só conseguia dizer que as onças são bichos brabos e arteiros.
— Pintada. Dentão grande, pezão grande, cada unha! Medonha!
Padilha exigia que o outro repetisse a descrição e ia intercalando nela, por conta
própria, caracteres novos. Casim iro Lopes divergia; m as, confiado na ciência de
Padilha, capitulava — e ao cabo de m inutos a onça estava um anim al com o nunca
se viu.
— Ó Casim iro, você vai levar um papel ao vigário.
E escrevi a padre Silvestre agradecendo o interesse que ele tinha tom ado pela
viagem difícil de Margarida. Chegara dias antes e estava aloj ada num a casinha
cercada de bananeiras.
Entreguei a carta a Casim iro Lopes, tom ei o chapéu e fui fazer a m inha
segunda visita à preta. Desci a ladeira. Ao atravessar o paredão do açude,
am edrontei um a nuvem de m arrecas e j açanãs. Com as últim as chuvas a represa
aum entara m uito, os bancos de baronesa estavam com vontade de entupir o
sangradouro. A levada que ia ter ao descaroçador e à serraria transbordava.
Fechada a serraria, fechado o descaroçador. Dia perdido.
Encontrei Margarida sentada num a esteira, riscando os tij olos com carvões.
— Mãe Margarida, com o vai a senhora?
Tentou endireitar o espinhaço em perrado e, antes de lançar-m e os olhos
brancos, reconheceu-m e pela voz.
— Aqui gem endo e chorando, m eu filho, cheia de pecados.
Pecados! Antigam ente era um a santa. E agora, m iudinha, encolhidinha, com
pouco m ovim ento e pouco pensam ento, que pecados poderia ter? Com o estava
com a vista curta, falou sem levantar a cabeça, repetindo os conselhos que m e
dava quando eu era m enino. Um a fraqueza apertou-m e o coração, aproxim ei-m e,
sentei-m e na esteira, j unto dela.
— Mãe Margarida, procurei a senhora m uito tem po. Nunca m e esqueci. Foi
um a felicidade encontrá-la. E carecendo de algum a coisa, é dizer. Mande buscar o
que for necessário, m ãe Margarida, não se acanhe.
Olhou com espanto as cadeiras, a m esinha, a lâm pada elétrica, os m óveis do
quarto próxim o.
— Para que tanto luxo? Guarde os seus troços, que podem servir. Em cam a não
m e deito. E quem dá o que tem a pedir vem .
— Não faz m al, m ãe Margarida. Estej a sossegada, durm a sossegada. Faltando
lenha para o fogo, avise. Não deixe o fogo apagar-se, que as noites estão frias.
— É o que eu preciso, o fogo. O fogo e um pote.
Continuou a riscar figuras no chão. Curvada, um rosário de contas brancas e
azuis aparecia pelo cabeção aberto e batia-lhe nas pelancas dos peitos.
— Queria tam bém um tacho. O outro furtaram .
Lem brei-m e do tacho velho, que era o centro da pequenina casa onde
vivíam os. Mexi-m e em redor dele vários anos, lavei-o, tirei-lhe com areia e cinza
as m anchas de azinhavre — e dele recebi sustento. Margarida utilizou-o durante
quase toda a vida. Ou foi ele que a utilizou. Agora, decrépita, não podia ser doceira,
e aquele traste se tornava inteiram ente desnecessário.
— Está bem , m ãe Margarida, terá um tacho igual ao outro.
A
XI
m anheci um dia pensando em casar. Foi um a ideia que m e veio sem que
nenhum rabo de saia a provocasse. Não m e ocupo com am ores, devem ter
notado, e sem pre m e pareceu que m ulher é um bicho esquisito, difícil de
governar.
A que eu conhecia era a Rosa do Marciano, m uito ordinária. Havia conhecido
tam bém a Germ ana e outras dessa laia. Por elas eu j ulgava todas. Não m e sentia,
pois, inclinado para nenhum a: o que sentia era desej o de preparar um herdeiro
para as terras de S. Bernardo.
Tentei fantasiar um a criatura alta, sadia, com trinta anos, cabelos pretos — m as
parei aí. Sou incapaz de im aginação, e as coisas boas que m encionei vinham
destacadas, nunca se j untando para form ar um ser com pleto. Lem brei-m e de
senhoras m inhas conhecidas: d. Em ília Mendonça, um a Gam a, a irm ã de Azevedo
Gondim , d. Marcela, filha do dr. Magalhães, j uiz de direito.
Nesse ponto surgiu-m e um pequeno contratem po. Um a tarde surpreendi no
oitão da capela (a capela estava concluída; faltava pintura) Luís Padilha
discursando para Marciano e Casim iro Lopes:
— Um roubo. É o que tem sido dem onstrado categoricam ente pelos filósofos e
vem nos livros. Vej am : m ais de um a légua de terra, casas, m ata, açude, gado, tudo
de um hom em . Não está certo.
Marciano, m ulato esbodegado, regalou-se, entronchando-se todo e m ostrando
as gengivas banguelas:
— O senhor tem razão, seu Padilha. Eu não entendo, sou bruto, m as perco o
sono assuntando nisso. A gente se m ata por causa dos outros. É ou não é, Casim iro?
Casim iro Lopes franziu as ventas, declarou que as coisas desde o com eço do
m undo tinham dono.
— Qual dono! gritou Padilha. O que há é que m orrem os trabalhando para
enriquecer os outros.
Saí da sacristia e estourei:
— Trabalhando em quê? Em que é que você trabalha, parasita, preguiçoso,
lam baio?
— Não é nada não, seu Paulo, defendeu-se Padilha, trêm ulo. Estava aqui
desenvolvendo um as teorias aos rapazes.
Atirei um a porção de desaforos aos dois, m andei que arrum assem a trouxa,
fossem para a casa do diabo.
— Em m inha terra não, acabei j á rouco. Puxem ! Das cancelas para dentro
ninguém m ij a fora do caco. Peguem as suas burundangas e danem -se. Com um
professor assim , estou bonito. Dou por visto o que este sem -vergonha ensina aos
alunos.
Mais tarde, porém , cheio de em brom ações e lam úrias, Padilha j urou por todos
os santos que a escola funcionava norm alm ente e fazia cortar coração deixar tantas
crianças sem o pão do saber. Quanto às teorias, aquilo era só para m atar tem po e
em pulhar o Casim iro.
— Eu m eto a m ão em cum buco? Sou lá capaz de propagar ideias subversivas?
No outro dia pela m anhã, choram ingando, balbuciando peditórios, a Rosa, com
cinco filhos (três agarrados às saias, um nos braços, outro no bucho), atracou-m e
no pom ar. E eu, que não tenho grande autoridade j unto dela, sosseguei-a:
— Mande-m e cá o Marciano, aquele cachorro. Até logo, vou ver.
À noite reuni Marciano e Padilha na sala de j antar, berrei um serm ão com prido
para dem onstrar que era eu que trabalhava para eles. Mas atrapalhei-m e e
contentei-m e com inj uriá-los:
— Mal-agradecidos, estúpidos.
Am unhecaram , e baixei a pancada:
— Juízo de galinha. Em barcando em canoa furada! Tontos.
Dei-lhes conselhos. Encontrando m acieza, Luís Padilha quis discutir; tornei a
zangar-m e, e ele se convenceu de que não tinha razão. Marciano encolhia-se,
levantava os om bros e intentava m eter a cabeça dentro do corpo. Parecia um
cágado. Padilha roía as unhas.
— Por esta vez passa. Mas se m e constar que vocês andam com saltos de pulga,
cham o o delegado de polícia, que isto aqui não é a Rússia, estão ouvindo? E
sum am -se.
Sum iram -se. Ficou-m e um resto de indignação, depois serenei.
— Faz de conta que não houve nada.
Lorotas. Todos esses m alucos dorm em dem ais, falam à toa.
— Marciano, coitado, nem por isso. Trata bem do gado, é m arido da Rosa.
Quanto ao Padilha, eu sentia prazer em hum ilhá-lo m ostrando-lhe os
m elhoram entos que introduzia na propriedade.
E recom ecei a elaborar m entalm ente a m ulher a que m e referi no princípio
deste capítulo. Revistei a Mendonça, a Gam a, a irm ã do Gondim (eu nem sabia
com o se cham ava a Gondim ) e d. Marcela do dr. Magalhães. D. Marcela era um
pancadão. Cada olho! O que tinha de ruim era usar m uita tinta no rosto e m uitos ss
na conversa. Paciência. Perfeito só Deus.
Bam beava para m e dirigir ao dr. Magalhães quando Costa Brito voou para cim a
de m im , num a carta, com a intenção de avançar-m e em duzentos m il-réis.
Costa Brito tinha virado. A Gazeta, que sem pre louvara furiosam ente o governo,
fugira para a oposição, por causa de um em prego de deputado estadual, e achava a
adm inistração pública desorganizada, entregue a hom ens incom petentes. A nós que
votávam os com o partido dom inante, m as não éram os peixe nem carne —
queixum es, nariz torcido, m odos de enj oo. Da m inha últim a viagem à capital, em
troca de um a notícia besta de quatro linhas, o diretor da Gazeta ainda m e lam bera
cinquenta m il-réis, no café, bebendo cervej a com indignação:
— Querem j ornal de graça. Para o inferno! A vida inteira escrevendo com o
um condenado, m entindo, para esses m oços subirem ! Só a despesa que se tem ! só
o preço do papel! E na eleição, coice. Nem um a porcaria, um a desgraça que
qualquer prefeito analfabeto consegue com facilidade. Querem elogios. Está aqui
para eles.
Eu não precisava do Brito, m as passei o dinheiro, em atenção a serviços
prestados anteriorm ente e porque não gosto de questões com gente de im prensa.
Depois aludi à crise e dei a entender que não continuava a sangrar.
Mas o Brito tem barriga de em a: desprezou o aviso e m andou-m e diversas
cartas, as prim eiras com choro, as últim as com exigências. Essa que m e vinha
em brulhar os planos de casam ento trazia am eaças. Recusei o cobre, num
telegram a: “Inútil insistir. Fartíssim o.”
Tinha graça viver aqui suando para sustentar um literato. Eu era pai dele?
— Quem pariu m ateu que o balance. Um a ou outra facada razoável, com
m oderação, vá. Am eaças, não. Chantagem , não.
Que diabo diria ele contra m im na folha? Não sendo funcionário público, as
m inhas relações com o partido lim itavam -se a aliciar eleitores, entregar-lhes a
chapa oficial e contribuir para m úsica e foguetes nas recepções do governador. O
veneno da Gazeta não m e atingia. Salvo se ela bulisse com os m eus negócios
particulares. Nesse caso só m e restava pegar um pau e quebrar as costelas do Brito.
Recalquei as ideias violentas e esforcei-m e por trazer de novo ao espírito as
tintas e os ss de d. Marcela. Vieram . Mas afastavam -se de quando em quando — e
nos intervalos apareciam Marciano, a Rosa com os m eninos, Luís Padilha e Costa
Brito.
A
XII
questão do Pereira estava dorm indo no cartório, esperando que o j uiz de
direito desse um a penada nos autos. João Nogueira disse-m e isso um a tarde.
Eu então, ligando o caso do Pereira aos predicados de d. Marcela, desci no
dia seguinte à cidade, resolvido a visitar o dr. Magalhães.
Encontrei-o à noitinha no salão, que servia de gabinete de trabalho, com a filha
e três visitantes: João Nogueira, um a senhora de preto, alta, velha, m agra, outra
senhora m oça, loura e bonita.
Estavam calados, em dois grupos, os hom ens separados das m ulheres.
O dr. Magalhães é pequenino, tem um nariz grande, um pince-nez e por detrás
do pince-nez uns olhinhos risonhos. Os beiços, delgados, apertam -se. Só se
descolam para o dr. Magalhães falar a respeito da sua pessoa. Tam bém quando
entra neste assunto, não para.
Naquele m om ento, porém , com o j á disse, conservavam -se todos em silêncio.
D. Marcela sorria para a senhora nova e loura, que sorria tam bém , m ostrando os
dentinhos brancos. Com parei as duas, e a im portância da m inha visita teve um a
redução de cinquenta por cento.
Larguei, pois, d. Marcela e procurei, por m eios indiretos, arrancar do j uiz as
linhas indispensáveis ao advogado.
O dr. Magalhães passou a m ão pela testa e perguntou:
— Quais são os j ornais que o senhor assina? Respondi que assinava revistas de
agricultura, a folha do partido, o Cruzeiro e a Gazeta. Elogiei Azevedo Gondim e
ataquei o Brito.
— Um caradura, não é?
O dr. Magalhães am oitou-se. João Nogueira foi à estante de duas prateleiras,
tirou um livro, voltou a sentar-se e com eçou a ler.
Houve no outro lado da sala um sussurro entrecortado de risinhos.
Necessitando pensar, pensei que é esquisito este costum e de viverem os m achos
apartados das fêm eas. Quando se entendem , quase sem pre são levados por m otivos
que se referem ao sexo. Vem daí talvez a m alícia excessiva que há em torno de
coisas feitas inocentem ente. Dirij o-m e a um a senhora, e ela se encolhe e se
arrepia toda. Se não se encolhe nem se arrepia, um suj eito que está de fora j ura
que há safadeza no caso.
— Não tem aparecido ultim am ente no cinem a, hem ? disse em voz alta a
senhora de preto.
— Faz quinze dias, d. Glória, respondeu d. Marcela. Acho que faz quinze dias. Ó
papai, quanto tem po faz que nós fom os ao cinem a?
O dr. Magalhães calculou. Tirou do bolso um cigarro, dividiu-o em duas partes,
transform ou um a delas num cigarrinho fino, acendeu-o:
— Duas sem anas.
— É isso m esm o, quinze dias.
— Não, discordou o dr. Magalhães, duas sem anas. Você está equivocada.
— Duas sem anas não são quinze dias? perguntou d. Marcela.
— Não. Duas sem anas são catorze dias.
D. Marcela não se convenceu:
— Sem pre ouvi dizer que duas sem anas são quinze dias.
— Eu tam bém tenho ouvido, confessou o dr. Magalhães. Tenho ouvido até
m uitas vezes. Mas é engano. Um a sem ana tem sete dias. Sete e sete não são
catorze? E então? São catorze.
João Nogueira soltou o livro. Talvez d. Marcela contasse com o dia do cinem a.
— É possível, acedeu o dr. Magalhães. Não contando, são catorze.
— Mas contando, são quinze, gritou d. Marcela.
— É bom não contar, aconselhou o dr. Magalhães.
Despertaram todos, e a lourinha fez um m ovim ento para se levantar.
— Muito cedo, m urm urou d. Marcela.
A senhora de preto continuou sentada e entrou a discorrer sobre rom ances. D.
Marcela tinha acabado um , de aventuras. Ia ver se se lem brava do enredo. Mas
enganchou-se e não acertou com os nom es das personagens. Recom eçou, tornou a
enganchar-se:
— Um rom ance que faz gosto, d. Glória.
— Eu não gosto de literatura, disse o dr. Magalhães. Folheei algum as obras
antigam ente. Hoj e não. Desconheço tudo isso. Sou apenas j uiz, pchiu! j uiz.
D. Marcela estava quase acertando com o enredo do rom ance de aventuras. D.
Glória escutava. A loura tinha a cabecinha inclinada e as m ãozinhas cruzadas,
lindas m ãos, linda cabeça.
— Quando j ulgo, anunciava o dr. Magalhães, abstraio-m e, afasto os
sentim entos.
— Estive com entando isso ontem à tarde com o dr. Nogueira, atalhei.
O dr. Magalhães agradeceu.
— Para proceder assim é necessário ter independência. Eu tenho
independência. Que é que eles podem fazer com igo? Não preciso deles.
Ignoro a que pessoas se referia o dr. Magalhães. João Nogueira tocou-lhe no
om bro e cochichou. Com preendi que se tratava do negócio do Pereira.
Levantei-m e, arredei-m e, para não prej udicar a integridade do j uiz e para
desem burrar-m e um pouco. Fui à j anela, acendi o cachim bo.
D. Marcela ia term inando a narração do rom ance. O advogado estava
satisfeito. Apertei nos dentes o cachim bo e esfreguei as m ãos com força:
— Ora m uito bem . Que m e dizem os senhores da chapa do partido? Não
conheço os candidatos, m as suponho que há uns dois ou três oradores arroj ados.
— O senhor acredita nisso? perguntou João Nogueira.
— Em quê?
— Eleições, deputados, senadores.
Retraí-m e, indeciso, porque não tenho ideias seguras a respeito dessas coisas.
— A gente se acostum a com o que vê. E eu, desde que m e entendo, vej o
eleitores e urnas. Às vezes suprim em os eleitores e as urnas: bastam livros. Mas é
bom um cidadão pensar que tem influência no governo, em bora não tenha
nenhum a. Lá na fazenda o trabalhador m ais desgraçado está convencido de que, se
deixar a peroba, o serviço em perra. Eu cultivo a ilusão. E todos se interessam .
João Nogueira refletiu um instante:
— O que eu acho é que os deputados e os senadores são inúteis e com em
dem ais.
Ia responder, m as notei que o dr. Magalhães se m exia. Fiquei com a resposta
nas goelas. Ele conteve-se, e estivem os um m inuto nesse j ogo, cada um esperando
pelo outro. Observei então que a m ocinha loura voltava para nós, atenta, os grandes
olhos azuis.
De repente conheci que estava querendo bem à pequena. Precisam ente o
contrário da m ulher que eu andava im aginando — m as agradava-m e, com os
diabos. Miudinha, fraquinha. D. Marcela era bichão. Um a peitaria, um pé de rabo,
um toitiço!
Com o o silêncio se prolongasse, repliquei ao Nogueira, quase m e dirigindo à
lourinha:
— Existem coisas inúteis que nós conservam os. Eu conservo este cachim bo,
que é inútil e até m e faz m al.
Enchi o cachim bo:
— Que, para ser franco, nem sei se ele é inútil. Talvez não sej a. Por isso vou às
eleições. O senhor com certeza não quer acabar com as leis.
O dr. Magalhães, para quem a lei escrita é com o o ar, escandalizou-se:
— Oh!
— Não, tornou João Nogueira. Que essas do congresso ordinariam ente não
prestam . O que é bom acabar é o congresso. As leis deviam ser feitas por
especialistas.
— Ah! suspirou o dr. Magalhães, aliviado. Leis ou decretos, desde que
estivessem no papel, em form a, era tudo o m esm o. Cruzou as pernas, balançou a
cabeça, estirou o beiço e levantou um dedo:
— O que precisam os é um a elite.
— Perfeitam ente, apoiou João Nogueira, um a oligarquia.
Mas o dr. Magalhães em birrou com o nom e:
— Ah! não.
— Ora essa! exclam ou João Nogueira. Só podem os ter no governo um a elite de
poucos indivíduos. É oligarquia.
— Mas que é que a oposição faz senão berrar nos j ornais e nos m eetings contra
isso? perguntei.
— A oposição não sabe o que diz. Nós tem os lá oligarquia? Tem os um a
quantidade enorm e de cavadores no poder. Só os congressistas! E os m inistros, os
presidentes, os governadores, os secretários, os políticos do sul. Muito dente roendo
o tesouro. E que súcia! Vej a os nossos representantes no congresso federal. Que
diz, seu Magalhães?
O dr. Magalhães não dizia nada.
— Nunca leio política. Sou apenas j uiz. Estudo, com pulso os m eus livros, pchiu!
Acordo cedo, tom o um a xícara de café, pequena, faço a barba, vou ao banho.
Depois passeio pelo quintal, volto, distraio-m e com as revistas e alm oço, pouco, por
causa do estôm ago. Descanso um a hora, escrevo, consulto os m estres. Janto, dou
um giro pela cidade, à noite recebo os am igos, quando aparecem , durm o.
D. Glória não se conteve:
— Obra com acerto, é preciso preservar a saúde.
João Nogueira deu ao rosto um a expressão safada:
— Sem dúvida, é preciso preservá-la. Mas, com o íam os dizendo, isto nunca foi
oligarquia. Há gente dem ais.
— Pois se, havendo tanta, a oposição grita, im agine se o núm ero fosse m enor.
Aí é que a gritaria não findava.
— Por quê?
— Porque m uitos dos que estão em cim a estariam em baixo, o
descontentam ento seria m aior.
Com o o advogado se aproxim asse da j anela, soprei-lhe ao ouvido:
— Ele prom eteu o despacho?
João Nogueira afirm ou com um gesto. Despedi-m e:
— Não concordo com o senhor não, dr. Nogueira. A república vai bem . Só a
j ustiça que tem os... Reflita.
— Eu por m im sou apenas j uiz, disse o dr. Magalhães. Estudo, consulto os bons
autores...
Dem orei-m e até que ele term inasse, despedi-m e pela segunda vez e saí.
Percorri a cidade, bestando, im pressionado com os olhos da m ocinha loura e
esperando um acaso que m e fizesse saber o nom e dela. O acaso não veio, e decidi
procurar João Nogueira, inform ar-m e do nom e, posição, fam ília, as
particularidades necessárias a quem pretende dar um a cabeçada séria. Às dez
horas fui à redação do Cruzeiro, m as só encontrei Arquim edes, com pondo. Estive
no bilhar do Sousa. Não havia fregueses; apenas um , m eio golado.
— O dr. Nogueira deve estar em casa da Ernestina.
Eu não sabia onde era a casa da Ernestina. Cerca de m eia-noite descobri o
advogado no hotel, discutindo poesia com Azevedo Gondim . Escutei um a hora,
desej oso de instruir-m e. Não m e instruí.
— Dr. Nogueira, faz obséquio? É um instante, Gondim .
Mas tive acanham ento de tocar naquele assunto delicado, receei tornar-m e
ridículo, im aginei que podia o Nogueira andar tam bém arrastando a asa para a
lourinha e, sentindo um a espécie de despeito, pedi inform ações m inuciosas sobre o
processo do Pereira.
T
XIII
ornei a encontrar a m ocinha loura. Eu voltava da capital, aonde tinha ido
por causa do sem -vergonha do Brito.
A coisa se deu assim . Depois do m eu telegram a (lem bram -se: o
telegram a em que recusei duzentos m il-réis àquele pirata), a Gazeta entrou a
difam ar-m e. A princípio foram m ofinas cheias de rodeios, com m uito vinagre, em
seguida o ataque tornou-se claro e saíram dois artigos furiosos em que o nom e m ais
doce que o Brito m e cham ava era assassino. Quando li essa infâm ia, arm ei-m e de
um rebenque e desci à cidade.
— O que o senhor deve fazer é processá-lo, aconselhou João Nogueira. É fácil
m etê-lo na cadeia.
— E querendo defender-se, tem cá o Cruzeiro, insinuou Azevedo Gondim . Pode
escrever. Ou então escrevo eu, ou escreve o Nogueira. Infelizm ente o Cruzeiro
circula pouco. Mas é o que tem os. Disponha.
— Obrigado, Gondim ; obrigado, dr. Nogueira. Depois resolvem os. Não vale a
pena quebrar a cabeça com um a tolice dessa.
E ficam os no hotel até onze da noite, j ogando dom inó a tostão o tento.
No outro dia tom ei o trem , ferrei no sono e acordei às dez horas, na estação
central. Logo ali, com o rebenque debaixo do braço, com ecei a exam inar as caras.
Subi a rua do Com ércio, dobrei o Livram ento, a Alegria, parei em frente à
Gazeta. Olhei um instante, pelas grades, as caixetas im undas, entrei, atravessei a
sala de com posição, a de im pressão e, lá no fundo, desem boquei na redação, onde
só estava um rapaz am arelo preparando telegram as com os j ornais do Recife da
véspera. O diretor tinha ido a Paj uçara.
— Obrigado.
Voltei pelo m esm o cam inho e estive um a hora no relógio oficial, observando os
passageiros dos bondes de Ponta-da-Terra. Afinal surgiu o focinho de rato do Brito.
— Olá!
Recuou, tentou retom ar o estribo, m as o carro j á ia longe. Franziu a testa com
dignidade. Vendo o rebenque, em palideceu e gaguej ou:
— Bons olhos o vej am . Que sorte! Sim senhor, precisam os conversar.
Agarrei-lhe o braço, puxei-o para j unto do relógio e disse-lhe, quase
cochichando para não espantar os transeuntes:
— Então, seu filho de um a égua, esses artigos...
— Aquilo é m atéria paga, explicou o Brito. Seção livre, não viu logo? Vam os à
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