos os dias.
Algo sobre o qual ela sabia não ter o direito de perguntar. Mas ela desejava – ah, como
desejava – que, quando ele estivesse pronto para enfrentar os próprios temores, ela pudesse
ajudá-lo.
Contudo, isso não iria acontecer. Ele se casaria com outra pessoa – talvez até Edwina –, e
apenas sua esposa teria o direito de conversar com ele sobre problemas pessoais.
– Acho que já estou pronta para subir – disse ela.
De repente se tornou muito difícil ficar na presença dele, e era doloroso demais saber que
ele pertenceria a outra pessoa.
Anthony curvou os lábios num sorriso infantil.
– Você está dizendo que eu posso finalmente rastejar de debaixo desta mesa?
– Ah, meu Deus! – Ela levou uma das mãos ao rosto, com uma expressão constrangida. –
Sinto muito. Pelo jeito, esqueci onde estávamos. O senhor deve me achar uma tola.
Ele balançou a cabeça, sem deixar de sorrir.
– Nunca a achei tola, Kate. Mesmo quando a considerava a criatura mais insuportável de
todo o planeta, nunca duvidei de sua inteligência.
Kate, que estava começando a sair de debaixo da mesa, fez uma pausa.
– Não sei se devo ver isso como um elogio ou como um insulto.
– Talvez as duas coisas – admitiu ele –, mas, pelo bem de nossa amizade, vamos optar pelo
elogio.
Ela se virou para fitá-lo, sabendo muito bem que sua posição – apoiada nas mãos e nos
joelhos – era estranha, mas o momento parecia importante demais para adiar.
– Então nós somos amigos? – murmurou.
Ele assentiu enquanto se punha de pé.
– Por mais estranho que pareça, acho que somos.
Kate sorriu ao segurar a mão dele, que a ajudou a levantar-se.
– Fico feliz. O senhor... o senhor realmente não é o demônio que pensei que fosse no
início.
Ele ergueu uma sobrancelha e assumiu uma expressão muito maligna.
– Bem, talvez seja – corrigiu ela, pensando que era bem provável que fosse mesmo o
libertino e patife que a sociedade pintara. – Mas pode ser um homem bom também.
– Bom parece tão sem graça... – refletiu ele.
– Bom – retrucou Kate – é bom. E, considerando minha opinião anterior, o senhor deveria
ficar satisfeito com o elogio.
Ele deu uma risada.
– Se existe uma coisa que eu posso dizer sobre você, Kate Sheffield, é que nunca é uma
pessoa enfadonha.
– Enfadonha é tão sem graça... – brincou ela.
Ele sorriu. Era um gesto sincero, verdadeiro, não a expressão irônica que ele costumava
assumir nos eventos sociais. De repente, Kate sentiu um bolo na garganta.
– É melhor que eu não a acompanhe até seu quarto – comentou ele. – Se alguém nos vir
juntos a uma hora dessas...
Kate assentiu. Eles haviam criado uma amizade improvável, mas ela não queria ser
obrigada a se casar com ele, certo? Nem era preciso dizer que ele não queria se casar com ela.
Anthony fez um gesto na direção dela.
– Sobretudo considerando seus trajes...
Kate baixou os olhos e arfou, depois puxou o robe com força. Ela tinha se esquecido por
completo que não estava vestida de maneira adequada. Sua camisola não era reveladora nem
indecente, especialmente com o robe grosso por cima, mas era uma camisola.
– A senhorita vai ficar bem? – indagou ele em voz baixa. – Ainda está chovendo.
Kate parou e ouviu com atenção. A chuva tinha se transformado em um delicado
tamborilar nas janelas.
– Acho que a tempestade já passou.
Ele assentiu e deu uma olhada no corredor.
– Está vazio – falou.
– É melhor que eu me vá.
Ele se afastou para deixá-la passar.
Kate se afastou, mas, quando alcançou a escada, parou e deu meia-volta.
– Lorde Bridgerton.
– Anthony – retrucou ele. – Pode me chamar de Anthony. Creio que já a chamei de Kate.
– É mesmo?
– Quando a encontrei. – Ele fez um gesto com a mão na direção do escritório. – Não creio
que você tenha ouvido algo do que eu disse.
– O senhor tem razão. – Ela deu um sorriso hesitante. – Anthony.
O nome soou estranho em seus lábios.
Ele se inclinou um pouco para a frente com um brilho estranho, quase diabólico, nos olhos.
– Kate – falou, retribuindo o tratamento.
– Só queria lhe agradecer – continuou ela. – Por me ajudar hoje. Eu... – Ela pigarreou. –
Teria sido muito mais difícil sem o senhor.
– Eu não fiz nada – retrucou ele de forma brusca.
– Não. O senhor fez tudo.
E, então, antes que sentisse a tentação de ficar, ela apertou o passo e subiu correndo as
escadas.
CAPÍTULO 13
Não há muito a falar sobre Londres, pois várias pessoas estão em Kent, na casa de campo
dos Bridgertons. Esta autora mal pode imaginar todas as fofocas que, em breve, vão chegar
à cidade. Haverá um escândalo, não é? Sempre há um escândalo numa reunião em uma
casa de campo.
C
4
A
manhã seguinte foi do tipo que em geral se segue a uma tempestade violenta: clara e
límpida, mas com uma névoa fina e úmida que assentava sobre a pele, refrescando-a.
Anthony esquecera-se do tempo depois de passar a noite em claro fitando a escuridão e
vendo apenas o rosto de Kate. Finalmente, quando os primeiros raios da aurora surgiram no
céu, ele conseguiu pegar no sono. Apesar de ter acordado depois de meio-dia, não se sentia
descansado. Seu corpo tinha sido dominado por uma estranha combinação de cansaço e
energia nervosa. Os olhos pareciam pesados e entorpecidos, e mesmo assim ele tamborilou
sobre a cama, movendo a mão para a beirada, como se os dedos, sozinhos, pudessem puxá-lo
e fazê-lo ficar de pé.
Por fim, quando seu estômago roncou tão alto que ele poderia jurar que vira o gesso do
teto estremecer, Anthony levantou-se com dificuldade e vestiu o robe. Com um bocejo
sonoro, foi até a janela, não porque quisesse procurar alguém ou algo em particular, mas
apenas porque a visão era melhor que qualquer coisa em seu quarto.
Mesmo assim, na fração de segundo antes de baixar os olhos e fitar o terreno, ele sabia, de
alguma maneira, o que ia ver.
Kate. Ela caminhava lentamente pelo gramado, muito mais devagar do que de costume. Em
geral, ela andava como se disputasse uma corrida.
Ela estava muito longe para que ele pudesse ver seu rosto – só uma parte de seu perfil, a
curva da bochecha, era visível. Ainda assim, não conseguiu tirar os olhos dela. Suas formas
eram mágicas – havia uma graça estranha no modo como o braço pendia quando ela
caminhava, uma habilidade artística na posição dos ombros.
Anthony percebeu que ela seguia para o jardim.
E soube que precisava se juntar a ela.
O tempo permaneceu instável durante a maior parte do dia, fazendo dois grupos se
formarem na casa: os que insistiam que a ausência de chuva convidava a atividades ao ar
livre e os que queriam evitar a grama molhada e o ar úmido, preferindo o clima mais seco e
quente da sala de estar.
Kate, sem dúvida, estava no primeiro grupo, embora não quisesse companhia. Encontrava-
se num estado reflexivo demais para ter uma conversa educada com pessoas que mal
conhecia, por isso se afastou da casa e seguiu para os jardins espetaculares de Lady
Bridgerton. Chegando lá, acomodou-se em um local bem silencioso, num banco de pedra
perto de um arco de rosas. O banco estava frio e um pouco úmido, mas ela sentia-se
cansada, e era melhor que ficar de pé.
E era, percebeu com um suspiro, praticamente o único lugar onde poderia ficar sozinha. Se
não saísse de casa, decerto seria obrigada a juntar-se ao grupo de senhoras que tagarelavam
na sala de estar enquanto escreviam cartas para os amigos e a família ou, pior, teria que
acompanhar o grupo que fora ao jardim de inverno para bordar.
Quanto aos entusiastas do ar livre, eles se subdividiram em dois grupos. O primeiro partiu
apressadamente para o povoado a fim de fazer compras e passear pelos lugares mais famosos
enquanto o outro quis fazer uma caminhada até o lago. Como Kate não tinha nenhum
interesse em fazer compras (e já estava bastante familiarizada com o lago), evitou a
companhia deles também.
Por isso a solidão no jardim.
Ela ficou vários minutos apenas olhando um botão de rosa sem de fato vê-lo, com os olhos
de certa forma vazios. Era bom ficar sozinha, sem ter que cobrir a boca ou disfarçar os ruídos
que fazia ao bocejar. Era bom não ter ninguém por perto para comentar sobre suas olheiras,
ou sobre seu silêncio incomum e sua pouca disposição para a conversa.
Sobretudo, era bom estar ali sentada sozinha para tentar refletir sobre a confusão de
sentimentos relacionados ao visconde. Era uma tarefa difícil, que preferiria adiar, mas que
não podia.
Ainda que, na verdade, não houvesse muito sobre o que refletir. Tudo o que ela vira
recentemente conduzia sua mente a uma única direção: ela sabia que não podia mais se opor
ao desejo de Bridgerton de cortejar Edwina.
Nos últimos dias, ele se mostrara sensível, gentil e íntegro. E até mesmo heroico, pensou
com um sorriso se formando nos lábios ao se recordar do brilho nos olhos de Penelope
Featherington quando ele a salvara dos insultos de Cressida Cowper.
Era um homem dedicado à família.
Usara sua posição social e seu poder não para mandar nos outros, mas apenas para poupar
uma pessoa dos desaforos que estava sofrendo.
Ele a ajudara durante uma de suas crises de fobia com uma graciosidade e sensibilidade
que, agora que ela via a situação com a mente clara, a surpreendeu.
Podia ter sido um libertino e um patife – podia ainda ser um libertino e um patife – mas era
óbvio que seu comportamento não o definia como homem. E a única objeção de Kate a seu
casamento com Edwina era...
Ela engoliu em seco. Havia um enorme bolo em sua garganta.
Sua única objeção era porque, no fundo, ela queria o visconde para si.
Mas isso era egoísmo, e Kate passara a vida tentando não ser egoísta. Sabia que nunca
poderia pedir à irmã que não se casasse com Anthony por isso. Se Edwina soubesse que Kate
se sentia minimamente atraída pelo visconde, poria um fim à corte dele no mesmo instante.
E de que isso adiantaria? Anthony simplesmente encontraria outra mulher solteira e bela
para desposar. Havia muitas para escolher em Londres.
Considerando que ele não pediria Kate em casamento, o que ela ganharia ao impedir um
casamento entre ele e a caçula?
Nada, a não ser a agonia de vê-lo casado com a irmã. E isso diminuiria com o passar do
tempo, não é? Tinha que diminuir. Ela mesma dissera na noite anterior que o tempo curava
todas as feridas. Além disso, a dor seria a mesma de vê-lo casado com qualquer outra
mulher. A única diferença era que ela o veria em feriados, batizados e datas especiais.
Kate suspirou. Foi um suspiro longo, triste e cansado que lhe roubou todo o ar dos pulmões
e fez com que seus ombros se curvassem.
Seu coração doía.
Então uma voz entrou em seus ouvidos. A voz dele, baixa e suave, como uma espiral cálida
ao redor dela.
– Meu Deus, como você está séria.
Kate se levantou com tanta rapidez que a parte de trás de suas pernas bateram na beirada
do banco de pedra, fazendo-a se desequilibrar.
– Milorde – falou.
Ele curvou os lábios em uma insinuação de sorriso.
– Achei que poderia encontrá-la aqui.
Ela arregalou os olhos ao se dar conta de que ele a procurara de forma deliberada. Seu
coração começou a bater mais rápido, mas ao menos isso ela podia esconder dele.
Anthony relanceou o banco de pedra e fez um gesto para que ela ficasse à vontade para
voltar a se sentar.
– Na verdade, eu a vi da janela do meu quarto. Queria me certificar de que a senhorita
estava melhor – explicou em voz baixa.
Kate se sentou, a decepção invadindo-a. Ele estava apenas sendo educado. Claro que ele
estava apenas sendo educado. Como ela fora tola de sonhar sequer por um momento que
poderia haver algo mais. Ele era, Kate percebeu finalmente, uma pessoa gentil, e, como
qualquer pessoa gentil, queria ter certeza de que ela estava bem depois do que ocorrera na
noite anterior.
– Estou – respondeu. – Muito melhor. Obrigada.
Se ele reparou nas frases mal articuladas, não demonstrou.
– Fico feliz – retrucou ele, e se sentou a seu lado. – Fiquei muito preocupado com a
senhorita durante boa parte da noite.
O coração dela, que já batia muito rápido, se acelerou ainda mais.
– Ficou?
– Claro. Por que não ficaria?
Kate engoliu em seco. Lá estava, mais uma vez, aquele excesso de gentileza. Ah, ela não
duvidava que seu interesse e preocupação fossem verdadeiros. Apenas a magoava o fato de
serem despertados pela empatia natural a qualquer ser humano, e não por algum sentimento
especial que nutrisse por ela.
Não que ela esperasse algo diferente. Mas achava impossível não esperar alguma coisa.
– Lamento tê-lo incomodado tão tarde da noite – falou baixinho, principalmente por achar
que era algo que deveria dizer.
Na verdade, estava felicíssima por ele ter aparecido lá.
– Não seja tola – falou ele, empertigando-se um pouco e fitando-a com um olhar muito
severo. – Detesto pensar em você sozinha durante uma tempestade. Fico satisfeito por ter
estado lá para ajudá-la.
– Em geral, fico sozinha durante as tempestades – admitiu ela.
Anthony franziu a testa.
– Sua família não a conforta quando chove?
Ela parecia um pouco constrangida ao responder:
– Elas não sabem que eu sinto medo.
Ele assentiu devagar.
– Sei. Algumas vezes... – Anthony fez uma pausa para pigarrear, um recurso que empregava
com frequência quando não tinha certeza do que queria dizer. – Acho que você se sentiria
melhor se procurasse a ajuda de sua mãe e de sua irmã, mas eu sei... – Pigarreou de novo.
Sabia muito bem como era amar alguém da família e ainda assim não conseguir compartilhar
os medos mais profundos. Isso causava uma sensação de isolamento, de estar sozinho em
uma multidão barulhenta e amada.– Eu sei – falou de novo com a voz firme e suave – que,
muitas vezes, é difícil compartilhar nossos temores com aqueles que mais amamos.
Os olhos castanhos dela, sábios, calorosos e inegavelmente sensíveis, fixaram-se nos dele.
Por uma fração de segundo, Anthony teve a estranha sensação de que ela, de alguma forma,
sabia tudo sobre ele, cada detalhe desde o nascimento até sua certeza a respeito da própria
morte. Naquele pequeno instante em que Kate estava com o rosto voltado para ele e os
lábios entreabertos, pareceu que ela, mais que qualquer um que já colocara os pés sobre a
Terra, o conhecia verdadeiramente.
Era emocionante.
E, mais que isso, era apavorante.
– O senhor é um homem muito sábio – sussurrou ela.
Ele precisou de um momento para se lembrar do que estavam falando. Ah, claro, medos.
Ele conhecia os medos. Forçou um sorriso ao ouvir o elogio:
– Na maior parte do tempo, sou um homem muito tolo.
Ela balançou a cabeça.
– Não. Acho que, como se diz, o senhor acertou na mosca. Sem dúvida, eu não diria nada a
Mary nem a Edwina. Não quero perturbá-las.
Ela mordeu o lábio inferior por um momento. Foi um movimento rápido e engraçado que
ele considerou curiosamente sedutor.
– Na verdade – acrescentou Kate –, para ser bem sincera, confesso que meus motivos não
são tão altruístas. Uma grande parte de minha relutância em confessar meu medo reside no
desejo de não ser considerada fraca.
– Isso não é um pecado tão terrível – murmurou ele.
– Não se comparado a outros pecados, suponho – falou Kate com um sorriso. – Mas eu me
arriscaria a dizer que o senhor sofre do mesmo mal.
Ele não disse nada. Apenas assentiu.
– Todos temos papéis a desempenhar na vida – continuou ela –, e o meu sempre foi o de
ser forte e ajuizada. Esconder-me debaixo da mesa durante uma tempestade não é nenhuma
das duas coisas.
– Talvez sua irmã – retrucou ele baixinho – seja muito mais forte do que você pensa.
Ela olhou para ele. Será que ele estava tentando lhe dizer que se apaixonara por Edwina?
Ele já havia elogiado a graça e a beleza da irmã, porém nunca se referira à personalidade
dela.
Kate fitou-o enquanto sua coragem durou, mas não viu nada que revelasse seus
verdadeiros sentimentos.
– Eu não quis dizer que não era – respondeu, por fim. – Mas sou a irmã mais velha. Sempre
tive de ser forte por mim e por ela, enquanto Edwina precisava ser forte apenas por si
mesma. – Ela voltou a encará-lo e percebeu que ele a observava com tanta intensidade que
era quase como se pudesse ver sua alma. – Você também é o filho mais velho – continuou. –
Tenho certeza de que sabe o que quero dizer.
Ele concordou e seus olhos pareceram, ao mesmo tempo, divertidos e resignados.
– Sei exatamente.
Ela lhe sorriu em resposta, o tipo de sorriso compartilhado entre pessoas com experiências e
provações semelhantes. E, conforme ela se sentia cada vez mais à vontade perto dele, quase
como se pudesse se aconchegar no calor de seu corpo, sabia que não poderia adiar por mais
tempo sua tarefa.
Precisava lhe dizer que não se opunha mais ao casamento dele com Edwina. Não seria justo
com ninguém guardar esse segredo só porque queria mantê-lo para si ao menos por mais
alguns momentos ali no jardim.
Ela respirou fundo, levantou os ombros e se virou para ele.
Ele a olhou, ansioso. Era óbvio, afinal, que ela tinha algo a lhe dizer.
Kate abriu a boca, mas nenhum som saiu.
– O que foi? – indagou ele, parecendo bastante divertido.
– Milorde – falou ela.
– Anthony – corrigiu ele, com delicadeza.
– Anthony – repetiu ela, perguntando-se por que chamá-lo pelo primeiro nome tornava
tudo aquilo ainda mais difícil. – Eu preciso conversar sobre uma coisa com o senhor.
Ele sorriu.
– Eu percebi.
Os olhos dela fixaram-se inexplicavelmente em seu pé direito, que traçava meias-luas na
terra compactada do jardim.
– É... hã... sobre Edwina.
Anthony ergueu as sobrancelhas e seguiu o olhar dela até seu pé, que desistira das meias-
luas e agora traçava linhas onduladas.
– Há algo errado com sua irmã? – indagou ele, gentil.
Ela balançou a cabeça e ergueu os olhos de novo.
– Não, nada. Acho que ela está na sala escrevendo para nosso primo em Somerset. As
damas gostam de fazer isso, sabe?
Ele piscou.
– Fazer o quê?
– Escrever cartas. Eu não sou uma boa correspondente – disse ela, as palavras saindo de sua
boca com uma rapidez estranha –, porque nunca tenho paciência para me sentar à
escrivaninha e ficar imóvel por tempo suficiente para escrever uma carta inteira. Sem falar
que minha caligrafia é muito ruim. Mas a maioria das damas passa boa parte do dia
redigindo correspondências.
Ele tentou não sorrir.
– Você queria me dizer que sua irmã gosta de escrever cartas?
– Não, decerto que não – resmungou ela. – É que o senhor perguntou se ela estava bem e
eu falei que sim, aí lhe expliquei onde ela estava, e então nós fugimos completamente do
assunto e...
Ele pôs a mão sobre a dela, interrompendo-a.
– O que você precisa me dizer, Kate?
Ele observou com atenção quando ela enrijeceu os ombros e cerrou os dentes. Parecia estar
se preparando para uma tarefa abominável. Então ela falou, às pressas:
– Só queria que o senhor soubesse que não me oponho mais à sua corte a Edwina.
De repente, ele sentiu um vazio no peito.
– Eu... entendo – retrucou, não porque de fato entendesse, mas porque tinha que dizer
alguma coisa.
– Admito que tinha um grande preconceito em relação ao senhor – prosseguiu Kate
depressa –, mas tive a oportunidade de conhecê-lo melhor desde que cheguei a Aubrey Hall,
e em sã consciência não poderia permitir que o senhor continuasse a pensar que eu me
colocaria em seu caminho. Não seria... não seria justo de minha parte.
Anthony apenas a encarou, perdido como nunca se sentira. Havia, percebeu, algo
decepcionante na permissão para que se casasse com Edwina, considerando que ele passara a
maior parte dos últimos dois dias lutando contra o desejo sem sentido de beijá-la.
Por outro lado, não era isso que ele queria? Edwina seria a esposa perfeita.
Kate, não.
Edwina preenchia todos os critérios que ele estabelecera ao decidir-se, enfim, que era hora
de se casar.
Kate, não.
E ele sem dúvida não poderia flertar com Kate se quisesse se casar com Edwina.
Ela estava lhe oferecendo o que ele queria – exatamente o que ele queria, já que, com a
benção da irmã, Edwina se casaria com ele na próxima semana, se ele assim desejasse.
Então, por que diabo Anthony queria agarrá-la pelos ombros e sacudi-la, sacudi-la e
sacudi-la até que ela voltasse atrás em cada uma daquelas malditas palavras?
Era a tal centelha. A infeliz centelha que parecia nunca se apagar entre eles. Aquela
comichão irritante que ardia sempre que ela entrava num cômodo, ou suspirava, ou esticava
o pé. Aquele sentimento insistente de que ele podia, caso se permitisse, amá-la.
Era justamente o que ele mais temia.
Talvez a única coisa que temia.
Era irônico, mas a morte era a única coisa de que Anthony não tinha medo. A morte não
era assustadora para um homem solitário. O outro lado da vida não tinha o poder de
despertar nenhum temor em alguém que não tivesse ligações na Terra.
O amor era algo verdadeiramente sagrado, impressionante. Anthony sabia disso. Ele vira tal
sentimento todos os dias em sua infância, sempre que os pais trocavam olhares ou tocavam
as mãos um do outro.
Mas o amor era o inimigo dos mortais. Era a única coisa capaz de tornar o restante de seus
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