3. Música e discurso: por uma semântica discursiva (possível) da musicalidade
Advertindo que a música leva ao limite do sistema do signo, Kristeva (1988)
prossegue julgando tratar-se de um sistema diferencial e opositivo que não quer dizer
nada, diferentemente da estrutura da língua. Na língua, então, não há um limite do
sistema do signo?
Como bem ressalta Milner (1987), se há alguma (sensação de) ausência desse
limite, é menos porque a língua seja dotada de completude do que pelo esforço das
ciências em torná-la seu objeto, fazê-la “forma e não substância”, amá-la como quem
"deita-se e deleita-se" sob os lençóis da ilusão, ignorando o não-todo, a incompletude
intolerável que a língua suporta. A Linguística tenta abarcá-la como se sua rede de
impossível fosse consistente (MILNER, 1987, p. 26). Amor, completo amor! O que se
deixa de lado é o fato de que, num único e mesmo movimento, há língua – ou o que se
nomeia como falantes – e há inconsciente (MILNER, 1987, p. 17). Incluíramos, do
campo teórico em que nos situamos, a imbricação ideologia-inconsciente que atravessa
a produção de sentidos (PÊCHEUX, 2009[1975]).
O ponto ao qual dirigimos nossas reflexões diz respeito à hipótese de que a
música, apesar de ser um sistema articulado de elementos (sintática e
paradigmaticamente), tal como a língua, e embora possa ser analisada em sua estrutura,
nas relações entre elementos, não pode e não deve ser apartada de sua dimensão
histórica enquanto produção que se constrói sob determinadas condições, as quais
156
compreendem o sujeito, sujeito histórico, sujeito de linguagem, sujeito que não faz outra
coisa que não seja sentido.
O modo como se ambiciona tratar a independência do sistema musical é, aliás,
também semelhante à maneira como a língua é estudada por algumas teorias
linguísticas. É baseado no exposto que, a despeito de alguns autores e em concordância
com outros, almejamos tomar a música não apenas como linguagem (como simbólico),
mas também como discurso, em que se materializam processos ideológicos e
inconscientes.
Reiteramos da língua, pois, seu caráter de incompletude (ORLANDI, 1996). O
fato de a língua não ser fechada (e tal incompletude se estende ao sujeito), assinala, por
um lado, sua opacidade e, por outro, a possibilidade de deslizamento dos sentidos e de
deslocamento dos sujeitos (ORLANDI, 1984). É só por ilusão (de fechamento, de
literalidade) que se pode dizer da língua que ela comunica "precisamente". Certos
apontamentos comparativo-diferenciais entre língua e música soam mais ao analista do
discurso como demarcação de semelhanças do que como confirmação de diferenças que
se possa chamar de capitais.
Ressignificando o que Guigue (2007) diz sobre a música, trabalhar a
heterogeneidade da língua (e de qualquer materialidade discursiva) não representa
aportar em um terreno analítico movediço que põe em xeque a objetividade do trabalho
científico, mas (e sobretudo) admitir que toda unidade é ilusória e que o discurso é
atravessado de memórias, que o dito comporta o não-dito (ORLANDI, 2012).
Comparando com o que o autor afirma sobre a versatilidade do sistema da música e sua
capacidade de suportar qualquer construção, há outra analogia possível com o sistema
linguístico, cujas relações entre os elementos, nos eixos sintagmático e paradigmático,
suportam um sem-fim de construções e organizações possíveis.
Com respeito a algo mais que tem a ver com ambos os sistemas, diria que toda
construção, toda organização textual é uma entre outras possíveis. Formulando
discursivamente, uma construção em detrimento de outras diz das determinações
históricas, isto é, dos processos ideológicos que atravessam os discursos e produzem
sentidos que sempre podem ser outros (ORLANDI, 2008).
Propomos para ser pensado, nos domínios da Análise do Discurso, que as
composições sonoras e(m) sua circulação atualizam sentidos e inscrevem-se em
memórias, pela relação indissociável que mantêm com a história. É assim que
significamos discursivamente a afirmação do musicólogo e compositor argentino
Vaggione, para quem
Um objeto é sempre um múltiplo – diferente de uma nota, que constitui, na
sua função tradicional, um elemento neutro que adquire um sentido somente
após ter sido inserido num contexto. O objeto não é, portanto, um “átimo
indivisível”, mas uma estrutura, um composto (VAGGIONE, 1998, p. 170).
Tomando o objeto musical como constitutivamente heterogêneo, destacamos sua
multiplicidade enquanto aquilo que denota a abertura do processo de significação,
expondo-o à interpretação e, consequentemente, ao equívoco. A música também
significa dependendo de suas condições produção e circulação. Dizemos “também”, a
fim de tomar o devido cuidado de não dizermos “apenas”, por tudo o que, na linguagem
da música, se insinua em direção a pontos de impossível que talvez não sejam da
mesma ordem daquilo que constitui a língua (ou talvez sim?).
157
Tarasti (1994), do campo da Semiótica Musical, propõe o modelo de discurso
musical que desenvolve a dupla articulação da linguagem através dos conceitos de
imanente e manifesto. Para o semioticista finlandês, é no nível manifesto que se opõem
os modelos tecnológicos e ideológicos, enquanto que no imanente opõem-se as
estruturas de comunicação e as de significação. As estruturas de comunicação seriam os
processos que atuam na comunicação de ideias musicais, impondo limites para as
escolhas e oferecendo soluções, por exemplo, nas estruturas estilísticas, para a criação
da obra musical pelo compositor.
A liberdade de produzir significados próprios por meio de sua obra é
representada pelas estruturas de significação. O universo simbólico da música seria
determinado pelos modelos tecnológicos e ideológicos (no nível manifesto). Os
modelos ideológicos compreendem conceitos e normas que avaliam a música de uma
cultura ou sociedade, ao passo que os tecnológicos se constituem por sistemas e regras
de composição, que englobam técnicas de harmonia, contraponto, serialismo, além das
técnicas de composição contemporânea, entre elas as digitais e eletroacústicas.
Para este autor, o discurso musical é influenciado pela oposição entre os
modelos ideológicos e tecnológicos no nível manifesto, à proporção que se reflete, no
nível imanente, sobre as estruturas de comunicação e significação. Na história da
música – e podemos dizer das artes como um todo – observa-se frequentemente rupturas
com normas vigorantes, as quais determinam os processos de criação em dada época.
Isto acontece justamente por haver uma dinâmica na oposição entre as estruturas de
comunicação e significação, podendo o “valor estético” – o que significamos como uma
questão de interpretação – estar associado, justamente, as tais rupturas (TARASTI,
1994, p. 16-20).
Ressignificando Tarasti, pensamos a ruptura como resultante de processos de
resistência que se podem marcar no simbólico, no interior de um sistema, por
excelência, aberto, incompleto. Esta ressignificação requer também uma outra
concepção distinta de ideologia, como processos que atravessam discursos da/sobre a
música, ou seja, que se materializam nos discursos musicais, estes materializando-se no
que arriscamos denominar, pelo menos por hora, de “linguagem musical”, em elementos
como ritmo e melodia, por exemplo, ou mesmo na escolha, combinação e
sincronismo/simultaneidade entre sons produzidos com distintos instrumentos musicais.
A isto adicionamos, como exemplo, o fato de que, em uma composição X, há aquilo
que pode e deve ser mobilizado (o que equivaleria a dito), tocado, e também o que não o
pode e não o deve, a não ser por um movimento de ressignificação em que está
intrínseca uma relação, quase sempre, de resistência.
E não se pode ignorar o fato de os sentidos de/para uma obra musical estarem
relacionados às condições históricas de sua produção – em que também estão inseridas
as técnicas de gravação, montagem etc. –, assim como a maneira como irá circular
socialmente. Dependendo de quais sejam os modos de circulação e as relações passíveis
de serem mantidas com outras materialidades significantes, os sentidos para um
discurso musical sempre poderão ser outros.
Mergulhados em evidências ideológicas e em memórias históricas, identificamos
um samba, um reggae, um rock etc., o que se mostra óbvio, parecendo envolver mero
reconhecimento de formato. Se isto não toca a complexidade do sistema musical, pode
funcionar como indício do modo como a música toca (n)a história e é tocada nela e por
ela?
158
Para Milner (1987), uma língua entre outras é um modo singular de produzir
equívocos. Traçando um paralelo e com base em discussões teóricas já realizadas,
supomos que a música seja, tanto quanto e na relação com outras linguagens, um modo
singular de produzir equívocos, e que as tentativas/tentações a analisá-la reclamem, na
verdade, debruçares reflexivos que vieses pautados em análises dicotômicas, pela
associação lógica de um significado e um significante compondo o signo, não dão conta
de explorar. Nesses casos, o sentido estaria na materialidade dessa linguagem, e a
análise se concentraria em definir o significante e identificar seu significado.
As produções artísticas diferenciadas de acordo com o que se convencionou
chamar de estéticas (romantismo, modernismo etc.) não acompanham ou significam em
consonância com um ar do tempo histórico (como condições históricas de produção)?
Os elementos em composição não apresentam regularidades sonoras que os identificam
a uma estética e não outra? Como se distinguem, tanto na produção quanto na escuta,
obras eruditas de obras populares? Que elementos sonoros e aspectos organizacionais,
instrumentais e de combinação distinguem um funk de um samba, um reggae de um
rock? Não há mesmo relação entre isto e algo que tem a ver com sujeitos compondo a
história, fazendo sentido?
A música não é como um som da natureza, o vento, a chuva, um galho se
quebrando. Tudo isto pode ou não tornar-se musical. Música é (re)produção. Se há nela
algo que escape mais ainda, comparando-se ao que escapa na língua – note-se a
importância desta condicional –, isso não subtrai sua inscrição na história, mas exige
outros desdobramentos teórico-reflexivos em torno de suas peculiaridades.
Talvez não haja nada que permita afirmar categoricamente que a relação entre
um uma batida X e uma melodia Y signifiquem X, Y, Z. Mas por que razão se deveria
pensar uma semântica da música exclusivamente segundo a lógica de colagem precisa
entre um significado e um significante, ou segundo a relação transparente entre o plano
da expressão e o plano do conteúdo?
Se é cabível dizer que não há os elementos necessários para analisar
semanticamente a materialidade da música da mesma maneira que se faz com a língua,
não hesitamos ao ponderar que o problema não esteja em características inerentes a esta
linguagem, mas na impertinência de analisá-la segundo critérios enraizados em
abordagens que tomam a linguagem como transparente. Com isso, não há razões para
deixar de analisá-la enquanto produção histórica e, sendo assim, ideologicamente
determinada. Ratificamos o mesmo sobre música e língua: não há, para uma e outra,
fora das condições sócio-históricas de produção, a possibilidade de conter em si um
sentido entranhado.
Ensinar, estudar, teorizar sobre música: até onde (não) é possível? Podemos
fazer as mesmas perguntas sobre a língua, e por isso sustentamos que a música é uma
linguagem. Todos os sons são possíveis, mas nem todos são produzidos. A música não é
um amontoado de ruídos que pairam ao léu, mas uma produção organizada segundo
ilusões de totalidade. Organizada historicamente, marcada, afetada por relações (de
sentido), por determinações históricas que envolvem não apenas o modo como se a
organiza, como também as condições de sua reprodução e circulação (técnicas,
tecnológicas, sociopolíticas). Resulta, pois, em meio a tantas possibilidades, em uma
organização e não outra, nem qualquer uma.
Sujeitos fazem música como quem faz história. Pensamos estar falando de um
sistema complexo de linguagem que faz possível a discursividade como instalação de
efeitos permitidos por sua própria estrutura. Joga com a historicidade, com a divisão de
159
sentidos como algo que a constitui e, enquanto discurso, com o silêncio, materializando
processos ideológicos que se inscrevem em complexidades melódicas, rítmicas, as quais
atualizam memórias (ORLANDI, 2007).
4. Breves proposições metodológicas
É necessário fazer algumas importantes distinções, a saber entre o que
chamaremos de som, música e musicalidade. Propomos definir o som, então, como
ruído de qualquer natureza, sempre oco, sem história, sem um sentido a priori. Os sons
podem ser de toda ordem, portanto. Uma nota musical, um copo se quebrando, uma
batida de prego na madeira, o choro de uma criança. Para fazer sentido, é preciso que
haja uma passagem do som como aspecto físico, para o som como materialidade
significante, produzindo efeitos. No entanto, não agrada a ideia que se possa elaborar
um conceito para essa passagem que seja suficiente para fazer jus à análise de qualquer
materialidade sonora, pois isto seria ignorar que estas materialidades, assim como as
imagéticas, possuem características muito peculiares, tanto físicas quanto de suas
atrelagens à história.
A natureza das produções de linguagem estritamente sonoras é diversa, no
sentido em que se pode abordar a voz, a produção de vocábulos, a música, os sons na
natureza emanados em determinadas condições de produção, e até o silêncio, cada qual
relacionando-se de modo distinto e distintivo com a história.
Baseado no exposto, optamos por propor um trabalho com a passagem
específica do som para a música, está como evidência ideológica, transparente para o
sujeito, sobre a qual se julga estabelecer uma relação lógica forma-conteúdo-sensação.
A segunda passagem deve ser, então, da música para o que chamaremos, aqui, de
musicalidade, já como construção do analista, objeto discursivo em relação com a
história, a partir do qual pode-se observar tensões, disputas de sentido e formular
interpretações possíveis, com base nas memórias históricas que atualizam e nos sentidos
daquilo que se deixa de dizer.
Para nos fazer melhor entender, propomos uma analogia com a distinção feita
por Orlandi (2007), entre forma abstrata, forma empírica e forma material. O som
estaria para a forma abstrata, constituindo-se como componente de um sistema,
considerado como produção sonora de qualquer natureza (mero barulho); a música
estaria para uma forma empírica, correspondente à realidade enquanto construção
imaginária, em que já haveria a ideologia produzindo evidências a partir de uma relação
entre sons; a musicalidade estaria para o processo, analisável enquanto discurso. O
analista, então, diante da forma material, pode desmanchar a transparência do sentido,
fazendo aparecer a materialidade do discurso na exterioridade que a constitui (DIAS,
2011, p. 12-13).
Com esta proposta, perseguimos a definição de caminhos de análise que
trabalhem com marcas como a inscrição de aspectos melódicos, rítmicos, instrumentos
que compõem um arranjo musical (e seus recursos acústicos), aparatos
técnicos/tecnológicos, natureza das produções (eletrônicas, acústicas etc.), condições de
execução do objeto musical e, em músicas cantadas e/ou vídeos, a voz do intérprete e
todos os elementos na relação com um corpo em movimento. Tudo isto tendo sempre
em vista as condições de produção e circulação, na relação de composição e não
160
complementaridade, como define Lagazzi (2010) em relação ao tratamento da imagem,
com as demais materialidades do objeto discursivo em análise.
A música acarreta produções e reclama interpretações nesta composição com
outras linguagens, como acontece no cinema, em telenovelas, peças teatrais,
videoclipes, exposições de arte, construindo sentidos na relação mesmo com o verbal, o
imagético ou outras sonoridades. Fazendo corpo.
Metodologicamente, a análise é engendrada a partir de movimentos que dizem
respeito à relação memória/atualidade que constitui toda materialidade discursiva. A
partir do que nomeamos como recorte histórico-diacrônico, imaginamos ser possível
analisar aspectos relativos à historicidade dos elementos e(m) sua relação com o que se
construiu em um objeto musical peculiar. Já com base em um recorte histórico-
sincrônico, a análise pode estar pautada na descrição e interpretação de elementos da
musicalidade que se inter-relacionam sincrônica e simultaneamente, atravessando-se,
produzindo uma cadência. Uma espécie de cena musical na produção de um objeto
sonoro que significa social e politicamente, relacionando-se com outra(s)
materialidade(s), em dadas condições históricas de produção.
Para tratar da questão da voz, pensamos discursivamente com Souza (2007) que
a reflexão deva consistir “em considerar a relação indissociável entre voz e discurso e
suas consequências para o estatuto do sujeito em constituição no tempo da fala”
(SOUZA, 2007, p. 200). Este autor coloca em foco a possibilidade de ultrapassar os
clássicos métodos comparativos e critérios de notação das unidades sonoras, a fim de
atingir “a região corpórea da fala em que a «voz» e a «linguagem» nascem
inseparáveis” (SOUZA, 2007, p. 203), com o objetivo de dar a ver “uma forma histórica
de sujeito erigindo na voz do indivíduo enunciante” (SOUZA, 2007, p. 210). Portanto,
em uma composição musical, a voz também é constitutiva de uma forma histórica de
sujeito que erige em meio a todos os elementos musicais.
Como já dito anteriormente, os sentidos não estão na música, assim como não
estão na língua. A entrada de um violino, por exemplo, está para a música clássica,
historicamente, tal como o cavaquinho está para o samba. Como supor que isto não diz
da historicidade que atravessa o que se apresenta como evidente nas estéticas musicais?
Como já foi dito, há uma abertura constitutiva da linguagem – de toda forma de
linguagem –, a qual, ao mesmo tempo que marca seu caráter de incompletude, assinala a
possibilidade de deslizamento dos sentidos e de deslocamento do sujeito no processo de
criação/composição.
Assim, toda estabilidade/estabilização pode ser quebrada, de maneira que se
produza o inesperado como forma de resistência, como desvios de sentidos dominantes,
e inaugurem-se novas relações, com novos efeitos de sentido e(m) outras interligações
da materialidade discursiva com a exterioridade que a determina. O analista do discurso
sabe que o diferente e o mesmo são produções da história.
5. Considerações finais
Com este trabalho, buscamos demonstrar que, em diferentes graus, música e
língua dotam-se de algo que envolve a linguagem e, curiosamente, intitula a edição
espanhola da obra de Kristeva (1988) – El lenguage, ese desconocido –, aquilo que
ambas possuem, guardadas as peculiaridades, de desconhecido, e naquilo com que se
deparam: o impossível, o irrepresentável. Explicitamos, outrossim, que esta questão é
161
delicada, que necessita de avanços, alguns dos quais tentamos promover, indagando,
sugerindo possibilidades, mas sapientes do muito que ainda precisa ser formulado,
aprimorado, em termos teóricos, metodológicos e reflexivos.
A fagulha que instiga ao movimento, a este esforço de teorização e análise,
acende-se a partir de algo que atrai a atenção e que não poderíamos deixar de
mencionar: a música, quando toca, ou toca-nos profundamente, ou toca-nos para
bem longe: "Alguma coisa acontece [...]". Na música, assim como na língua, portanto,
há um impossível de tudo dizer, mas também um impossível de não dizer nada. Desse
modo, o que se diz, na ordem em que se diz, é também o que se deixou de dizer. Haverá
sempre o que resiste a ser interpretado.
Tais pontos de desassossego teórico-reflexivo abrangem, por um lado, o que
captura na música e que não se sabe bem o que é, e por outro (ou seria pelo mesmo
lado?), como o que se mostra tal qual o que Pêcheux (2012[1982]) pressupõe, ao
teorizar o discurso, como sendo da ordem de uma Verdade, e que, volta e meia, se
impõe, no andamento de uma reflexão, como um impossível de ser formulado. E aqui
reside um nó que nos conduz a um estágio de vislumbres teóricos, uma sensação,
parafraseando Pêcheux, quando este autor aborda a questão da articulação conceitual
ideologia-inconsciente, de penetrar a obscuridade (PÊCHEUX, 2009[1975], p. 138).
Didier-Weill (2014) batiza, com uma metáfora devida a Chopin, de Nota Azul,
àquilo que “acerta na mosca”, suscitando estados de alma de felicidade e de gozo
nostálgico, podendo ser disparado de uma simples cantiga, do piano de Mozart ou do
sax de Lester Young. Uma nota que, segundo o autor, se não é simbolizável, no sentido
em que não se pode inscrevê-la, “de maneira que não podemos reter em nós o efeito
eminentemente fugaz que ela produz e cuja extinção é estritamente tributária do real das
pulsações sonoras que a suportam” (p. 43), é simbolizante. Simbolizante porque nos
abre para o efeito de todos os outros significantes, como se fosse sua senha. Assim
sendo, “sob o impacto da Nota Azul, o mundo começa a falar conosco e as coisas a ter
sentido: os significantes da cadeia inconsciente, de mudos que eram, despertam e
começam, causados pela Nota Azul, a nos contar casos” (DIDIER-WEILL, 2014, p. 43).
Por ora, propomos refletir sobre se haveria nisto alguma coisa do caráter mesmo
de uma transmissão (LACAN, 1992[1969-1970]), que nada tem a ver com conteúdo,
significado, conhecimento, mas com o que nos afeta e que não se sabe exatamente
como, onde e por quê. Se sim, o que esta questão teria a dizer a uma análise de cunho
sócio-histórico? Estaríamos diante de "um real constitutivamente estranho à
univocidade lógica, e um saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina e
que, no entanto, existe produzindo efeitos" (PÊCHEUX, 2012[1983])?
Permanece em aberto o que sempre esteve, porque é da ordem de uma
polissemia constitutiva dos processos de significação.
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