1. Quais são os obj etivos de sua vida e de que m eios você terá de dispor para
alcançá-los?
2. Quais são os grupos de referência em sua vida e qual a relação entre suas
ações e as expectativas deles?
3. Com o você vê o relacionam ento entre liberdade e dependência?
4. Para você, qual é a relação entre fam ílias, com unidades e organizações, e
com o essas instituições afetam os obj etivos que estabelecem os para nós, sej am
atingíveis ou não? Analise essa questão em relação ao “critério de relevância”.
Sugestões de leitura
BAUMAN, Zy gm unt. Freedom. Milton Key nes, Open University Press, 1988.
Analisa as m esm as questões a que nos dedicam os nesse capítulo.
GRIFFITHS, Morwenna. Feminisms and the Self: The Web of Identity. Londres,
Routledge, 1995.
Várias ideias sobre o self são analisadas com relação ao pertencim ento, à
autenticidade, à política e à autobiografia.
MEAD, George Herbert. Selected Writings: George Herbert Mead (organização
de A.J. Reck). Chicago, University of Chicago Press, 1964.
Coleção selecionada de escritos originais de Mead que vale a pena ser lida
diretam ente, m ais que por m eio de fontes secundárias.
SKEGGS, Beverly. Formations of Class and Gender: Becoming Respectable.
Londres, Sage, 1997.
Um estudo sociológico seguindo vidas de m ulheres e m ostrando a luta que
travam para construir suas identidades sociais.
. 2 .
Observação e sustentação de nossas vidas
Discutim os questões referentes ao pertencim ento a grupos e ao m odo com o eles
se relacionam com nossa autoconcepção em interação com os outros. A m aneira
com o esses grupos influenciam nossas condutas e com o interagim os, a que
grupos pertencem os e os que excluím os com o resultado desse vínculo, estes são
todos tem as im portantes na vida cotidiana. Essas circunstâncias, intencionais ou
não, contribuem para a form a e para o conteúdo das relações sociais que
caracterizam nossas sociedades. Neste capítulo refletirem os sobre esses assuntos
m ais detalhadam ente e exam inarem os as consequências desses processos sobre
nossa visão dos outros e de nós m esm os.
Fundam entando nossas vidas: interação, entendim ento e distância social
Pensem os em todas aquelas pessoas cuj as ações são indispensáveis a nosso dia a
dia. Quem põe o café em nossa xícara? Quem fornece a eletricidade, o gás e a
água de que todos dependem os? E m ais: quem decide com o, onde e quando
m ovim entar os US$2,6 trilhões que circulam nos m ercados globais diariam ente,
com reflexos na prosperidade e no desenvolvim ento de vários países? Essas
pessoas fazem parte da m ultidão desconhecida que possibilita nossa liberdade de
selecionar a m aneira de viver que m ais nos agrada ou a restringe – com o aqueles
industriais que consideram os robôs m ais produtivos que os trabalhadores de
carne e osso e, em decorrência disso, reduzem as possibilidades de em prego.
Além disso, há os que, preocupados com seus próprios obj etivos, produzem
poluição e lixo industrial, com consequências de longo prazo para a qualidade de
nossas vidas, para o am biente e para a vida selvagem em geral.
Com pare essas pessoas com as que você conhece, reconhece e pode cham ar
pelo nom e. Agora, im aginando-as entre aquelas que influenciam a m aneira
com o você conduz sua vida e as escolhas que pode ou não fazer, as pessoas que
você realm ente conhece com põem proporção m uito pequena delas – até aquelas
com quem nos defrontam os aparecem com diferentes frequências. Há pessoas
que encontram os habitualm ente, das quais sabem os o que podem os e não
podem os esperar – com elas conversam os, com partilham os saberes e discutim os
tem as de interesse com um ; outras com põem nossos conhecidos eventuais ou
aqueles com quem nos encontram os apenas um a vez.
Há ainda os lugares em que nos encontram os, pertencentes ao que Erving
Goffm an cham ou de “ordem da interação”. Nela, estam os preocupados com
aqueles “espaços” que não são “pessoais”, com as regiões e situações em que
interagim os com os outros. Os conteúdos das interações nesses lugares podem ser
funcionais, por exem plo, quando tiram os dinheiro do banco, vam os ao dentista ou
com pram os doce na confeitaria. As relações levadas a cabo nesses espaços são
orientadas por nossos propósitos, e em geral não tem os interesse nas pessoas com
que neles interagim os, salvo no que diz respeito a suas habilidades no
desem penho das funções. Perguntas de caráter m ais íntim o estão fora de questão
(e de lugar) em tais circunstâncias e, de m aneira geral, serão consideradas
introm issão indesej ada ao que, naquele encontro, estipulam os com o nossa
privacidade. Se ocorrer um a introm issão com o essa, devem os resistir,
considerando-a falha nas expectativas tácitas da relação – centrada, afinal, na
venda de serviços.
Em bora a proxim idade sugira um episódio de interação social, ela nada nos
diz das experiências desse tipo vividas pelos participantes. Alguns dirão que seus
“am igos virtuais” – aqueles com os quais se com unicam pela internet – são tão
“am igos” quanto aqueles com os quais se encontram fisicam ente. O sociólogo
austríaco radicado nos Estados Unidos, Alfred Schutz, sugeriu que, do ponto de
vista de um indivíduo, todos os dem ais m em bros da raça hum ana podem ser
localizados num a linha im aginária – um continuum , m edido pela distância social
– que cresce à m edida que as interações se reduzem em volum e e intensidade.
Essa linha abarca desde o conhecim ento m ais pessoal até o que se lim ita à
habilidade de tipificar pessoas: o rico, os hooligans de futebol, os soldados,
burocratas, políticos, j ornalistas e outros. Quanto m ais distantes de nós, m ais
tipificada é nossa consciência a respeito das pessoas que ocupam os pontos do
continuum , assim com o nossas relações com elas.
Além de nossos contem porâneos, há aqueles que habitam nossos m apas
m entais com o predecessores e sucessores. Nossa com unicação com eles é
unilateral e incom pleta. Ao m esm o tem po, porém , tais com unicações, talvez
herdadas sob a form a de m itos, podem nos aj udar a resolver contradições
contem porâneas sobre nossas identidades. Com o a antropologia social tem
m ostrado, podem os nos relacionar desse m odo com tradições específicas,
preservadas pela m em ória histórica sob a form a de cerim ônias ou de um a
adesão a interpretações peculiares do passado.
Com os sucessores esse processo é diferente, pois nós é que deixam os m arcas
de nossa existência para eles, sem , contudo, esperar que nos respondam .
Podem os proj etar futuros im aginários, m as não tem os com o “conhecê-los”.
Entretanto, não é fato desconhecido para os cientistas m odernos eles se deixarem
influenciar pela ficção científica e pelas ações de m odo a im aginar as
possibilidades reservadas ao futuro. A ideia de os gerentes prom overem
“reengenharia” nas organizações, por exem plo, diz respeito à proj eção de um
futuro ideal sobre a realidade existente. Isso oferece a possibilidade de aliviar
seus autores da responsabilidade no presente, porque os efeitos de suas decisões
estão todos contidos em um porvir abstrato.
Entretanto, quer falem os da influência do passado, quer falem os agora de
possíveis futuros, eles não são fixados ao longo do tem po. As pessoas m udam de
lugar, de um a categoria para outra, viaj am para perto e para longe de nossa
posição no continuum e se deslocam do lugar de contem porâneos para o de
predecessores. Nesse processo, nossa capacidade de em patia – dom e disposição
de se colocar no lugar do outro – tam bém m uda. Assim , nossa autoidentidade
fica atrelada às identidades sociais que exibim os para os outros e àqueles que
encontram os em nossa existência cotidiana.
“Nós” dentro do “outro”
Nossa capacidade de fazer diferenciações e divisões no m undo inclui a distinção
entre “nós” e “eles”. A prim eira categoria refere-se a algum grupo a que
sentim os pertencer e que entendem os. A outra, ao contrário, a grupos a que não
tem os acesso nem querem os integrar. Nossa visão a esse respeito é vaga,
fragm entada e se deve a um a com preensão em pobrecida, até assustadora. Mais
que isso, podem os nos assegurar de nossas crenças graças à suspeita de que
“eles” sentem em relação a “nós” reservas e ansiedades equivalentes.
A distinção entre “nós” e “eles” é por vezes apresentada na sociologia com o
um a diferença intragrupo e extragrupo.1 Esses opostos são inseparáveis, pois não
pode haver um sem o outro. Sedim entam -se, por assim dizer, em nosso m apa do
m undo nos dois polos de um a relação antagônica, o que torna os dois grupos
“reais” para seus respectivos m em bros e fornece a unidade interna e a coerência
que, im agina-se, eles possuem .
Considerando que nossas autoidentidades são atreladas aos grupos a que
pertencem os, alguns autores, em especial o filósofo e historiados francês Michel
Foucault e o tam bém filósofo francês Jacques Derrida, sugeriram que possuím os
um a identidade – em geral entendida pelas pessoas com o um a “essência”, term o
que os autores recusam – constituída pelo processo de rej eição dos negativos,
nesse caso j ustam ente as características atribuídas a “eles”. A autoidentificação,
portanto, decorre dos recursos que extraím os de nosso am biente, não havendo
um “núcleo” fixo em nossas identidades. Dessa form a, oposições tornam -se
ferram entas de que lançam os m ão para cartografar o m undo. Exem plos desse
processo incluem distinções entre pobreza “m erecida” e “im erecida”, ou entre
os cidadãos “respeitáveis” e a “gentalha”, desafiadora de todas as regras e
caracterizada por rej eitar toda e qualquer ordem . Em cada caso, nossos traços
específicos, assim com o todos os investim entos em ocionais, derivam desse
antagonism o m útuo.
Dessas observações, podem os esboçar a seguinte conclusão: um extragrupo é
j ustam ente aquela oposição im aginária a si m esm o de que o intragrupo necessita
para estabelecer sua autoidentidade, sua coesão – para obter solidariedade
interna e segurança em ocional. Desse m odo, a boa vontade para cooperar dentro
de seus lim ites exige, com o sustentação, a recusa à cooperação com um
adversário. É com o se precisássem os do m edo do m undo selvagem para nos
sentir seguros. Os ideais sustentadores desse processo incluem solidariedade,
confiança m útua e o que podem os cham ar, seguindo o sociólogo francês Ém ile
Durkheim , de “coesão” ou “laço com um ”. É a m aneira segundo a qual se espera
que os m em bros de um a fam ília ideal aj am uns em relação aos outros, os pais
em relação aos filhos, em term os de seus parâm etros de am or e carinho.
A retórica de quem quer evocar na audiência um sentim ento de lealdade
m útua geralm ente nos oferece m etáforas de “fraternidade”, “irm andade” e
hum anidade com o “um a fam ília”. Manifestações de solidariedade nacional e
disposição para o sacrifício em nom e de um bem m aior são tem peradas com
referências à nação com o “m ãe” ou “pátria”. Aj uda m útua, proteção e am izade,
então, tornam -se as regras im aginárias da vida de um intragrupo, fazendo-nos
perceber as relações nesse contexto com o em ocionalm ente calorosas, inundadas
de sim patia2 m útua e de potencial para inspirar lealdade, bem com o a
determ inação necessária à defesa dos interesses grupais. Assim , um sentim ento
de com unidade com o um espaço prazeroso de se estar antecipa-se a quaisquer
argum ento e reflexão. Nesse lugar, os tem pos podem ser difíceis, m as sem pre se
pode encontrar um a solução no final. As pessoas podem soar grosseiras e
egoístas, m as alguém pode contar com elas se surgir um a necessidade. Acim a de
tudo, alguém pode entendê-las e ter a certeza de ser por elas tam bém entendido.
Com o m encionam os, não há exigência de estar fisicam ente na presença das
pessoas com quem nos identificam os para evocar esses sentim entos e ingressar
nas atividades e crenças que a elas nos ligam . Tanto podem os nos relacionar com
grupos restritos, íntim os, com o com aqueles grandes e dispersos. Classe, gênero e
nação são exem plos típicos dessa segunda categoria de intragrupo. Em bora em
geral os considerem os equivalentes aos grupos pequenos e íntim os que nos são
fam iliares, eles constituem com unidades im aginárias, sendo caracterizados pelo
uso da m esm a linguagem e pela prática de costum es sem elhantes, m as,
sim ultaneam ente, divididos por suas crenças e práticas. Essas rupturas,
entretanto, apresentam tênue revestim ento da im agem de “nós”, apelando para
sentido de unidade. De fato, os discursos de líderes nacionalistas m uito
habitualm ente se referem a soterrar as diferenças em favor do espírito com unal
orientado para um obj etivo coletivam ente sustentado.
Há um trabalho a fazer no sentido de estim ular a autotransform ação de
classes, gêneros, etnias e nações em intragrupos, porque eles carecem do
cim ento social que nos é fam iliar nas interações cotidianas. Um a consequência
desse processo é a supressão ou a dispensa de evidências que correm contra sua
im agem ideal, tratando-a com o falsa ou irrelevante. O processo de purificação
dem anda um corpo disciplinado e im aginário de interesses e crenças. Isso
considerado, as ações de um coletivo – partido político, sindicato, governo de um
Estado nacional – precedem a form ação de grupos de larga escala. O
nacionalism o, assim , precede a em ergência de unidades nacionais unificadas.
Apesar do em penho contido na im agem da unidade, a sustentação na
realidade perm anece frágil. Por quê? Porque falta a substância que se pode
derivar da interação cotidiana das redes, e, então, nenhum esforço para induzir a
lealdade em grandes grupos sustenta um a possibilidade de êxito se não for
acom panhado da prática de hostilidade em relação a um extragrupo. Deparam os
então com a im agem de um inim igo escabroso, assustador e que dem onstra ser
astuto e conspiratório. A vigilância torna-se necessidade constante em contextos
nos quais as im agens são form adas por preconceito. O preconceito – assim com o
a recusa em adm itir quaisquer virtudes nos inim igos e a tendência a am pliar seus
vícios reais e im aginários – im pede que alguém aceite a possibilidade de serem
honestas as intenções alheias. E esse preconceito ainda se m anifesta em padrões
m orais dúbios. A concessão do título que os m em bros de um intragrupo afirm am
m erecer seria um ato de graça e benevolência àqueles do extragrupo.
Mais im portante ainda, um a atrocidade nossa contra alguém de um
extragrupo não parece chocar-se com a consciência m oral, ao passo que se
exigem penas severas nos casos em que atos m uito m ais brandos são perpetrados
pelo inim igo. Desse m odo, o preconceito leva as pessoas a aprovar os m eios
usados na prom oção de sua própria causa, m eios que nunca seriam j ustificados
se em pregados pelo extragrupo na busca de seus obj etivos. Ações idênticas
recebem , assim , nom es diferentes.
Por exem plo, um “soldado da liberdade”, se estiver no grupo oposto, será um
“terrorista”.
As disposições para o preconceito, contudo, não são uniform em ente
distribuídas. Podem m anifestar-se em atitudes e ações racistas ou, com m ais
frequência, na xenofobia, na form a do ódio a tudo que for “estrangeiro”. Pessoas
que acolhem altos níveis de preconceito são m alpreparadas para resistir a
qualquer desvio às regras estritas de conduta e, por conseguinte, favorecem
poderes fortes, capazes de m anter os outros “na linha”. Essas pessoas foram
caracterizadas pelo filósofo, sociólogo e crítico cultural alem ão Theodor Adorno
com o “personalidades autoritárias”, estreitam ente relacionadas às expressões de
insegurança geradas por m udanças drásticas nas condições a que estão
habituadas. Aquilo que as pessoas aprenderam com o m odos eficazes de orientar
seu dia a dia, de repente se torna m enos confiável. O resultado pode induzir à
sensação de perda de controle da situação e, assim , ao ressentim ento, e m esm o à
resistência à m udança.
Nas condições sociais, essas transform ações podem desencadear a
necessidade de defender “o j eito antigo”, opondo-se aos recém -chegados que
representam o “j eito novo”, tornando-os alvo de ressentim entos. Pierre Bourdieu,
escrevendo sobre esse processo no interior de seu m odelo de “cam pos” de
relações sociais, afirm a que as pessoas levam a cabo estratégias de “ortodoxia”
ou “heresia”. As balizas são a conservação ou a subversão de relações
estabelecidas, e, portanto, o conj unto de suposições pré-reflexivas ou
inquestionáveis que conform am as ações cotidianas é forçado a despertar de seu
descanso para defender o status quo de possíveis invasões.
Norbert Elias tam bém apresentou um a teoria a respeito dessas situações, nos
term os do que cham ou de “estabelecidos” e “outsiders”. Um influxo de outsiders,
estranhos a um m eio, inevitavelm ente configura desafio para os m odos de vida
da população estabelecida, não im porta qual sej a a diferença obj etiva entre os
recém -chegados e os antigos habitantes. As tensões surgem da necessidade de
fazer o espaço e o resto reconhecerem os novatos. As ansiedades daí resultantes
transform am -se em sentim entos hostis, m as os estabelecidos tendem a
apresentar m elhores recursos para agir, com base em seus preconceitos. Podem
tam bém invocar direitos adquiridos graças à longevidade de sua presença,
m ediante frases com o “Esta é a terra de nossos antepassados”.
O com plexo relacionam ento entre estabelecidos e outsiders constitui longo
percurso na direção da explicação de um a grande variedade de conflitos entre
intragrupos e extragrupos. O nascim ento do m oderno antissem itism o na Europa
do século XIX, e sua larga recepção, pode ser com preendido com o resultado de
um a coincidência entre a alta velocidade de m udança num a sociedade em
acelerada industrialização e a em ancipação dos j udeus, que em ergiram dos
guetos ou de seus bairros e com unidades fechados para se m isturar à população
gentia das cidades e ingressar em ocupações “com uns”.
De m odo sim ilar, m udanças na paisagem industrial britânica do pós-guerra
geraram ansiedade am plam ente difundida e depois direcionada para os recém -
chegados de países caribenhos ou do Paquistão, no m om ento em que j á se
desenhava um a resistência m asculina às reivindicações das m ulheres por direitos
iguais no em prego e na com petição por posições de influência social. E essas
reivindicações fem inistas de igualdade ainda acendem um preconceito
sutilm ente disfarçado por alusões a um estado de coisas “natural”. Por trás, está a
afirm ação de que as m ulheres devem conhecer seu lugar em um a ordem das
relações sociais que tenda a conceder privilégios aos hom ens.
O antropólogo britânico naturalizado am ericano Gregory Bateson sugeriu
denom inar “cism ogênese” a cadeia de ações e reações consequente a esses
processos. Cada ação conduz a um a reação m ais forte, e o controle sobre a
situação é gradualm ente perdido. Bateson distingue dois tipos de cism ogênese. No
prim eiro, a “cism ogênese sim étrica”, cada lado reage aos sinais de força do
adversário: sem pre que ele dem onstra poder e determ inação, um a m anifestação
ainda m ais forte de poder e determ inação é procurada com o reação. O que
am bos os lados tem em m ais do que qualquer coisa é ser considerado fraco ou
hesitante – basta pensar nos slogans m ilitares “A repressão deve ser crível” ou
“Deve-se m ostrar ao agressor que a agressão não com pensa”. A cism ogênese
sim étrica produz a autoafirm ação em am bos os lados e contribui para a
elim inação da possibilidade de acordo racional. A decorrência é que as facções,
m uito em bora não recordem a razão original do conflito, se m antêm inflam adas
pelo am argor de sua luta atual.
O segundo tipo, a “cism ogênese com plem entar”, desenvolve-se a partir de
pressupostos diam etralm ente opostos, m as leva a resultados idênticos, isto é, a
quebra do relacionam ento. A sequência cism ogenética de ações é com plem entar
quando a força de um lado se apoia em sinais de fraqueza no outro, quando a
resistência de um lado se enfraquece no confronto com as m anifestações de
força crescente no lado contrário. Essa é a tendência característica de toda
interação entre um a parte dom inante e outra m ais subm issa. A autoafirm ação e a
autoconfiança de um parceiro alim entam sintom as de tim idez e subm issão no
outro. Os casos de cism ogênese com plem entar são variados em seu conteúdo
tanto quanto são num erosos.
Levando ao extrem o, podem os pensar em um a gangue que aterrorize a
vizinhança inteira em incondicional subm issão. Um dia, convencidos de sua
própria força por conta da falta de resistência, seus m em bros elevam suas
exigências para além da capacidade de pagam ento de suas vítim as que, levadas
ao desespero, ou iniciarão um a rebelião, ou poderão se ver forçadas a se m udar
para longe do território da gangue.
No extrem o oposto, podem os pensar no relacionam ento patrono/cliente. A
m aioria dom inante (nacional, racial, cultural, religiosa) pode aceitar a presença
de um a m inoria, contanto que esta últim a dem onstre seriam ente a aceitação dos
valores vigentes e o desej o de viver sob suas regras. Ansiosa para agradar e,
desse m odo, conquistar favores, a m inoria pode, entretanto, descobrir que as
concessões necessárias tendem a am pliar-se com o aum ento da confiança do
grupo dom inante; será, então, obrigada a deixar seu próprio gueto ou a trocar sua
estratégia por outra, m odelada na cism ogênese sim étrica. O que quer que
escolha, porém , terá com o resultado provável o dano no relacionam ento.
Há, por sorte, um terceiro tipo de estrutura em que a interação ocorre: a
reciprocidade, que com bina características das cism ogêneses sim étrica e
com plem entar, m as de m odo a neutralizar suas tendências autodestrutivas. No
relacionam ento recíproco, cada caso da interação é assim étrico. Contudo, ao
longo de períodos abrangentes, as ações de am bos os lados se contrabalançam ,
porque cada um tem a oferecer algo de que o outro lado precisa. Por exem plo, a
m inoria ressentida e discrim inada pode deter habilidades que faltam na
população total. É provável que algum a form a de reciprocidade caracterize a
m aioria das estruturas de interação. Deve-se notar, entretanto, que nenhum a
estrutura recíproca é inteiram ente im une ao perigo do deslizam ento rum o à
relação com plem entar ou sim étrica, engatilhando, assim , o processo de
cism ogênese.
Vim os que ser “nós”, contanto que haj a “eles”, é algo que só faz sentido no
conj unto, em sua m útua oposição. Além disso, “eles” pertencem um ao outro e
form am um só grupo, porque todos e cada um deles partilham a m esm a
característica: nenhum deles é “um de nós”. Am bos os conceitos derivam seu
significado da linha divisória de que se servem . Sem tal divisão, sem a
possibilidade de opor-se a “eles”, dificilm ente conseguiríam os dar sentido a
nossas identidades.
Observar e viver a vida: fronteiras e outsiders
“Estranhos”, todavia, desafiam essas divisões. De fato, opõem -se à própria ideia
de oposição, isto é, divisões de qualquer tipo em term os dos lim ites que as
preservam e, assim , garantem a clareza do m undo social que resulta dessas
práticas. Nisso repousa sua significação, seu significado e o papel que
desem penham na vida social. Com sua sim ples presença, que não se encaixa
facilm ente em nenhum a categoria estabelecida, os estranhos negam até a
validade das oposições aceitas. Expõem o caráter aparentem ente “natural” das
oposições, deixando a nu sua fragilidade. Veem -se as divisões com o o que de fato
são: linhas im aginárias que podem ser cruzadas ou redesenhadas. Afinal,
ingressam em nosso cam po de visão e em nossos espaços sociais – sem ser
convidadas. Quer o desej em os, quer não, essas pessoas acom odam -se
firm em ente no m undo que ocupam os e não dem onstram interesse algum em
sair. Notam os sua presença porque sim plesm ente ela não pode ser ignorada, e
por isso encontram os dificuldades em lhes conferir sentido. Não são, por assim
dizer, nem próxim as nem distantes, e não sabem os exatam ente o que delas
esperar – nem de nós.
Em casos com o esses, o estabelecim ento de fronteiras tão claras, precisas e
inequívocas quanto possível é elem ento central do m undo hum anam ente
construído. Todos os nossos conhecim entos e habilidades adquiridos se tornariam
questionáveis, inúteis, prej udiciais e m esm o suicidas, não fosse o fato de os bem -
dem arcados lim ites nos enviarem sinais quanto ao que esperar e com o nos
conduzir em contextos particulares. Os que estão do outro lado dessas fronteiras,
todavia, não diferem tão acentuadam ente assim de nós a ponto de nos livrar de
classificações equivocadas. Por conta disso, é necessário esforço constante para
m anter divisões num a realidade que desconhece contornos exatos, indiscutíveis.
A com preensão dos outros e de nós m esm os torna-se agora o esforço de
com preender por que existem essas barreiras e com o são m antidas. O
antropólogo Anthony Cohen afirm a que a ideia de fronteira é essencial para o
esforço de entender os lim ites de nossa autoconsciência ao longo da tarefa de
com preensão de quem se localiza fora dos pontos sim bólicos de dem arcação.
Assim , nos dam os conta de com o as pessoas podem diferir quanto a um tem a e
concordar no que diz respeito a outros. Pode-se dem onstrar que a m aioria dos
traços varia de form a gradual, suave e não raro im perceptível, conform e sugere
a linha contínua de Alfred Schutz. Por conta da sobreposição, há áreas am bíguas,
em que as pessoas não são im ediatam ente reconhecidas com o pertencentes a um
ou outro dos grupos opostos. Com o observam os, para alguns essa condição
constitui fonte de am eaça, m ais do que oportunidade de se conhecer m elhor pelo
conhecim ento aprofundado dos outros.
Em m eio às preocupações hum anas, papel crucial é desem penhado pela
tarefa interm inável de fazer a ordem hum anam ente criada “colar”, “pegar”. Tal
com o a antropóloga Mary Douglas enfatizou em seu trabalho Pureza e perigo,
fronteiras não são apenas negativas, m as tam bém positivas, porque os rituais
estabelecem form as de relação social que perm item às pessoas conhecer suas
sociedades. Para alcançar esse propósito, entretanto, as am biguidades que
ofuscam as fronteiras precisam ser suprim idas.
Considerem os alguns exem plos desse processo. O que torna algum as plantas
daninhas, aquelas que envenenam os e cortam os pela raiz, é sua terrível tendência
para obliterar os lim ites entre nosso j ardim e o m undo selvagem . Elas em geral
têm boa aparência e cheiro bom , são agradáveis; “falham ”, contudo, porque
chegam sem convite a um lugar que dem anda ordem , ainda que o
estabelecim ento e a m anutenção dessa ordem dem andem o uso de num erosos
produtos quím icos para obter o resultado desej ado.
Algo equivalente pode ser dito sobre a “suj eira” nas casas. Hoj e algum as
indústrias quím icas fixam rótulos claram ente distintos em em balagens com
detergentes idênticos. Por quê? Porque se deram conta de que quem se orgulha
da arrum ação de sua casa j am ais sonharia em confundir cozinha e banheiro
usando o m esm o detergente nos dois. Essas preocupações podem m anifestar-se
na form a de com portam ento obsessivo quanto à pureza e à lim peza dos
am bientes. Muitos produtos são vendidos com essa ideia, em bora o resultado
possa reduzir a capacidade de nosso sistem a im unológico para enfrentar as
infecções. Em face da perm anente am eaça de am biguidade e desordem , o
desej o de ordenar ao m undo é custoso não só para nós m esm os, m as tam bém
para aquelas pessoas e coisas que acreditam os causa de distúrbio na harm onia.
Os lim ites de um grupo podem ser am eaçados, atacados e atingidos tanto
interna quanto externam ente. Dentro, por pessoas am bivalentes, caracterizadas
com o desertoras, detratoras de valores, inim igas da unidade e vira-casacas. Via
golpes vindos do exterior, por pessoas que dem andam paridade e se deslocam
em espaços nos quais não são facilm ente identificáveis. Quando isso ocorre, as
fronteiras antes consideradas seguras ficam expostas com o inconsistentes,
frágeis. Aqueles que trocam seu lugar pelo nosso consum am um feito que nos faz
suspeitar de que tenham algum poder ao qual não podem os resistir, e, assim , nos
sentim os desconfiados em sua presença.
“Neófito” (alguém que se converteu a nossa fé), “nouveau riche” (novo-rico,
alguém que era pobre, fez fortuna de repente e hoj e se j untou aos ricos e
poderosos), “alpinista social”, “arrivista” ou “carreirista” (aquele de posição
social inferior rapidam ente prom ovido a um a situação de poder) são apenas
algum as das denom inações que, em tais circunstâncias, sim bolizam reprovação,
aversão e desdém .
Essas pessoas despertam ansiedade por outras razões: fazem perguntas que
não sabem os responder, porque nunca tivem os oportunidade nem razão de nos
indagar – “Por que você faz isso dessa m aneira?”, “Isso faz sentido?”, “Já tentou
fazer isso de um j eito diferente?” As form as segundo as quais tem os vivido, o tipo
de vida que nos dá segurança e conforto ficam então expostos ao que
enxergam os com o desafios, e som os cham ados a explicar e j ustificar nossas
ações.
A perda de segurança daí resultante não é algo que seríam os capazes de
aceitar de coração leve. É algo que frequentem ente consideram os um a am eaça,
e, de m odo geral, não tem os inclinação para o perdão. Daí decorre o fato de
essas questões configurarem ofensas e subversões. É possível cerrar fileiras em
defesa de m odelos de vida estabelecidos, e o que antes era um grupo de pessoas
desiguais se une contra um inim igo com um : os estranhos a quem atribuím os
responsabilidade por um a crise de confiança. E o desconforto pode transform ar-
se em raiva contra estes, agora punidos com o rótulo de “encrenqueiros”.
Ainda que os recém -chegados se contenham e evitem perguntas incôm odas, a
própria m aneira com o se com portam em seu cotidiano poderá levantar questões.
Os oriundos de outros lugares e determ inados a ficar desej arão aprender estilos
de vida, im itá-los e tentar ser “com o nós”. Não im porta, porém , o quão
fortem ente eles tentem nos im itar, não conseguirão evitar erros; no com eço, por
conta do pressuposto de que o estilo de vida deve ser aprendido ao longo do
tem po, o tem po todo. Assim , suas tentativas soam não convincentes, e seus
com portam entos desaj eitados e inadequados, parecendo caricatura de nossa
conduta. Isso nos leva a questionar com o as coisas são “na verdade”. Rej eitam os
suas ineptas im itações, ridicularizando-as, criando e divulgando piadas que
estabelecem a “caricatura da caricatura”. A gargalhada, porém , é am arga
quando o hum or m ascara a aflição.
Mem bros de um grupo têm sido forçados, pela presença de recém -chegados,
a rever seus próprios hábitos e expectativas com forte dose de ironia. Em bora
nunca tenham sido expostos a questionam ento explícito, seu conforto foi
perturbado, e a resistência brotará. Em term os de respostas possíveis a tais
situações, a prim eira é no sentido da restauração do status quo. Lim ites
dem andam retorno ao que era considerado um a não problem ática form a de
clareza. Eles podem ser devolvidos para seu suposto lugar de origem – ainda que
esse lugar não exista! Logo a vida se torna desconfortável para eles, por
exem plo, graças à conversão do hum or em ridicularização e à negação de
reconhecim ento de direitos que são garantidos aos m em bros estabelecidos do
grupo. Entretanto, m esm o que eles partam , quando um agrupam ento baseia-se
em fragilidade com o essa, novos alvos terão de ser descobertos a fim de o
sustentar.
Em plano nacional, a form a desse processo m uda, e podem -se fazer tentativas
para forçá-los a em igrar, ou para tornar suas vidas tão m iseráveis que eles
próprios considerem o êxodo um m al m enor. Se houver resistência a esse tipo de
m anobra, podem se erguer cercas, e talvez o genocídio sej a o próxim o passo.
Desse m odo, form as cruéis de arrasam ento são aplicadas visando a cum prir a
tarefa que as tentativas de rem oção falharam em consum ar. O genocídio
certam ente é o m ais extrem o e abom inável m étodo de “restauração da ordem ”,
ainda que a história recente venha provando, das m ais horrendas m aneiras, que o
risco dessa prática não desaparece tão facilm ente – apesar das condenações e do
difundido ressentim ento.
Sendo o genocídio um a form a extrem ada, soluções m enos radicais e odiosas
podem ser escolhidas; entre as m ais com uns está a separação, que pode ser
territorial, espiritual ou um a com binação de am bas. Sua expressão territorial
pode ser exem plificada pelos guetos ou reservas étnicas – áreas de cidades ou
regiões de países reservadas à habitação de pessoas com as quais os elem entos
m ais poderosos da sociedade não querem se m isturar. Às vezes m uros e/ou
proibições legalm ente estabelecidas cercam esses territórios. Alternativam ente, o
fluxo para dentro e para fora é teoricam ente livre, não sendo passível de punição.
Mas na prática os residentes estarão im pedidos de sair ou sim plesm ente não
escaparão de seu confinam ento porque as condições “do lado de fora” se
tornaram intoleráveis para eles, ou porque o padrão de vida em suas áreas,
m uitas vezes degradadas, é o único que conseguem sustentar.
Quando a separação territorial é incom pleta ou se torna totalm ente
im praticável, o isolam ento espiritual ganha im portância. A relação com os
estranhos é reduzida a trocas com erciais estritas, os contatos sociais são evitados.
Há um em penho, consciente ou não, em prevenir ou im pedir que a proxim idade
física se torne aproxim ação espiritual. Ressentim entos ou hostilidades declaradas
são os m ais óbvios desses esforços preventivos.
Barreiras de preconceito podem ser erguidas e se provar m uitíssim o m ais
efetivas que o m ais espesso dos m uros. Um a form a ativa de evitar o contato é
constantem ente reforçada pelo m edo de contam inação por parte daqueles que
nos “servem ”, m as não são “com o nós”. As críticas perpassam qualquer coisa
que se possa associar aos estranhos: sua m aneira de falar e vestir-se, seus rituais,
a organização de suas vidas fam iliares e até o arom a da com ida que gostam de
preparar. Assentada nisso está sua aparente recusa de envolvim ento na ordem
natural das relações sociais. Com isso, eles não aceitam responsabilidades por
suas ações, com o “nós tem os que aceitar” pelas nossas. A ordem que produz esse
estado de coisas não é questionada, m as sim a falha “pessoal” deles em aderir à
sua lógica aparente.
Segregação e m ovim ento na cidade
Até agora, supusem os a separação de grupos, ainda que cham ando a atenção
para a am bivalência e as am biguidades que cercam esses lim ites. Quem
pertence a que grupo é questão que não esteve em pauta. É fácil perceber,
entretanto, que esse tipo de situação sim ples e o esforço para deixar nítidos os
contornos que ela tende a produzir raram ente serão encontrados em nosso tipo de
sociedade. As sociedades em que a m aioria de nós vive são urbanas, isto é, as
pessoas vivem j untas em grande densidade populacional, m ovim entam -se
continuam ente e, no curso de seus assuntos cotidianos, atravessam diversas áreas
habitadas por pessoas de tipos os m ais diversos.
Na m aior parte das vezes, não há com o ter certeza de que as pessoas com
quem nos encontram os seguem nossos padrões. Som os constantem ente atingidos
por novos olhares e sons que não com preendem os de todo. E, talvez infelizm ente,
m al tem os tem po de parar, refletir e prom over um a tentativa honesta de
com preender essas pessoas e esses lugares. Vivem os entre estranhos, para quem
som os tam bém estranhos. Em tal m undo, os estranhos não podem ser confinados
ou m antidos afastados.
Em bora essas interações se deem na cidade, as práticas antes descritas não
foram abandonadas por com pleto. Procedim entos de segregação têm lugar, por
exem plo, no uso de m arcas facilm ente visíveis, distintivas, da filiação ao grupo. A
lei pode forçar um a aparência tão prescritiva que o “passar-se por outra pessoa”
será punido. Isso, entretanto, é obtido com frequência, sem necessariam ente se
ter de recorrer à lei para que o sej a por coerção.
Quem tem m ais recursos pode vestir-se de m aneiras especiais, o que funciona
com o código para classificar as pessoas segundo seu esplendor ou de acordo com
a m iséria ou a estranheza de sua aparência. No entanto, cópias relativam ente
baratas de obj etos adm irados e altam ente cotados no universo da m oda são agora
produzidas em quantidades m aciças, dificultando, de certa form a, a percepção
das distinções. O resultado é que assim se pode esconder, m ais que revelar, a
origem territorial e a m obilidade de seus criadores e usuários.
Isso não significa que a aparência não distinga os portadores, até porque eles
configuram declarações públicas concernentes aos grupos de referência que
escolheram . Tam bém podem os, aliás, disfarçar nossas origens nos vestindo de
m aneiras diferentes, a fim de subverter ou abalar a classificação social im posta.
Assim , o valor inform ativo proveniente da aparência alheia pode ser am enizado.
Se a aparência se tornou m ais problem ática ao longo do tem po, o m esm o não
se dá com a segregação pelo espaço. O território de espaços urbanos
com partilhados é dividido em áreas nas quais é m ais provável encontrar um tipo
de pessoa do que outros. O valor que essas áreas segregadas oferecem à
orientação de nossas condutas e expectativas é alcançado por práticas rotineiras
de exclusão, ou sej a, pela adm issão seletiva e lim itada. Áreas residenciais
exclusivas, policiadas por com panhias de segurança privada, são m ais um
exem plo do fenôm eno de exclusão, por parte daqueles que têm recursos
financeiros, dos que não com partilham das possibilidades derivadas de sua renda
e sua riqueza.
Não são só os agentes de segurança nas portas de requintadas residências que
sim bolizam as práticas de exclusão, m as tam bém aqueles alocados nas grandes
áreas de com pra nas quais se perde tem po em atos conspícuos do consum o –
habilm ente desprovidas de relógios. Há ainda bilheterias e recepções, cuj os
critérios de seleção variam . Nas prim eiras, o dinheiro é o critério m ais
im portante, em bora o ingresso possa ser recusado a quem não corresponda a
algum a outra exigência – por exem plo, em relação à roupa ou à cor da pele. As
verificações de entrada estabelecem um a situação na qual o acesso é negado a
todos enquanto perm anecerem estranhos. Esses atos rituais de identificação
tom am um desconhecido, sem rosto, de um a categoria cinzenta, indiscrim inada,
e o convertem em “pessoa concreta”, reconhecida com o portadora do direito de
entrar. A incerteza daqueles que se identificam com tais lugares quanto a estar na
presença de pessoas “que podem ser qualquer um ” é assim reduzida, em bora
apenas de m aneira localizada e tem porária.
O poder de recusar a entrada e, portanto, delim itar fronteiras de acordo com
as características aceitáveis daqueles que ingressam é acionado para garantir
relativa hom ogeneidade. Essas práticas procuram reduzida am bivalência em
espaços selecionados no universo densam ente povoado e anônim o da vida
urbana. Esse poder é praticado em pequena escala sem pre que nos preocupam os
em controlar aqueles espaços identificados com o privados. Acreditam os,
entretanto, que outras pessoas usarão seus poderes para fazer trabalho sim ilar
para nós, em m aior escala, nos enclaves em que nos m ovim entam os
rotineiram ente.
Em geral, tentam os m inim izar o tem po perdido em áreas interm ediárias, por
exem plo adotando a m edida de nos deslocarm os de um espaço fortificado a
outro. Claro exem plo disso é o fato de nos locom over no isolam ento da célula
herm eticam ente fechada que é nosso carro, ainda que talvez reclam ando do
congestionam ento na estrada, que só aum enta.
Ao nos m over dentro dessas áreas e diante do olhar de desconhecidos que
podem interrom per nossas autoidentidades, o m elhor que podem os fazer é tentar
não ser notados, ou pelo m enos evitar atrair atenção. Erving Goffm an considera
que tal desatenção civil é prim ordial em m eio às técnicas que viabilizam a
convivência de desconhecidos em um a cidade. Caracterizada por m odalidades
elaboradas – fingir que não olham os nem escutam os, ou assum ir postura
sugestiva de que não vem os, não ouvim os nem m esm o ligam os para o que os
outros a nossa volta estão fazendo –, a desatenção civil é rotinizada.
Ela se m anifesta no ato de evitar contato visual, que culturalm ente pode
significar convite para iniciar um a conversação entre desconhecidos. O
anonim ato, portanto, é o m ais m undano dos gestos. A total evitação, contudo, não
é possível, pois a sim ples passagem por áreas m ovim entadas exige certo grau de
m onitoram ento a fim de evitar colisões com os outros. Por conseguinte, devem os
nos m anter atentos, em bora fingindo que não estam os olhando nem sendo vistos.
Recém -chegados não acostum ados ao contexto urbano são frequentem ente
im pactados por tais rotinas que, para eles, podem significar insensibilidade
peculiar e fria indiferença por parte da população. As pessoas estão
perturbadoram ente próxim as no aspecto físico, m as parecem rem otas um as das
outras do ponto de vista espiritual. Perdidos na m ultidão, tem os a sensação de
abandono a nossos próprios recursos, o que leva, por sua vez, à solidão – preço a
pagar pela privacidade. Viver com estranhos transform a-se em arte, cuj o valor é
tão am bíguo quanto os próprios estranhos. Há, contudo, um outro lado nessa
experiência.
O anonim ato pode significar em ancipação em relação às nocivas e
constrangedoras vigilância e interferência de quem , em contextos m enores e
m ais personalizados, poderia se sentir no direito de ser curioso e introm eter-se
em nossas vidas. A cidade oferece a possibilidade de perm anecerm os em um
lugar público, m antendo intacta nossa privacidade. A invisibilidade, possível
graças à aplicação da desatenção civil, oferece um a área de ação para a
liberdade im pensável sob circunstâncias diferentes. Trata-se de solo fértil para o
intelecto. Com o apontou o grande sociólogo alem ão Georg Sim m el, vida urbana
e pensam ento abstrato são ressonantes e se desenvolvem sim ultaneam ente.
Afinal, o pensam ento abstrato é im pulsionado pela im pressionante riqueza de
um a experiência urbana que não pode ser apreendida em toda sua diversidade
qualitativa, enquanto a capacidade para operar conceitos gerais e categorias é a
habilidade sem a qual a sobrevivência em am biente urbano torna-se
inconcebível.
Assim , essa experiência tem dois lados e parece não haver ganho sem perda.
Com a incôm oda curiosidade do outro, podem desaparecer seu solidário interesse
e sua disponibilidade para aj udar. Com o entusiástico alvoroço da vida urbana
vem a indiferença hum ana cool, abastecida por m uitas interações orientadas pela
troca de produtos e serviços. O que se perde no processo é o caráter ético dos
relacionam entos; vasta gam a de interações hum anas é desprovida de
significação, e as consequências se tornam possíveis porque m uito da conduta
rotineira parece livre de avaliação e de j ulgam ento por alguns padrões da
m oralidade.
Um relacionam ento hum ano é m oral quando um sentim ento de
responsabilidade brota em nós, voltado para o bem -estar e a felicidade do
“outro”. Ele não provém de m edo de punição nem de cálculo feito do ponto de
vista do ganho pessoal, nem m esm o das obrigações contidas em algum contrato
que tenham os assinado e o qual sej am os legalm ente obrigados a cum prir.
Tam bém não é condicionado ao que o outro estej a fazendo ou ao tipo de pessoa
que sej a esse outro. Nossa responsabilidade é m oral conquanto sej a totalm ente
altruísta e incondicional. Som os responsáveis por outras pessoas sim plesm ente
porque são pessoas, e assim ordena nossa responsabilidade. É igualm ente m oral
quando a vem os com o só nossa, não sendo, consequentem ente, negociável, além
de não poder ser transferida para quem quer que sej a. A responsabilidade por
outros seres hum anos surge sim plesm ente porque eles são seres hum anos, e o
im pulso m oral para aj udar daí oriundo não exige nenhum argum ento,
legitim ação ou prova além dessa noção.
Com o vim os, a proxim idade física pode ser despida de seu aspecto m oral.
Pessoas que vivem perto de outras e afetam m utuam ente suas condições e seu
bem -estar podem não experim entar proxim idade m oral. Assim , perm anecem
alheias ao significado m oral de suas ações. O que segue pode ser a abstenção de
ações que a responsabilidade m oral poderia preparar e a ativação de outras, que
ela im pediria. Graças às regras da desatenção civil, os estranhos não são tratados
com o inim igos e, na m aioria das vezes, escapam ao destino que tende a
acom eter esses inim igos: não se tornam alvo de hostilidade e agressão. Ao
contrário do que ocorre com os inim igos, os estranhos, grupo do qual
eventualm ente participam os, são privados da proteção oferecida pela
proxim idade m oral. Por conseguinte, a passagem da desatenção civil à
indiferença m oral, ao desafeto e à negligência em relação às necessidades
alheias não é senão um pequeno passo.
Síntese
Falam os sobre os papéis da distância social, dos lim ites e do espaço em nosso
cotidiano. Tanto sim bólicos quanto físicos, esses lim ites interagem de m aneira
com plexa. Som os todos ligados a rotinas, decisões e consequências que nos
fornecem saber e condições para m onitorar nossas ações, m as sobretudo a
capacidade de agir. Em bora haj a claras diferenças no acesso das pessoas aos
m eios para levar a cabo seus obj etivos, todos estam os im plicados, em vários
níveis e com efeitos diversos, nos processos descritos neste capítulo. Eles nos
fornecem , além de nossas identidades sociais, nossas autoidentidades e m aneiras
de observar os outros – coisas, aliás, intim am ente interligadas. No Capítulo 3,
continuarem os essa análise, exam inando fenôm enos sociais com o com unidades,
grupos e organizações, e seus papéis em nossas vidas.
Questões para refletir
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