eu estava doido.
Padilha recebeu os vinte contos (m enos o que m e devia e os j uros), com prou
um a tipografia e fundou o Correio de Viçosa, folha política, noticiosa,
independente, que teve apenas quatro núm eros e foi substituída pelo Grêm io
Literário e Recreativo. Azevedo Gondim elaborou os estatutos, e na prim eira sessão
de assem bleia geral Padilha foi aclam ado sócio benem érito e presidente honorário
perpétuo.
Relativam ente à agricultura Luís Padilha acuou, esperando uns catálogos de
m áquinas, que nunca chegaram . Com eçou a fugir de m im . Se m e encontrava,
encolhia-se, fingia-se distraído, em bicava o chapéu. No vencim ento da prim eira
letra adoeceu. Fui visitá-lo e achei-o escondido na sala de j antar, j ogando gam ão
com João Nogueira. Vendo-m e, atrapalhou-se tanto que os dedos m agros,
queim ados, de unhas roídas, trem iam chocalhando os dados.
Daí em diante encantou-se. Disseram -m e que tinha ensebado as canelas para S.
Bernardo.
— Que estará fazendo por lá?
A últim a letra se venceu num dia de inverno. Chovia que era um deus nos
acuda. De m anhã cedinho m andei Casim iro Lopes selar o cavalo, vesti o capote e
parti. Duas léguas em quatro horas. O cam inho era um atoleiro sem fim . Avistei as
cham inés do engenho do Mendonça e a faixa de terra que sem pre foi m otivo de
questão entre ele e Salustiano Padilha. Agora as cercas de Bom -Sucesso iam
com endo S. Bernardo.
Dirigi-m e à casa-grande, que parecia m ais velha e m ais arruinada debaixo do
aguaceiro. Os m uçam bês não tinham sido cortados. Apeei-m e e entrei, batendo os
pés com força, as esporas tinindo. Luís Padilha dorm ia na sala principal, num a rede
encardida, insensível à chuva que açoitava as j anelas e às goteiras que alagavam o
chão. Balancei o punho da rede. O ex-diretor do Correio de Viçosa ergueu-se,
atordoado:
— Por aqui? Com o vai?
— Bem , agradecido.
Sentei-m e num banco e apresentei-lhe as letras. Padilha, com um
estrem ecim ento de repugnância, m udou a vista:
— Eu tenho pensado nesse negócio, tenho pensado m uito. Até perdi o sono.
Ontem am anheci com vontade de lhe aparecer, para com binar. Mas não pude.
Sem elhante chuva...
— Deixem os a chuva.
— Estou em dificuldades sérias. Ia propor um a prorrogação com j uros
acum ulados. Recurso não tenho.
— E a fábrica, os arados?
Luís Padilha respondeu am biguam ente:
— Um inverno deste esculham ba tudo. Recurso não tenho, m as o negócio está
garantido. A prorrogação...
— Não vale a pena. Vam os liquidar.
— Ora liquidar! Já não lhe disse que não posso? Salvo se quiser aceitar a
tipografia.
— Que tipografia! Você é besta?
— É o que tenho. Cada qual se rem edeia com o que tem . Devo, não nego, m as
com o hei de pagar assim de faca no peito? Se m e virarem hoj e de cabeça para
baixo, não cai do bolso um níquel. Estou liso.
— Isso não são m aneiras, Padilha. Olhe que as letras se venceram .
— Mas se não tenho! Hei de furtar? Não posso, está acabado.
— Acabado o quê, m eu sem -vergonha! Agora é que vai com eçar. Tom o-lhe
tudo, seu cachorro, deixo-o de cam isa e ceroula.
O presidente honorário perpétuo do Grêm io Literário e Recreativo assustou-se:
— Tenha paciência, seu Paulo. Com barulho ninguém se entende. Eu pago.
Espere uns dias. A dívida só é ruim para quem deve.
— Não espero nem um a hora. Estou falando sério, e você com tolices!
Despropósito não! Quer resolver o caso am igavelm ente? Faça preço na
propriedade.
Luís Padilha abriu a boca e arregalou os olhos m iúdos. S. Bernardo era para ele
um a coisa inútil, m as de estim ação: ali escondia a am argura e a quebradeira,
m atava passarinhos, tom ava banho no riacho e dorm ia. Dorm ia dem ais, porque
receava encontrar o Mendonça.
— Faça o preço.
— Aqui entre nós, m urm urou o desgraçado, sem pre desej ei conservar a
fazenda.
— Para quê? S. Bernardo é um a pinoia. Falo com o am igo. Sim senhor, com o
am igo. Não tenciono ver um cam arada com a corda no pescoço. Esses bacharéis
têm fom e canina, e se eu m andar o Nogueira tocar fogo na binga, você fica de
saco nas costas. Despesa m uita, Padilha. Faça preço. Debatem os a transação até o
lusco-fusco. Para com eçar, Luís Padilha pediu oitenta contos.
— Você está m aluco! Seu pai dava isto ao Fidélis por cinquenta. E era caro.
Hoj e que o engenho caiu, o gado dos vizinhos rebentou as porteiras, as casas são
taperas, o Mendonça vai passando as unhas nos babados...
Perdi o fôlego. Respirei e ofereci trinta contos. Ele baixou para setenta e
m udam os de conversa. Quando tornam os à barganha, subi a trinta e dois. Padilha
fez abate para sessenta e cinco e j urou por Deus do céu que era a últim a palavra.
Eu tam bém asseverei que não pingava m ais um vintém , porque não valia. Mas
lancei trinta e quatro. Padilha, por cam aradagem , consentiu em receber sessenta.
Discutim os duas horas, repetindo os m esm os em belecos, sem nenhum resultado.
Resolvi discorrer sobre as m inhas viagens ao sertão. Depois, com indiferença,
insisti nos trinta e quatro contos e obtive m odificação para cinquenta e cinco.
Mostrei generosidade: trinta e cinco. Padilha endureceu nos cinquenta e cinco, e eu
inj uriei-o, declarei que o velho Salustiano tinha deitado fora o dinheiro gasto com
ele, no colégio. Cheguei a am eaçá-lo com as m ãos. Recuou para cinquenta.
Avancei a quarenta e afirm ei que estava roubando a m im m esm o. Nesse ponto
cada um puxou para o seu lado. Finca-pé. Cham ei em m eu auxílio o Mendonça,
que engolia a terra, o oficial de j ustiça, a avaliação e as custas. O infeliz,
apavorado, desceu a quarenta e oito. Arrependi-m e de haver arriscado quarenta:
não valia, era um roubo. Padilha escorregou a quarenta e cinco. Firm ei-m e nos
quarenta. Em seguida roí a corda:
— Muito por baixo. Pindaíba.
Descontado o que ele m e devia, o resto seria dividido em letras. Padilha
endoideceu: chorou, entregou-se a Deus e desm anchou o que tinha feito. Viesse o
advogado, viesse a j ustiça, viesse a polícia, viesse o diabo. Tom assem tudo. Um
fum o para o acordo! Um fum o para a lei!
— Eu m e im porto com lei? Um fum o!
Tinha m eios. Perfeitam ente, não andava com a cara para trás. Tinha m eios. Ia
à tribuna da im prensa, reclam ar os seus direitos, protestar contra o esbulho. Afetei
com iseração e prom eti pagar com dinheiro e com um a casa que possuía na rua.
Dez contos. Padilha botou sete contos na casa e quarenta e três em S. Bernardo.
Arranquei-lhe m ais dois contos: quarenta e dois pela propriedade e oito pela casa.
Arengam os ainda m eia hora e findam os o aj uste.
Para evitar arrependim ento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a
noite. No outro dia, cedo, ele m eteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi
a dívida, os j uros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e
cinquenta m il-réis. Não tive rem orsos.
—O
V
senhor andou m al adquirindo a propriedade sem m e consultar, gritou
Mendonça do outro lado da cerca.
— Por quê? O antigo proprietário não era m aior?
— Sem dúvida, respondeu Mendonça avançando as barbas brancas e o nariz
curvo. Mas o senhor devia ter-se inform ado antes de com prar questão.
— Eu por m im não desej o questionar. Creio que nos entendem os.
— Depende do senhor. Os lim ites atuais são provisórios, j á sabe? É bom
esclarecerm os isto. Cada qual no que é seu. Não vale a pena consertar a cerca. Eu
vou derrubá-la para acertarm os onde deve ficar.
Ponderei ao velho Mendonça que ele j á tinha encolhido m uito as terras de S.
Bernardo. Pedi-lhe que m ostrasse os seus papéis. Não sendo possível acordo, era
m elhor vir o advogado e vir o agrim ensor.
— Ótim o! Arranj ava-se com os tabeliães e m etia-m e no bolso. Mas eu não vou
nisso. Derruba-se a cerca.
Contei rapidam ente os caboclos que iam com ele, contei os m eus e asseverei
que a cerca não se derrubava. Explicações, com bons m odos, sim ; gritos não.
E abrandei, m eio arrependido, porque não m e convinha um a briga com
Mendonça, hom em reim oso. O que eu não queria era baixar a crista logo no
prim eiro encontro.
Casim iro Lopes deu um passo; toquei-lhe no om bro e ele recuou. Mendonça
com preendeu a situação, passou a tratar-m e com am abilidade excessiva. Paguei
na m esm a m oeda, e com o ele precisasse de uns cedros que havia perto de Bom -
Sucesso, ofereci-lhe os cedros. Recusou, propôs trocá-los por novilhas zebus.
Declarei que não tencionava criar gado indiano, falei com entusiasm o sobre o
lim osino e o Schwitz. Mendonça desdenhava as raças finas, que com em dem ais e
não aguentam o carrapato: engordava garrotes para açougue.
Insisti no oferecim ento da m adeira, e ele estrem eceu. A nossa conversa era
seca, em voz rápida, com sorrisos frios. Os caboclos estavam desconfiados. Eu
tinha o coração aos baques e avaliava as consequências daquela falsidade toda.
Mendonça coçava a barba.
— Relativam ente aos lim ites, j ulgo que podem os resolver isso depois, com
calm a.
— Perfeitam ente, concordou Mendonça.
Despedim o-nos. Continuei a estirar o aram e farpado e a substituir os gram pos
velhos por outros novos. Mendonça, de longe, ainda se virou, sorrindo e pregando-
m e os olhos verm elhos.
À tarde, quando voltei para casa, Casim iro Lopes acom panhou-m e,
carrancudo. Com o eu não dissesse nada, tossiu, parou. Encostei-m e a um lim oeiro
e espalhei ideias ruins que m e perseguiam :
— Am anhã traga quatro hom ens, venha aterrar este charco. E lim pe aqui o
riacho para as águas não entrarem na várzea.
— Só?
Pensei que, em vez de aterrar o charco, era m elhor m andar cham ar m estre
Caetano para trabalhar na pedreira. Mas não dei contraordem , coisa prej udicial a
um chefe.
— Só? tornou a perguntar Casim iro Lopes.
Apanhei o pensam ento que lhe escorregava pelos cabelos em aranhados, pela
testa estreita, pelas m açãs enorm es e pelos beiços grossos. Talvez ele tivesse razão.
Era preciso m exer-m e com prudência, evitar as m oitas, ter cuidado com os
cam inhos. E aquela casa esburacada, de paredes caídas...
Decidi convidar m estre Caetano e cavouqueiros.
Diabo! Agitei a cabeça e afastei um plano m al esboçado.
— Por enquanto, só.
N
VI
aquele segundo ano houve dificuldades m edonhas. Plantei m am ona e
algodão, m as a safra foi ruim , os preços baixos, vivi m eses aperreado,
vendendo m acacos e fazendo das fraquezas forças para não ir ao fundo.
Trabalhava danadam ente, dorm indo pouco, levantando-m e às quatro da m anhã,
passando dias ao sol, à chuva, de facão, pistola e cartucheira, com endo nas horas
de descanso um pedaço de bacalhau assado e um punhado de farinha. À noite, na
rede, explicava porm enores do serviço a Casim iro Lopes. Ele acocorava-se na
esteira e, apesar da fadiga, ouvia atento. Às vezes Tubarão ladrava lá fora e nós
aguçávam os o ouvido.
Um a feita distinguim os passos em redor da casa. Olhei por um a fresta na
parede. A escuridão era grande, m as percebi um vulto. E as pisadas continuaram .
O cachorro latiu e rosnou.
— Mais esta! cochichou Casim iro Lopes.
No dia seguinte visitei Mendonça, que m e recebeu inquieto. Conversam os sobre
tudo, especialm ente sobre votos. Dirigi am abilidades às filhas dele, duas solteironas,
e lam entei a m orte da m ulher, excelente pessoa, caridosa, am iga de servir, sim
senhor. Mendonça, espantado, perguntou onde eu tinha visto d. Alexandrina.
— Faz tem po. Fui m orador do velho Salustiano. Arrastei a enxada, no eito.
As m oças acanharam -se, m as o pai achou que eu procedia com honestidade
revelando francam ente a m inha origem . Depois queixou-se dos vizinhos (nenhum
se dava com ele).
— Há por aí um as pestes que principiaram com o o senhor e arrotam
im portância. Trabalhar não é desonra. Mas se eu tivesse nascido na poeira, por que
havia de negar?
Tentou envergonhar-m e:
— Trabalhador alugado, hem ? Não se incom ode. O Fidélis, que hoj e é senhor
de engenho, e conceituado, furtou galinhas.
Enquanto ele tesourava o próxim o, observei-o. Pouco a pouco ia perdendo os
sinais de inquietação que a m inha presença lhe tinha trazido. Parecia à vontade
catando os defeitos dos vizinhos e esquecido do resto do m undo, m as não sei se
aquilo era tapeação. Eu m e insinuava, discutindo eleições. É possível, porém , que
não conseguisse enganá-lo convenientem ente e que ele fizesse com igo o j ogo que
eu fazia com ele. Sendo assim , acho que representou bem , pois cheguei a
capacitar-m e de que ele não desconfiava de m im . Ou então quem representou
bem fui eu, se o convenci de que tinha ido ali politicar. Se ele pensou isso, era
doido. Provavelm ente não pensou. Talvez tenha pensado depois de iludir-se e j ulgar
que estava sendo sincero. Foi o que m e sucedeu. Repetindo as m esm as palavras, os
m esm os gestos, e ouvindo as m esm as histórias, acabei gostando do proprietário de
Bom -Sucesso.
Continuava a observá-lo, m as a observação era instintiva. Despertou.
Bocej ando, m ostrando os caninos am arelos e pontudos, Mendonça bateu palm as e
esfarelou um m osquito. Mosquito com o bala! Tinha passado um a noite horrível.
Respondi que havia dorm ido com o pedra. Os pântanos em S. Bernardo estavam
aterrados, não restava um m osquito para rem édio. Arrependi-m e de ter falado
precipitadam ente. Mendonça exam inou-m e de través, e suponho que não ficou
satisfeito. Tornou a referir-se à noite de insônia, e eu repeti que tinha dorm ido.
Pouco seguro, com a cara m exendo. Naturalm ente ele com preendeu que era
m entira.
Cada um de nós m entiu estupidam ente. Em purrei de novo na palestra a m inha
vida de trabalhador. Resultado m edíocre: as m oças cochilaram e Mendonça estirou
o beiço.
Um caboclo m al-encarado entrou na sala. Mendonça franziu a testa. Quis
despedir-m e; receei, porém , que o m om ento fosse im próprio e conservei-m e
sentado, esperando m odificar a im pressão desagradável que produzia. As m oças
m e achavam m açador, evidentem ente.
— Se o inverno vindouro for com o este, desgraça-se tudo: isto vira lam a e não
nasce um pé de m andioca.
— Decerto, concordou Mendonça, visivelm ente aporrinhado com o caboclo,
que m e olhava tranquilo, sem levantar a cabeça.
— Pois até logo, exclam ei de chofre. A eleição dom ingo, hem ? Entendido.
Mato um ... (Ia dizer um boi. Moderei-m e: todo o m undo sabia que eu tinha m eia
dúzia de eleitores) um carneiro. Um carneiro é bastante, não? Está direito. Até
dom ingo.
E saí, descontente. Creio que foi m ais ou m enos o que aconteceu. Não m e
lem bro com precisão.
Atravessei o pátio e entrei no atalho que ia ter a S. Bernardo. Que vergonha!
Tom ar a terra dos outros e deixá-la com aquelas veredas indecentes, cheias de
cam aleões, o m ato batendo no rosto de quem passava!
Percorri a zona da encrenca. A cerca ainda estava no ponto em que eu a tinha
encontrado no ano anterior. Mendonça forcej ava por avançar, m as continha-se; eu
procurava alcançar os lim ites antigos, inutilm ente. Discórdia séria só esta: um
m oleque de S. Bernardo fizera m al à filha do m estre de açúcar de Mendonça, e
Mendonça, em consequência, m etera o alicate no aram e; m as eu havia consertado
a cerca e arranj ado o casam ento do m oleque com a cabrochinha.
Dei um a vista no algodoal e encam inhei-m e ao paredão do açude. Poucos
trabalhadores.
Subi a colina. Tinham -se concluído os alicerces desta nossa casa, as paredes
com eçavam a elevar-se. De repente um tiro. Estrem eci. Era na pedreira, que
m estre Caetano escavacava lentam ente, com dois cavouqueiros. Outro tiro, ruim :
pedra m iúda voando.
Quando se acabariam aqueles serviços m oles? Desgraçadam ente faltavam -m e
recursos para atacá-los firm e. Assim m esm o, lidando com pessoal escasso, às
vezes na sexta-feira eu não sabia onde buscar dinheiro para pagar as folhas no
sábado.
Fiz algum as perguntas ao pedreiro. Um pedreiro só. As paredes tinham um
m etro de altura. Se eu em pregasse m uitos operários, as obras sairiam m ais baratas.
O paredão do açude não ia para a frente, acuava. E a pedreira, onde uns vultos
m iudinhos se m oviam , era com o se em seis m eses de trabalho não tivesse sido
desfalcada.
Um carro de bois passou lá em baixo; outro carro de bois veio vindo, carregado
de tij olos.
Onde andaria a velha Margarida? Seria bom encontrar a velha Margarida e
trazê-la para S. Bernardo. Devia estar pegando um século, pobre da negra.
Dem orei-m e até que os serventes lavaram as colheres e guardaram as
ferram entas. Fiquei só. Os hom ens da lavoura e os do açude foram debandando
tam bém .
Mais tiros na pedreira, os últim os. Pensei no Mendonça. Canalha. Do lado de cá
da cerca o algodão pintava, a m am ona crescia nos aceiros da roça; do lado de lá,
sapé e espinho. Quantas braças de terra aquele m alandro tinha furtado! Felizm ente
estávam os em paz. Aparentem ente. De qualquer form a era-m e necessário
cam inhar depressa.
Desci a ladeira e fui j antar. Enquanto j antava, falei em voz baixa a Casim iro
Lopes, a princípio com panos m ornos, depois delineando um proj eto. Casim iro
Lopes desviou-se dos panos m ornos e colaborou no proj eto.
Deixei o negócio entabulado, fechei as portas e escrevi algum as cartas aos
bancos da capital e ao governador do Estado. Aos bancos solicitei em préstim os, ao
governador com uniquei a instalação próxim a de num erosas indústrias e pedi a
dispensa de im posto sobre os m aquinism os que im portasse. A verdade é que os
em préstim os eram im prováveis e eu não im aginava a m aneira de pagar os
m aquinism os. Mas havia-m e habituado a considerá-los m eio com prados.
Em seguida consultei o Aprendizado Agrícola da Satuba relativam ente à
possível aquisição de um bezerro lim osino.
Quando ia term inando, ouvi pisadas em redor da casa. Levantei-m e e olhei pela
fresta. Lá estava um tipo dando estalos com os dedos, enganando o Tubarão.
Reparando, j ulguei reconhecer o freguês carrancudo que tinha entrado na sala do
Mendonça. Abandonei a espreita e cham ei Casim iro Lopes, que m e substituiu.
Deitei-m e pensando em m estre Caetano e na pedreira. Marretas, alavancas, aço
para broca, pólvora, estopim .
— Gente de lá, m urm urou Casim iro Lopes balançando o punho da rede.
— Com certeza.
No outro dia, sábado, m atei o carneiro para os eleitores. Dom ingo à tarde, de
volta da eleição, Mendonça recebeu um tiro na costela m indinha e bateu as botas
ali m esm o na estrada, perto de Bom -Sucesso. No lugar há hoj e um a cruz com um
braço de m enos.
Na hora do crim e eu estava na cidade, conversando com o vigário a respeito da
igrej a que pretendia levantar em S. Bernardo. Para o futuro, se os negócios
corressem bem .
— Que horror! exclam ou padre Silvestre quando chegou a notícia. Ele tinha
inim igos?
— Se tinha! Ora se tinha! Inim igo com o carrapato. Vam os ao resto, padre
Silvestre. Quanto custa um sino?
P
VII
or esse tem po encontrei em Maceió, chupando um a barata na Gazeta do
Brito, um velho alto, m agro, curvado, am arelo, de suíças, cham ado Ribeiro.
Via-se perfeitam ente que andava com fom e. Sim patizei com ele e, com o
necessitava um guarda-livros, trouxe-o para S. Bernardo. Dei-lhe algum a
confiança e ouvi a sua história, que aqui reproduzo pondo os verbos na terceira
pessoa e usando quase a linguagem dele.
Seu Ribeiro tinha setenta anos e era infeliz, m as havia sido m oço e feliz. Na
povoação onde ele m orava os hom ens descobriam -se ao avistá-lo e as m ulheres
baixavam a cabeça e diziam :
— Louvado sej a Nosso Senhor Jesus Cristo, seu m aj or.
Quando alguém recebia cartas, ia pedir-lhe a tradução delas. Seu Ribeiro lia as
cartas, conhecia os segredos, era considerado e m aj or.
Se dois vizinhos brigavam por terra, seu Ribeiro cham ava-os, estudava o caso,
traçava as fronteiras e im pedia que os contendores se grudassem .
Todos acreditavam na sabedoria do m aj or. Com efeito, seu Ribeiro não era
inocente: decorava leis, antigas, relia j ornais, antigos, e, à luz da candeia de azeite,
queim ava as pestanas sobre livros que encerravam palavras m isteriosas de
pronúncia difícil. Se se divulgava um a dessas palavras esquisitas, seu Ribeiro
explicava a significação dela e aum entava o vocabulário da povoação.
Os outros hom ens, sim , eram inocentes.
Acontecia às vezes que um a dessas criaturas inocentes aparecia m orta a cacete
ou a faca. Seu Ribeiro, que era j usto, procurava o m atador, am arrava-o, levava-o
para a cadeia da cidade. E a fam ília do defunto ficava sob a proteção do m aj or.
Tam bém acontecia que um a suj eitinha com eçava a chorar e acabava
confessando que estava pej ada. Seu Ribeiro descobria o sedutor, cham ava o padre,
e o casam ento se realizava na capela da povoação. Nascia um m enino — e seu
Ribeiro era o padrinho.
O m aj or decidia, ninguém apelava. A decisão do m aj or era um prego.
Não havia soldados no lugar, nem havia j uiz. E com o o vigário residia longe, a
m ulher de seu Ribeiro rezava o terço e contava histórias de santos às crianças. É
possível que nem todas as histórias fossem verdadeiras, m as as crianças daquele
tem po não se preocupavam com a verdade.
Seu Ribeiro tinha fam ília pequena e casa grande. A casa estava sem pre cheia.
Os algodoais do m aj or eram grandes tam bém . Nas colheitas a população corria
para eles. E os pretos não sabiam que eram pretos, e os brancos não sabiam que
eram brancos.
Na verdade seu Ribeiro infundia respeito. Se havia barulho na feira, levantava o
braço e gritava:
— Quem for m eu m e acom panhe.
E a feira se desm anchava, o barulho findava, todo o m undo seguia o m aj or
porque todo o m undo era do m aj or.
Nas noites de S. João um a fogueira enorm e ilum inava a casa de seu Ribeiro.
Havia fogueiras diante das outras casas, m as a fogueira do m aj or tinha m uitas
carradas de lenha. As m oças e os rapazes andavam em redor dela, de braço dado.
Assava-se m ilho verde nas brasas e davam -se tiros m edonhos de bacam arte. O
Compartilhe com seus amigos: |